Na imprensa burguesa, a utilização de termos estrangeiros numa matéria é, geralmente, indicador de elitismo e esnobismo. Mas, não para nós, revolucionários internacionalistas. Muito menos quando queremos dar nosso adeus a alguém como Mercedes Sosa, que dedicou sua arte e vida ao rompimento das fronteiras, ao desejo de cantar as línguas do mundo.

“La Negra”, como era carinhosamente chamada por seus compatriotas, morreu aos 74 anos, na madrugada de domingo, 4 de outubro.
Para quem viveu neste continente nos últimos 40 anos, é impossível resumir a importância dessa mulher, ao mesmo tempo, indígena e universal (nascida em Tucumán, no norte argentino, em 1935) a uma página de jornal.

Nossa melhor homenagem é ouvi-la e cantá-la, sempre. É carregá-la em nossos “corações e mentes”, embalando nossos sonhos e lutas pela liberdade; nossos amores e perdas. E, principalmente, dando “gracias a la vida, que nos há dado tanto…”. Inclusive o prazer ter tido Mercedes Sosa entre nós e, também, do “nosso” lado.

La hermana libertad!
Em 1979, quando a Argentina vivia sob a pesada botina do general Videla, Mercedes exilou-se na Europa, depois de ser presa num show em La Plata. O fato deu início a sua projeção internacional, ao ser elevada pelos seus fãs (exilados, como ela, ou oprimidos por ditaduras dentro de seus próprios países) à voz que embalava a luta pela liberdade, não só na América Latina, mas mundo afora.

Na época ela já era bastante conhecida em sua terra, onde, desde os meados dos anos 1960 – quando lançou “Yo no canto por cantar”, com clássicos “Canción para mi América” e “Zampa para no morir” –, Mercedes se tornou uma das principais expressões do “novo cancioneiro” latino-americano. Um movimento marcado pela mescla, nos ritmos e letras (na forma e no conteúdo), das tradições culturais dos países latinos, suas paixões políticas e afetivas.

No Brasil, sua voz se tornou mais conhecida a partir de 1976, através de um memorável dueto com Milton Nascimento, um de seus principais parceiros no Brasil (ao lado de Chico Buarque, Elis Regina e Fagner, dentre vários outros), com quem gravou a dilacerante “Volver a los 17”. Desde então, seu bumbo, poncho e voz encantadora jamais ficaram muito distantes do Brasil.

A gravação, que lhe custou uma investigação pelos órgãos da ditadura, era a da “mãe” da canção de protesto latino-americana, a compositora e também artista plástica chilena Violeta Parra, que havia se suicidado dez anos antes, depois de deixar poéticos e vibrantes testemunhos de sua luta pela liberdade e de sua conturbadíssima vida pessoal, em letras como “Gracias a la vida”, a dolorosamente militante “La carta” (“Me mandaron una carta / por el correo temprano, / en esa carta me dicen / que cayó preso mi hermano….”) e a o ultra comovente e anti-racista “Duerme, negrito”.

Como também, nos meados dos anos 1970 e início dos 80, foi La Negra, com a voz rasgada e indignada, que nos colocou dentro do maldito estádio chileno, fazendo com que os últimos acordes do poeta, dramaturgo e professor Victor Jara, nunca fossem esquecidos. E, certamente, foi a voz dela que deve ter ninado e acalentado aqueles que padeciam pelos cantos escuros dos calabouços militares que contaminavam o Sub Continente.

La Negra: grande como o continente
Para muitos de nós, brasileiros que, deformados pela ideologia dominante, às vezes nos esquecemos que somos, também e sempre, latino-americanos, foi também a poderosa e comovente voz de Mercedes que nos guiou pelos vales e cordilheiras dos Andes, pelas ruas de Buenos Aires e Santiago, até a mítica Mocambo de Garcia Márquez, passando pelos labirintos de Cortazar, mas sempre nos deixando perto da Cuba, da Nicarágua, de El Salvador ou onde quer que houvesse alguma luta.

Responsável, como poucos, pela real “integração” latino-americana que precisamos – a das lutas, da cultura e de um novo projeto social e político –, Mercedes trouxe para o Brasil “Cuando voy al trabajo” e “Plagaria a um labrador”, de Jará; “Poema 15”, de Neruda, e trabalhos de uma infinidade de outros argentinos geniais, como Atahualpa Yupanqui, Horacio Guarany (da belíssima e libertária “Si se calla el cantor”), Tejada Gómez e César Isella (que fizeram juntos “Cancíon con todos”).

Desta lista – difícil escolha numa obra deixada em mais de 40 discos – também não podem faltar outros talentos latinos, como Pablo Milañes (“Años”), Felix Luna e Ariel Ramirez (da rasgada “Alfonsina y el mar”) e Maria Elena Walsh, autora da resistente “Como la cigarra” (“Tantas veces me mataron / Tantas veces me morir / Sin embargo estoy aqui resucitando / Gracias doy a la desgracia…”).

Cumprindo seu papel de “porta-voz” de nossas lutas e sonhos, Mercedes, em suas “andanças”, também carregou consigo, coisas nossas como “Semeadura” (regravada com o nome “Seambra”), de José Fogaça e Victor Ramil, ou a “Maria, Maria”, desde sempre transformada em hinos das mulheres em luta, continente afora.

Por isso, não foi por acaso que, quando o povo aqui no Brasil foi para às ruas, parou as fábricas, subiu nos banquinhos das escolas e, ao lado de negros, mulheres, gays e lésbica, começou a virar a mesa e subverter a ordem, foi mais uma vez Mercedes Sosa, a hermana-compañera, que embalou as passeatas e ritmou os sonhos de toda uma juventude que, no final dos anos 1970, ao se rebelar contra a ditadura, reatava seus laços com os herdeiros dos Tupa Amaros, dos Bolivares, dos Martís, dos incas e astecas.

Vivir és outra cosa!
Para os que tiveram o privilégio de ver Mercedes Sosa em sua última passagem pelo Brasil, no ano passado, a imagem que ficou de “La Negra”, é de uma figura que lembra aquelas “grandes-deusas”, tão presentes nas tradições míticas latino-americanas.

Já bastante debilitada fisicamente, Mercedes mal podia mover-se, mas mantinha sua poderosa voz intacta e com a vivacidade de sempre, fazendo-se gigante e parecendo atemporal (como aquelas figuras que arrancam forças da própria natureza), “La Negra” entoou seus velhos sucessos e canções de um de seus últimos discos, “Corazón Libre”.

Testemunho fiel das idéias às quais se manteve fiel até o fim da vida, inclusive a defesa de uma sociedade comunista, “Corazón Libre” é, também, uma espécie de “testamento” de La Negra, na medida em que foi nele que ficou gravado um poderoso verso, no qual a cantora já dialogava com sua morte: “Adelante, corazón, sin medo de la derrota. Durar nos es estar vivo, corázon. Vivir és otrra cosa”.

Sim, viver, de fato, é outra coisa. Viver é lutar, sonhar, se indignar, mas também saber tirar o máximo da vida, saber arrancar poesia da “desgraça”. E, acima de tudo, viver é ter consciência do nosso papel no mundo. Por isso, não há dúvidas de que Mercedes viveu. E viverá para sempre em suas canções e nossas lutas: Mercedes Sosa, nuestra
hermana, libertad!

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