Brasília - Ministro do STF Gilmar Mendes durante sessão para julgar o habeas corpus no qual a defesa do ex-presidente Lula tenta impedir eventual prisão após o fim dos recursos na segunda instância da Justiça Federal (Antonio Cruz/Agência Brasil)
Pablo Biondi, de São Paulo (SP)

Descrito por um de seus pares (Luís Roberto Barroso) como uma “pessoa horrível”, uma “mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”, o ministro Gilmar Mendes novamente roubou a cena no Supremo Tribunal Federal (STF). Dizemos novamente porque não é de hoje que ele se destaca como um defensor aguerrido de empresários e políticos ligados à corrupção, aguerrido o bastante para protagonizar debates escandalosos que sempre ensejam deboches relacionados ao seu tribunal e à sua própria postura como ministro da corte.

Gilmar Mendes é o representante mais destacado do sistema político no bojo do Poder Judiciário, em particular no que diz respeito aos interesses do PSDB e do PMDB. No ano passado, seu ativismo em favor desses partidos foi tão descarado que até mesmo a imprensa se viu compelida a noticiar alguns fatos. Apenas para citarmos alguns exemplos, vale lembrar que a Polícia Federal identificou uma série de conversas telefônicas entre o ministro do STF e Aécio Neves, inclusive no dia em que o magistrado proferiu decisão favorável ao tucano, no sentido de dispensar seu depoimento em um dos inquéritos da Operação Lava Jato. Também são conhecidas as relações entre Gilmar Mendes e Michel Temer, e que vão além de encontros ocasionais entre os dois no Palácio do Jaburu. O atual presidente teve seu mandato salvo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) graças à atuação de seu grande parceiro na esfera judicial.

Como ministro, Gilmar Mendes pressiona seus colegas para que decidam o mais rapidamente pela absolvição dos quadros políticos na mira da Polícia Federal e do Ministério Público. Preocupado com a crise sem fim do sistema político, o aliado de Temer travou uma luta sem tréguas contra o procurador Rodrigo Janot por considerá-lo um fator de instabilidade, um indivíduo que, na ânsia de restaurar a credibilidade da ordem burguesa, estaria alimentando uma situação fora do controle, uma purgação do sistema para além do tolerável. Não há dúvidas de que a grande obsessão de Mendes é restaurar a calmaria pré-junho de 2013, de preferência com um governo tucano – muito embora Lula também sirva muito bem para isso.

Cumpre acrescentar que o engajamento de Gilmar Mendes em favor da estabilidade burguesa deve-se não somente à sua posição do ministro do STF, isto é, ao seu pertencimento à alta cúpula do Estado. O referido magistrado é também parte de uma família latifundiária que fornecia gado para a JBS de Joesley Batista no Mato Grosso. Portanto, estamos falando de alguém que é “cria” direta do agronegócio, de alguém cujos interesses coincidem pessoalmente com os interesses do capital.

Seria injusto, no entanto, reduzir as relações entre o capital e o STF à pessoa de um ministro. O próprio Luís Roberto Barroso, que qualificou Gilmar Mendes de modo tão negativo, construiu sua carreira como advogado de um grande escritório que presta serviços para o empresariado em âmbito nacional e internacional. Poderíamos mesmo citar Alexandre de Moraes, suspeito de advogar por um período para o PCC, que é também parte da burguesia brasileira. De um modo ou de outro, temos um tribunal composto por juízes que ou são capitalistas ou se aproximaram da classe capitalista em suas carreiras, o que também conta politicamente para a sua incorporação na máxima instância judicial.

Nota-se, pois, que a questão vai além de um indivíduo determinado. Vale observar que todos os ministros do STF são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal – alguns deles, inclusive, foram indicados por Lula e Dilma em seus respectivos mandatos. Isto significa que todo e qualquer ministro desse tribunal passa por um filtro político para chegar em sua posição, e que esse filtro pressupõe (além de gerar) relações mais ou menos orgânicas entre os membros da suprema corte e os quadros do sistema político-partidário. O caso mais escandaloso foi a nomeação de Alexandre de Moraes, ex-ministro da Justiça do governo Temer e filiado ao PSDB até pouco tempo antes de vestir a toga do Supremo.

Também se deve levar em conta que o STF, em sua atuação, vincula todos os órgãos judiciais inferiores em hierarquia. Seu papel principal é o de uniformizar os julgamentos no país, estabelecendo a interpretação que deve prevalecer sobre as leis e, principalmente, sobre a Constituição. Desse modo, pode-se dizer que a suprema corte, em sua função, complementa a esfera parlamentar, responsável pela criação de leis e pela realização de emendas à constituição. Esse fato, por si só, coloca a necessidade objetiva de um intercâmbio político entre os membros desse tribunal e os integrantes do sistema político. Não admira, assim, que a atual presidente do tribunal, a ministra Carmen Lúcia, também seja próxima de Temer.

O STF está, de conjunto, associado ao sistema político, por mais que pretenda parecer separado dele, invocando uma aura falaciosa de imparcialidade. Sua função é servir de ponte entre as necessidades contingentes do sistema político e a interpretação cabível às regras jurídicas. Em dadas situações, aliás, o Supremo assume o ônus de tomar decisões em temas nos quais as forças partidárias da ordem não conseguiram produzir um consenso mínimo. Não por acaso, a crise política que vem se arrastando nos últimos anos tem exigido mais decisões políticas por parte da suprema corte.

Brasília – Sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar o habeas corpus no qual a defesa do ex-presidente Lula tenta impedir eventual prisão após o fim dos recursos na segunda instância da Justiça Federal (Antonio Cruz/Agência Brasil)

Prova inequívoca da relação entre o STF e o sistema político é o seu compromisso com a governabilidade. Em 2016, num nível máximo de atrito entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, a ministra Carmen Lúcia capitulou à afronta do senador Renan Calheiros, que se recusou a deixar seu cargo, mesmo tendo recebido uma ordem judicial nesse sentido. Como se sabe, Calheiros é um pilar fundamental do sistema político, sendo capaz de transitar habilmente entre os vários setores do PMDB, o PSDB e o próprio PT, haja vista seu laço indissolúvel com Lula. Preservar um político com esse tipo de localização era uma exigência inegociável da ordem burguesa, e o Supremo soube, mesmo desmoralizado, compreender o que estava em jogo e ignorar a desobediência do senador, que se impôs altivamente sobre a corte e estancou boa parte da “hemorragia” relacionada à Operação Lava Jato.

Por tudo isso, não se pode dizer que Gilmar Mendes envergonha o STF, como afirmou o ministro Luís Roberto Barroso. O que ele faz é apenas escancarar de modo mais caricatural (e desastrado) toda a ligação política existente entre o Judiciário, o Legislativo e o próprio capital. De certo modo, ele é o representante mais fiel de sua instituição, ou ao menos o mais transparente, daí os embaraços causados. Diante disso, é inevitável concluir que o proletariado não precisa de uma composição “melhor” da corte suprema – o problema não é quem faz parte do Supremo, mas sim o tipo de poder (burguês) que ele expressa. A real necessidade da nossa classe é a ultrapassagem revolucionária do Poder Judiciário enquanto uma das instâncias fundamentais do poder burguês, enquanto um dos momentos mais sublimados do Estado, como dizia o revolucionário Karl Liebknecht.

A destruição do aparato burguês de dominação passa não apenas pelo desmonte do Congresso Nacional, mas também pela superação dos tribunais burgueses e pela criação de tribunais revolucionários dos trabalhadores, tal como ocorreu há 100 anos na Rússia sob direção bolchevique.