Um documento secreto de 1974 liberado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos que demonstra que o ex-presidente Ernesto Geisel era quem aprovava os assassinatos (“execuções sumárias”) daqueles que lutavam contra a ditadura, causou muito debate esta semana. O núcleo dirigente destes crimes era formado pelos generais: Geisel, Milton Tavares (o mesmo que tentou acabar com a greve no ABC em 1980), João Batista Figueiredo (presidente pós-Geisel) e Confúcio Danton (que assumiu a chefia no CIEX, Centro de Informações do Exército). Geisel ordenava os assassinatos, mas alertava para “grandes precauções” e que atingisse “apenas subversivos perigosos”.

O documento apresenta o número de 104 pessoas executadas sumariamente pelo CIEX. Estes números, se são corretos, se referem somente a esta instituição, pois as mortes causadas por todos os aparatos de repressão da ditadura se aproximam de 500.

As informações não são nenhuma novidade. Elio Gaspari em seu livro de 2003, “A ditadura derrotada“, já relatava que Geisel, no grupo no qual se inclui o general Dale Coutinho, conspirava para matar opositores, com Geisel afirmando: “Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”. Assim também que Confucio Danton acobertou a tortura prolongada e sistemática da filha do marechal Hasckett Hall, de quem fora ajudante de ordens, assegurando que estava sendo bem tratada[1]. João Batista Figueiredo contou ao general torturador francês Paul Aussaresses, sobre as torturas que acompanhou.[2]

Na verdade, os assassinatos foram a continuidade da politica adotada em 1973, por Médici e Geisel, de aniquilação das organizações de esquerda para pavimentar o caminho da “redemocratização, lenta e gradual”.

Estavam pressionados pelo fim do ciclo de “expansão econômica”, o início da crise, agravada pela crise do petróleo; fruto disso, a divisão da burguesia sobre qual o melhor regime para manter sua exploração; e o início das lutas da classe operária.

Foi a chamada “Operação Limpeza”, que incluía a prisão e morte dos dirigentes da AP-ML VPR, MR-8, PCBR e da ALN; a “Operação Radar”, para eliminar a direção do PCB, entre 1974 e 1976, com a morte de Herzog em outubro de 1975 e Manoel Fiel Filho em janeiro de 1976; e o massacre da Lapa, em dezembro de 1976, eliminando ou prendendo a direção do PCdoB. Era a “solução final” da cúpula militar.

Geisel e a Operação Condor
Mas esta cúpula militar não se organizou somente para realizar crimes no Brasil. Geisel e Figueiredo também foram identificados como participantes da “Operação Condor” que, coordenada pelas embaixadas norte-americanas, com a participação de chanceleres e policiais latino-americanos, e com a cumplicidade do poder judiciário, da Igreja Católica e de grandes empresários do subcontinente e multinacionais, assassinaram outros milhares de trabalhadores.

O ditador argentino Jorge Videla e o brasileiro Geisel trocaram cartas fazendo elogios mútuos e agradecendo gentilezas pela “ampla colaboração” que estavam desenvolvendo na “guerra contra a subversão”.[3] Demonstrava o acordo entre os dois para a utilização do terrorismo do Estado binacional no combate aos que lutavam contra as ditaduras. Em 1976, foram sequestrados e desaparecidos na Argentina muitos brasileiros, como descreveu o trabalho elaborado pelo Grupo de Trabalho Operação Condor, da Comissão da Verdade. Mas também argentinos, uruguaios e chilenos eram presos, torturados e sequestrados no Brasil e enviados para seus países.

Chanceleres como Azeredo da Silveira do Brasil, e Cesar Guzzetti  da Argentina, mantiveram conversas com o principal elaborador da “Operação Condor”: o norte-americano Henry Kissinger (que ganhou o Premio Nobel da Paz!), que recomendou a ambos serem eficazes na simulação no trabalho de extermínio dos inimigos. “Nós desejamos o melhor para o novo governo (Videla)…Se há coisas a fazer, vocês devem fazê-las rápido…”. :[4]

Ditadura de militares e empresários
A cúpula militar não cometeu estes crimes somente por que tinham uma sanha destruidora das organizações de esquerda, mas por que, em associação com os grandes empresários, ganharam muitos benefícios e aumentaram os seus lucros.

