A chegada de Fernando Gabeira ao segundo turno das eleições municipais do Rio de Janeiro (RJ) está permeada por diversas questões que extrapolam em muito a simples definição do próximo inquilino do Palácio da Cidade. A tão difundida “onda Gabeira” é, de fato, representativa das atuais dinâmicas políticas e econômicas do Brasil e do mundo. Resta saber onde realmente ela vai estourar, ou pelo menos identificar para qual lado a maré está puxando.

A campanha da coligação PV-PSDB-PPS fez uma aposta ousada, mas que tem se demonstrado bem-sucedida até o momento. Trata-se da recuperação do discurso a-político, ou anti-político, que teve seu ciclo de apogeu e declínio durante a década de 1990. Não é preciso ser nenhum doutor em ciência política ou especialista em marketing eleitoral para identificar o principal mote da campanha de Gabeira: “Vamos fazer uma administração técnica, sustentada por especialistas qualificados, capazes de identificar e resolver os verdadeiros problemas da cidade. Em nossa gestão os partidos políticos ficarão mais afastados”. Isso sem esquecer o clamor pelo tal “choque de capitalismo” proposto pelo candidato verde-tucano, assim como suas propostas de “enxugar a máquina” administrativa, diminuindo o peso do Estado para supostamente aumentar sua eficiência.

Pois bem. Nada de muito original, certo? Em termos nacionais, os outros dois Fernandos – o Collor e o Henrique Cardoso – também não se cansaram de repetir os mantras tecnocráticos característicos do neoliberalismo. Agora o terceiro Fernando, com certo atraso, vem para completar a trilogia. A substituição da gestão política pela administração, da economia pelo mercado e das escolhas ideológicas pelo pragmatismo foram as marcas da grande ofensiva neoliberal de uma década e meia atrás. Afinal de contas, tínhamos atingido o “fim da história”, o capitalismo liberal havia provado não apenas sua superioridade como sistema organizador da sociedade, mas também sua inevitabilidade e universalidade.

Nesse sentido, as disputas e escolhas antes conhecidas como políticas reduziram-se à competição por maior eficiência administrativa, algo que seria alcançado por quem fosse mais capaz de estimular o mercado – sempre “ótimo” em sua alocação de recursos – e aproveitar as oportunidades da globalização. Para tanto, “ajustes estruturais” deveriam ser promovidos o quanto antes, o que significava cortes dos “excessivos” gastos públicos com saúde, educação, infra-estrutura etc.

Enfim, era a luta pela geração de superávits primários através do corte de despesas (para os mais necessitados), já que crescimento econômico não haveria mesmo. No Brasil, a materialização disso tudo foi a famosa “lei de responsabilidade fiscal”, que ameaçava com cadeia o governante que insistisse em investir em serviços públicos para a base da pirâmide social. Ou você acredita no poder do mercado ou vai pro xadrez!

E as ideologias? Bom, nada disso era tido como muito ideológico; era simplesmente o certo, o óbvio, o pragmático. Não se deveria perder mais tempo em inúteis e retrógrados debates filosóficos sobre as necessidades humanas e sociais: o pensamento único – também conhecido como Consenso de Washington – trazia todas as respostas importantes. E melhor, antes mesmo das perguntas! Conforme a previsão da Sra. Margareth Thatcher dez anos antes, “there were no alternatives”. Toda voz discordante sofreria a retaliação dos mercados e, se não bastasse, a boa e velha polícia acabava com o assunto. O banho de sangue que se seguiu ao famoso Caracazo venezuelano em 1989 mostrou como a repressão aos “ignorantes” que não aceitavam as verdades da Nova Ordem Mundial estava pronta para agir, repetindo o trágico destino dos mineiros britânicos alguns anos antes.

Mas o que isso tem a ver com o Rio de Janeiro em 2008? Aparentemente nada, diriam os mais apressados. Afinal de contas, o neoliberalismo entrou em uma crise gigantesca ainda em meados da década passada. O declínio neoliberal foi diretamente proporcional à incapacidade de cumprir suas promessas. Em vez de prosperidade, mais pobreza, miséria e dívidas; em vez de melhores serviços (agora privatizados), tarifas muito mais caras e qualidade duvidosa; em vez de paz, violência e guerras. Em pouco tempo, não se obtinha mais legitimidade para o discurso neoliberal em praticamente nenhuma parte do mundo. O mercado auto-regulado passou de panacéia à causa de todos os problemas. No Brasil, o PSDB – grande beneficiário do momento de glória neoliberal – entrou em uma crise sem fim, perdendo duas eleições presidenciais seguidas e parecendo não compreender realmente o motivo.

