É pelas mãos do governo do PT que o Exército tem sua melhor oportunidade para manter secreta a história do Araguaia. Desde a ditadura militar, nunca tivemos um governo tão subserviente ao FMI e nunca assistimos a uma defesa do aparelho repressivo com a participação de algumas das suas vítimas

No início de 1970 o PC do B implementou a Guerrilha do Araguaia. O objetivo era o de acumular forças para a transição ao socialismo através de um movimento de libertação nacional segundo a estratégia maoísta da Guerra Popular Prolongada. Em 1975, o Exército, após três operações de cerco e destruição, derrotou a guerrilha. Além dos militantes do PC do B, há notícias de camponeses executados pelo Exército. Até hoje não se sabe o número exato de mortos.

Apenas algumas ossadas dos guerrilheiros foram encontradas. Da ação do Exército pouco se conhece e as informações são muito fragmentadas. Mas os detalhes das atrocidades cometidas são aterradores e é urgente que conheçamos este episódio da nossa história. Possibilitar que as famílias dos guerrilheiros sepultem seus entes queridos é, também, reparar, ainda que muito parcialmente, as violações aos direitos humanos. E, ainda, por fim, mas não menos importante, é possibilitar que julguemos, se não jurídica, ao menos historicamente, os indivíduos e as instituições que atuaram no episódio.

Após anos de batalha judicial, a Justiça finalmente determinou ao Exército que torne público todos os documentos relativos ao episódio e, o governo Lula, colocando-se ao lado dos militares, decidiu recorrer da sentença. Os argumentos do governo têm pouca importância, pois são meras justificativas para uma decisão tomada a priori e por “razões de Estado”: o projeto do PT para o país é tão mirrado que não pode sequer tocar neste ponto “sensível ao Exército”.

No Chile e na Argentina, para citar apenas países próximos, a anistia está sendo revista e os torturadores estão sendo juridicamente responsabilizados. Em triste comparação, no Brasil, Romeu Tuma, auxiliar do nosso mais notório torturador, Sergio Fleury, era há pouco um senador da República. E, agora, o governo do PT age não apenas para proteger, mas também para manter desconhecido o aparelho repressivo.
O que estamos assistindo é o ato final da degeneração de revolucionários em braço político auxiliar de seus ex-algozes. Pensemos, para ficar nos casos mais exemplares, em Zé Dirceu, José Genoíno e Aldo Arantes: o que justifica, moral e humanamente, eles apoiarem o Exército neste episódio? Não há opção política que justifique a vilania deste ato.

O que estamos assistindo é, ainda, a explicitação dos limites máximos da realização possível do reformismo na realidade brasileira. Em países como o nosso, o reformismo, por mais radical e bem intencionado, não pode ir para além de modificações cosméticas na defesa intransigente dos interesses dominantes contra os trabalhadores. Com o governo Lula, a proposta tupiniquim de reforma encontra a sua realidade e não pode, sequer, cumprir o mandado judicial sobre o Araguaia.

Além da degeneração de alguns revolucionários e da plena realização do reformismo brasileiro estamos assistindo, todavia, a algo que nem os estrategistas da ditadura militar sonharam: a vitória da estratégia da “transição ampla, gradual e segura”, proposta pelo general Geisel. Não pelas mãos dos militares “linha mole”; nem pelos civis que apoiaram os militares, como Sarney, Delfim Netto ou Tancredo Neves. Muito menos pela oposição consentida, como Ulisses Guimarães ou Franco Montoro. Ou da oposição que tentava negociar, como o antigo PCB. Mas sob a batuta do partido que aproveitou das greves do ABC para se apresentar como oposição radical à ditadura. Ironicamente, é pelas mãos do governo do PT que o Exército tem sua melhor oportunidade para manter secreta a história do Araguaia. E com a conivência do PC do B, que abandona os militantes que enviou para a selva em troca de algumas sinecuras!

Desde a ditadura militar, nunca tivemos um governo tão subserviente ao FMI e nunca assistimos a uma defesa do aparelho repressivo com a participação de algumas das suas vítimas. Tal coincidência não é mero acaso. Antes, são faces da mesma moeda. Muito pouco separa as decisões de ofertar ao FMI um superávit primário maior do que o exigido e a de proteger o aparelho repressivo. Também por isso, já não é mais descabida a pergunta que, antes, sequer poderia ser imaginada: ao seu final, o governo petista terá sido algo mais que o coroamento completo da estratégica “transição lenta, gradual e segura” concebida pelo general Golbery do Couto e Silva? Terá, finalmente, o PT se incorporado à estratégia dos militares para saírem do poder cedendo os anéis e mantendo os dedos?

* Sérgio Lessa é professor de filosofia da Universidade Federal de Alagoas

Post author Sérgio Lessa*,
especial para o Opinião Socialista
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