Multinacionais como: GM, Volks e Mercedes; bancos como Bradesco e Unibanco, e órgãos de imprensa como a Globo e Folha de S. Paulo, entre outros receberam muitos benefícios. Com Geisel particularmente as do ramo petroquímico. A criação da Petroquisa, empresa subsidiária da Petrobras, no final de 1967, fez parte do projeto do governo militar de desenvolver o setor, com os empresários brasileiros entrando de sócios e parceiros. Entre eles o Grupo Suzano Papel e Celulose; o Grupo Mariani; os bancos Econômico e Itaú; as empreiteiras Camargo Correia, Engrel e Odebrecht; as químicas Rhodia e Dow Química e o Grupo Ultra. O Estado entrou com o trabalho pesado e investimentos (via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social –BNDES- e o capital privado que recebeu os lucros). Para garantir a repressão à população e aos trabalhadores, em 1972, Camaçari foi considerada área de segurança nacional.

Em junho de 1978, o presidente Ernesto Geisel deu início oficialmente às atividades do Pólo Petroquímico de Camaçari. Em 1980, o governo militar criou uma “holding company” chamada Nordeste Química S.A. (Norquisa), para onde migraram as ações da Copene, que englobava 48 empresas do pólo. Com isso, coroou a nova estratégia de diminuir o controle do Estado sobre as empresas da área.

Geisel assumiu a direção da Norquisa em 1980 depois de sair da presidência. Com sua nomeação sendo proposta por empresários como Celso Rocha Miranda (Internacional de Seguros), Peri Igel e Paulo Cunha (Grupo Ultra), Norberto Odebrecht (Odebrecht), Ângelo Calmon de Sá (Banco Econômico), Clemente Mariani (Grupo Mariani). Todos conhecidos financiadores da ditadura.[5] Em seu governo, Geisel obrigou a Petrobras a vender nafta para empresas petroquímicas a um preço mais baixo, causando prejuízos à empresa, aos cofres públicos e à economia brasileira. Em um período que o mundo economizava petróleo dramaticamente, a Petrobras foi obrigada a aumentar suas importações, com a nafta sendo vendida a 10% dos preços internacionais. Em uma CPI da época, o deputado João Cunha denunciou que o Geisel havia recebido 200 mil ações de uma das empresas petroquímicas[6].

Brasil não puniu nenhum torturador
Causa espanto ouvir da direção do PT de que estamos em uma ditadura, ainda mais eles, que durante todos os seus governos, de Lula a Dilma, nunca prenderam um torturador, nunca puniram um empresário que se beneficiou do regime ditatorial.

A impunidade dos agentes da repressão militar e das empresas que patrocinaram ações ilegais foi uma constante nos governos petistas, e com certeza da base para a atuação deles hoje.

Temos que manter a exigência de que os agentes da repressão e as empresas que patrocinaram o regime de exceção e cometeram crimes devem ser punidos.

Não se pode usar o argumento de que a Lei da Anistia beneficiou torturadores e assassinos, pois até mesmo a Corte Interamericana de Direitos Humanos declara que estes crimes não prescrevem.

A Comissão da Verdade no Brasil serviu para apresentar muitas denúncias, mas nenhuma deles foi aproveitada pela governo Dilma para punir os verdadeiros golpistas.

O Brasil é o país da América do Sul onde os responsáveis não tiveram que pagar nenhum preço por seus crimes.

Os governos de FHC, Lula e Dilma não puniram os responsáveis e nem repararam todas as vítimas da ditadura que foram mortos, torturados, presos e perseguidos por ela. Muitos sem reparação até hoje. Sequer os arquivos militares foram todos abertos. O que é realmente impressionante na historia atual é que essa informação chegue a público por causa de um documento da CIA, que foi liberado nos EUA, enquanto no Brasil os documentos não são divulgados.

A democracia também prende e mata
O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou que a revelação de documentos da CIA não atinge o prestígio das Forças Armadas. Do seu ponto de vista, é correto. Para os patrões e o governo, a essência do Estado brasileiro é reprimir os trabalhadores. Por isso sua política é repressão e encarceramento em massa contra a população negra e pobre. Mesmo depois da ditadura, nenhum governo, nem mesmo do PT, acabou com alguma polícia militar em qualquer estado e nem mesmo com as Tropas de Choque e Rotas, por que a lógica é: a repressão tem que continuar.

Há claramente uma diferença entre um regime ditatorial onde as liberdades democráticas não são respeitadas para ninguém e a democracia burguesa clássica, chamada atualmente de Estado Democrático de Direito, onde a perseguição política não é generalizada.

Mas em relação aos direitos democráticos dos trabalhadores e dos mais pobres, continuou tudo como antes. A verdade é que na democracia burguesa no Brasil, para a classe operária e os setores mais explorados da sociedade, a diferença com o que ocorria na ditadura é bem menor. Isso ocorre por que esta “democracia” também é uma ditadura, uma ditadura dos ricos e patrões para reprimir os trabalhadores, e por isso todas suas instituições estão voltadas para esta repressão.

