Em entrevista ao Opinião Socialista, Gleicimar de Souza Rocha fala sobre a luta contra a impunidade, nove anos após o assassinato de seu marido, Gildo Rocha, militante do PSTU, em BrasíliaA goiana Gleicimar de Souza lembra outras mulheres que tiveram uma parte arrancada. Sua dor é como a das mães da Praça de Maio, na Argentina, ou as de Acari, no Rio de Janeiro. Mulheres que além de perder filhos ou maridos, ainda tiveram de reunir forças para atravessar os anos de impunidade, falta de informação, medo e angústia.

A espera de Gleicimar começou no dia 6 de outubro de 2000. De noite, Gildo Rocha parou em casa, trocou de camisa e seguiu para o centro de Ceilândia, cidade-satélite, na greve da limpeza urbana. “Senti um aperto no peito quando ele saiu”, conta Gleicimar. Foi a última vez que esteve com seu marido, um sergipano de Propriá, que viajou ainda menino para a capital do país.

Nove anos depois, ela ainda tenta lidar com a perda. A dor vira revolta, quando o assunto é o judiciário. No dia 14 de setembro deste ano, a Justiça de Brasília deu uma sentença onde praticamente culpa Gildo pela sua morte. Para o juiz, foi “acidental” e “o projétil que o matou só o atingiu em virtude de um desvio de rota”. “Palhaçada, mentira”, protesta Gleicimar. “Eles ignoraram a perícia, as decisões anteriores, tudo”. Ela vai recorrer, agora com advogados do PSTU.

A decisão da Justiça parece mais um obstáculo no caminho desta mulher de 39 anos, que criou os dois filhos do casal, Glênia e Glauber, sozinha. Ainda “reaprendendo a viver”, ela espera que uma decisão na Justiça ajude os filhos, hoje com 12 e 10 anos, a lidar com a perda. “Alguém arrancou o pai de junto deles e eles sentem raiva, revolta. Não é bom viver com esse sentimento”.

Enquanto fala, Gleicimar revive a dor dos primeiros dias. “Eu não esqueci”. Além da Justiça, parece travar uma outra batalha, íntima, para continuar tendo esperanças nas pessoas e em um mundo melhor, como sonhava Gildo: “Se desacreditar, a gente morre de vez, deixa de existir como ser humano”.

JUSTIÇA
“Fiquei chocada. Depois de tanta demora… E essa palhaçada. Uma mentirada. O juiz se baseou numa decisão de 2006, do tribunal de Ceilândia, que havia sido derrubada. A perícia já havia mostrado a farsa. E esse juiz se presta a um papel desses… Como fala que Gildo foi o culpado pela sua própria morte, que os policiais não têm culpa?
No começo, não entendia nada de Justiça. Ficava de um lado pro outro. Por isso comecei a estudar Direito. Eu tinha que entender, até para aceitar… Hoje estou no 5º semestre. E quanto mais estudo, mais vejo que não valho nada. Pra quem serve o Direito? É pros grandes, pros mais poderosos. Perto disso aí, a gente não vale nada. Essa justiça aí não existe.

Me pergunto: será que vale a pena ficar lutando por uma Justiça que a gente não vê? Mas por outro lado, tem os meus filhos, eles não podem viver com essa revolta tão grande”

A FARSA
“Eles [policiais civis] chegaram de madrugada, num carro comum, armados, e não estavam uniformizados. É natural que o Gildo tentasse fugir.

A Justiça fala que eles atiraram para acertar no pneu. Mas nenhum dos 12 tiros acertou no pneu. Ele sabia o que estava fazendo. Há dúvidas até se o tiro tenha sido de dentro do carro, na perseguição. Pelo ângulo, não daria…

Havia um hospital a um quilômetro e meio, mais ou menos. E levaram mais de meia hora pra levar o Gildo. Chegou quase morto. O sangue tinha se espalhado, atingido o pulmão, e aí não tem mais jeito. Eles esperaram até que isso acontecesse”.

