Apenas 21% do orçamento de 2009 foi gasto, cortes no ano passado passaram dos R$ 91 milhõesAs tragédias causadas pelas chuvas durante a passagem do ano expõem de forma dramática o problema do déficit habitacional crônico no país. A falta de moradias dignas empurra um contingente cada vez maior de famílias para os morros, encostas e várzeas, onde são obrigadas a arriscarem suas vidas nessas áreas de risco. Esse é o principal motivo de tantas mortes.

Já ocorrido os acidentes, porém, um outro aspecto vem à tona. O Estado que já havia se omitido na questão habitacional, omite-se novamente no socorro às vítimas e na realização de obras preventivas anti-enchentes. É o que revela levantamento realizado pela ONG Contas Abertas, que mostra que o orçamento para obras de prevenção a enchentes se reduziu pela metade de 2009 para 2010.

Omissão criminosa
Segundo a entidade, a previsão de gastos para o programa do Ministério da Integração Nacional, “Prevenção e Preparação de Desastres”, em 2009 era inicialmente de R$ 370 milhões. No decorrer do ano, com verbas adicionais, chegou a R$ 647 milhões, mesmo que apenas uma pequena parte disso tenha sido gasta. Para 2010, o mesmo programa conta com dotação de míseros R$ 168 milhões, segundo orçamento aprovado pelo congresso.

O programa é responsável por ações como contenção de encostas, canalização de rios e córregos, desassoreamento (“limpeza” de detritos que se acumulam nas profundezas), além da realocação provisória de famílias desabrigadas por enchentes ou deslizamentos de terra. O governo já havia cortado recursos desse programa no ano passado. No orçamento de 2009, apenas 21% disso foi efetivamente gasto durante o ano, ou apenas R$ 138 milhões. Isso significa um corte de mais de R$ 91 milhões da dotação original.

Além de cortar diretamente verbas destinadas a obras preventivas, o governo Lula vai afetar as obras contra os estragos das chuvas de uma outra forma. Segundo a coluna Painel da Folha de S. Paulo desse dia 8 de janeiro, a primeira parcela do Fundo de Participação dos Municípios distribuída pela União terá uma redução de 20%, comparado ao ano anterior. Será menos dinheiro para os trabalhos de reconstrução das cidades atingidas.

Segundo a coluna, a redução se dá pela mudança do calendário de restituição do Imposto de Renda e pela queda na arrecadação causada pela desoneração do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). Isso significa que, além dos cortes nos programas de prevenção contra enchentes para fazer superávit primário, ou seja, para sobrar dinheiro para o pagamento dos juros da dívida pública, a política de desoneração fiscal para os empresários beneficiados com a redução do IPI também vai afetar as vítimas das tragédias das chuvas.

No estado de São Paulo, o presidenciável José Serra (PSDB) não fica atrás e também determinou cortes no combate a enchentes. O governador propôs para o orçamento de 2010 a redução de nada menos que R$ 52 milhões, mais de 20% das verbas destinadas á área.

Enquanto isso, o prefeito Gilberto Kassab (DEM) enfrenta protestos de moradores atingidos pelos intermináveis alagamentos na Zona Leste da cidade. Na manhã do último dia 8, Kassab foi obrigado a fugir de uma “vistoria” que realizava no Jardim Romano, aos gritos de “safado” e “sem-vergonha” de moradores cansados de promessas vazias. Cinco bairros na região, incluindo o Jardim Romano, ainda estão embaixo d´água.

Cinismo
Após o problema da falta de moradias e de programas preventivos, o cinismo do governo chega à outra ponta da responsabilidade do Estado nas tragédias: o auxílio às famílias atingidas. No município de Angra dos Reis (RJ), que contabiliza 52 das 74 mortes no estado, o governador Sérgio Cabral (RJ) e o Governo Federal anunciaram como primeira medida de auxílio às vítimas a liberação do FGTS para a compra de novas moradias.

Seria cômico se não fosse trágico. A ajuda que o governo oferece às famílias desabrigadas é o seu próprio dinheiro. “Evidentemente que as perdas humanas são irrecuperáveis, mas vamos ajudar esses trabalhadores”, chegou a declarar o ministro do Trabalho, Carlos Lupi. Resta saber o que farão os trabalhadores não formalizados que perderam tudo nos desastres. Além de cínica, essa “ajuda” deve significar pouco frente ao total dos prejuízos.

As tragédias e mortes causadas pelas chuvas estão, assim, longe de serem culpa de São Pedro. São, antes de tudo, responsabilidades do Estado e do governo nas suas três instâncias: Federal, estadual e municipal.

  • Veja a tabela dos cortes orçamentários