Quando o PT fala que houve golpe, tenta passar a ideia que até o governo de Dilma vivíamos em uma verdadeira ‘democracia com justiça social’, em que o povo tinha seus direitos respeitados, o poder econômico estava de joelhos e que, de repente, tudo isso veio para trás, através do impeachment. Se fosse verdade, teríamos que sair na defesa do governo do PT. Mas isso é uma farsa: nos governos do PT a política econômica já era neoliberal, os direitos dos trabalhadores já estavam sendo atacados, os patrões se fortaleceram. Mandavam na economia os mesmos grupos econômicos que mandavam na época da ditadura de Médici e Geisel, as empreiteiras (Odebrecht ou Camargo Correa), bancos e multinacionais.

Em nosso país, mesmo no governo dos petistas, o aparato policial e o poder judiciário estão a serviço dos ricos e dos patrões. Greves são consideradas ilegais e piquetes e manifestações são violentamente reprimidos.

No Brasil, são assassinadas anualmente mais de 50 mil pessoas. Nos últimos 10 anos, chegamos a cerca de 600.000 mortes. Número superior às mortes na maioria dos conflitos armados no mundo. Esta violência do Estado tem “endereço, gênero, cor e idade”, são: jovens negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, escolaridade baixa e morador da periferia. Cerca de 71% das pessoas assassinadas são negras.

Cerca de 12 mulheres (49.500 por ano) e 135 estupros foram realizados por dia em 2016. O Brasil ocupa a quinta posição em número de feminicídios no mundo. Mas a política do Estado de defesa das mulheres é, no mínimo vergonhosa. Mais de 70% não denunciam os crimes, por que não há investigação especial, casas de auxílio, e muitas das que denunciaram são mortas sem nenhuma proteção.

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Com a maior taxa de crescimento, em 2015, foi de 6%. A população carcerária brasileira cresceu 267% em 14 anos (2000 a 2014). Temos quase 2 presos por vaga. Cerca de 56% dos presos homens tem entre 18 e 29 anos; 62% são negros; 75,08% têm só o ensino fundamental completo. O trágico destaque é que neste período o aumento da população feminina foi de 567,4%. Em geral, jovens, mães solteiras, responsáveis do sustento familiar, negras e pobres. Destes presos, cerca de 45% estão em regime de prisão provisória, não foram julgados pelos crimes que são acusados, mas já estão presos. Pelo menos 48% são acusados por crimes onde não foi usada diretamente a violência. Em torno de 68% dos casos, a vinculação penal é por envolvimento com o tráfico de drogas. Réus primários e criminosos não violentos convivem com presos violentos, assassinos, estupradores, e facções criminosas.

A nova Lei de Drogas (Lei n. 11.343/06), feita por Lula (ele mesmo), então presidente da República, aumentou a pena mínima de tráfico para cinco anos de reclusão (com o máximo de quinze), com o objetivo de impedir a aplicação das penas alternativas, somente tendo direito à liberdade condicional com dois terços da pena cumprida, desde que não fosse reincidente específico. Como a maioria da população carcerária pobre é acusada de tráfico de drogas, não tem direito a penas alternativas ou liberdade condicional.

A verdade é que a atual sociedade capitalista não tem o menor interesse em acabar com a criminalidade. Primeiro porque ela é fruto da miséria, e os grandes capitalistas lucram com a miséria, além disso as despesas do Estado estão direcionadas para a repressão e não para a socialização. A violência do Estado é um instrumento para atemorizar a maioria da população pobre para que ela não se insurja ou se rebele. Mesmo nas maiores democracias do mundo, os trabalhadores não tem direito irrestrito de greve e manifestação. No mínimo, se fizer greve é demitido. Na “democracia” Argentina, dezenas de trabalhadores estão presos, condenados e perseguidos, como Sebastian Romero, simplesmente por que foram à rua protestar contra as reformas do governo, como no Brasil.

Contra as ditaduras clássicas e a farsa das democracias dos ricos, é necessário que os operários e a população pobre e oprimida construam a sua própria sociedade com um governo dos trabalhadores que redirecione o Estado para seu bem-estar.

[1]              A Ditadura Derrotada 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca. 544 páginas.

[2]              Leineide Duarte-Plon, A tortura como arma de guerra

[3]              Por exemplo em uma carta de 15 de dezembro de 1976 publicada pela revista Carta Maior.

[4]                Documentos do “Arquivo Nacional de Segurança”

[5]              Materia de Aluízio Maranhão, publicada na revista Isto É em 26 de agosto de 1980

[6]              O Estado de São Paulo