MEDO
“O trauma foi muito grande. Tenho medo até da sombra. Tenho a sensação de que eu fui morrendo aos poucos. Tenho medo, não sei com quem eu tô lidando, com o que podem fazer.

O assassino [Romildo Brito], o que confessou que deu os 12 tiros, morreu em um acidente de moto há pouco tempo. Quando esse cara morreu, fui parar no hospital, fiquei 90 dias afastada do trabalho. Achei que iam me matar”.

DESPEDIDA
“Gildo ligou e falou que ia pro piquete. Saiu do sindicato [no centro de Brasília], passou em Taguatinga, e depois veio aqui em casa, em Ceilândia. Entrou, tirou a blusa comprida que estava [no comércio tinha de usar essa blusa, social], vestiu uma camiseta e saiu pro centro de Ceilândia. Na hora, eu senti um aperto no peito.
Quando foi seis da manhã, recebi um telefonema avisando. Comecei a gritar, gritar. Foi um tumulto. Vieram os vizinhos e minha filha ficava repetindo: “meu pai morreu, meu pai morreu”. Com 3 anos! O meu filho estava com febre e chorava no colo. Nós dois chorando. Saí do enterro direto para o hospital com ele.

Eu levei um choque muito grande. Eu esqueci quem era. Fiquei uns 15 dias sem lembrar. Foi muito difícil. Eu tive de reaprender a viver”.

GILDO
Ele sempre gostou de política, desde menino, 16, 17 anos. Sempre teve interesse. Ele foi do PT e começou sua atividade política no SLU [Serviço de Limpeza Urbana]. Lutava muito pelo direito do trabalhador, ele amava isso.
Tinha dois empregos: de dia, auxiliar de almoxarifado, no comércio. E, à noite, no SLU.

O sonho dele era só ficar no SLU, e militando.
Conheci ele no SLU. A gente trabalhava na limpeza e se conheceu lá, começamos a namorar. Eu pedia pra ele parar um pouco, diminuir. Ele dizia: tá no sangue, não tem jeito não. Teve um período até em que ele se afastou. Quando engravidei, ele veio ajudar mais na casa, ficar com a gente…

Quando vieram boatos sobre privatização, ele falou: ‘Agora tenho de voltar, ajudar o pessoal. Isso é muito ruim, não pode deixar acontecer’. No dia em que foi morto, havia defendido a favor da greve, na assembleia. Tem até foto dele no carro de som naquele dia. Ele falou: ‘É agora ou nunca. Se a gente não fizer a greve, o SLU tá acabado’. E todo mundo levantou a mão.

Pra mim o Roriz é o grande culpado. Ele foi muito covarde. Tinha dado ordem para que fosse reprimida qualquer atividade grevista… com rigor. A gente sabia que ia ser uma guerra”.

REVOLTA
“É preciso um reconhecimento do Estado. Quando se mata um pai, uma mãe, se mata uma família.

Foi uma perda muito grande. Era um excelente pai, excelente marido. Eu não sabia como iria ser o futuro, mas eu tinha uma alegria muito grande, porque sabia que meus filhos iriam ter um pai. Eu não tive e sei como é ruim.
Eles sentem raiva, revolta. Alguém arrancou isso deles. É preciso que os meus filhos não tenham esse sentimento.
Glauber não lembra nem um pouco do pai. Só por foto. Na escola, a pior época é quando chega o Dia dos Pais. Sempre ouço de um coleguinha a mesma história: a de que ele chorou na sala de aula”.

PARTIDO
“Eu sei como o caso é importante para o partido. Gildo faz parte do PSTU. E ele é importante para o partido. É preciso que a memória dele seja lembrada. Então agora deixei o processo na mão de vocês e confio.

Hoje, se Gildo fosse vivo, teria orgulho de pertencer a este partido, que mesmo depois de tantos anos continua sendo o mesmo desde o início.

O Gildo sonhava com um mundo diferente, uma sociedade justa. Eu sei que é difícil, mas tem de ter esperança. Se todo mundo desacreditar, a gente morre de vez. Simplesmente, a gente passa a não existir mais como ser humano”.

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