Por que então requentar essa discussão agora; apenas pra “chutar o cachorro morto” do neoliberalismo? Não. Infelizmente, não se trata apenas celebrar ou mesmo tripudiar sobre a debacle neoliberal. Alguns motivos ainda tornam o neoliberalismo digno de nota. O mais importante é sua atualidade e vigor, mesmo com todas as crises. A contradição é apenas aparente: as práticas econômicas de cunho neoliberal persistem quase que intocadas, o que é evidenciado sazonalmente pelas mais recentes crises financeiras; no entanto o discurso radical e militante do neoliberalismo foi por água abaixo, dando lugar ao seu eficaz substituto, o social-liberalismo.

Em outras palavras, a catástrofe social gerada pelas políticas pró-mercado tornou impossível sustentar o discurso que relegava aos miseráveis a culpa por seu próprio fracasso. Era preciso encontrar uma nova fórmula, algo que fizesse ao menos um aceno aos pobres e marginalizados antes que as convulsões sociais saíssem de controle. Daí a guinada social-liberal, encarnada melhor que ninguém por Lula da Silva: mantém-se a política macroeconômica (neo)liberal e adiciona-se um “componente social” discursivo e residualmente econômico; ou seja, um bolsa-família aqui, somado à um discurso pró-pobre/anti-elites acolá e pronto! Como já é de praxe nos países de capitalismo tardio desde o século XIX, algumas mudanças devem ser eventualmente feitas para que se mantenha intocada a estrutura principal do sistema, ou seja, “é preciso mudar alguma coisa para manter tudo como estava antes”.

E pareceu funcionar muito bem, não apenas no Brasil – onde Lula chega à reta final de seu segundo mandato com popularidade recorde – mas em toda parte. Até o Banco Mundial fez sua autocrítica! O neoliberalismo conseguiu se apropriar de toda a insatisfação contra ele mesmo através da ascensão do social-liberalismo, que o sustenta ao mesmo tempo em que diz estar produzindo algo novo, alternativo, as vezes até chamado de “esquerda”… Realmente fantástico! Se existe alguma lei do capitalismo deve ter algo a ver com sua incrível capacidade de cooptação da insatisfação social em prol dos habituais beneficiários do sistema.

De fato a propaganda é a alma do negócio: neoliberalismo maquiado com um blush social-liberal pra dar certo tom avermelhado e ser capaz de se revender. E é exatamente esse o significado da política nos atuais tempos difíceis: um negócio. Daí precisarmos de marketeiros para vender as mercadorias eleitorais. A propósito, Gabeira contratou os caríssimos serviços da equipe de Lula Vieira, figura fácil nas campanhas tucanas.

Mas então, que saco! “E o Rio?”, pergunta o último leitor que teve paciência até agora. Agradecendo a atenção dispensada, respondo finalmente. A campanha de Gabeira representou o retorno (triunfal?) do mesmo discurso neoliberal, tecnocrático e apolítico de tempos atrás, mesmo quando o social-liberalismo parecia tê-lo substituído definitivamente. Após alguns anos à deriva (Serra), sem saber se assumia heroicamente o discurso neoliberal (Alkmin) ou se descambava de vez pro social-liberal (Aécio), o PSDB parece utilizar o Rio de Janeiro como tubo de ensaio para sua mais nova ofensiva radical-liberalizante, provavelmente com vistas à eleição presidencial de 2010.

O surpreendente é que tal atitude foi decidida, por um lado, durante o apogeu do social-liberalismo e, por outro, em plena crise global do sistema mercadológico, quando até mesmo os economistas liberais falam em necessidade de regulação e o governo norte-americano, pasmem!, ataca com estatizações. Estaria o PSDB na contramão da história? Parece que não, segundo o eleitorado carioca. Afinal de contas, a “onda” ainda ganha força e Eduardo Paes, recente discípulo do social-liberalismo de Lula e Cabral, parece estar em vias de tomar um belo caldo e morrer na praia.

Independente do resultado eleitoral, que irá mudar pouco ou quase nada para a maioria da população da cidade, o retorno da ofensiva liberal aparece como grande destaque da “festa da democracia”, para a qual, infelizmente, os convites são limitados a alguns poucos VIPs. A despolitização massiva apresentada por Gabeira como seu “projeto de governo” é deveras assustadora. Não apenas porque representa a possibilidade do retorno neoliberal em sua forma mais agressiva, mas porque abre espaço para despolitizações subseqüentes, como é o caso da questão da segurança pública, por exemplo. Se o grande projeto de Gabeira é despolitizar item por item do debate político carioca, tudo leva a crer que a securitização da segurança pública também só tenderá a aumentar.

Simplificando, securitizar é tratar um assunto (político, social, cultural ou econômico) como se dissesse respeito exclusivamente à “esfera” da segurança, bem ao estilo Bush, Uribe, Livini/Sharon etc. Logo, segurança pública se resolveria apenas com BOPE, CORE, Operação Copabacana, “Rapa” da Guarda Municipal (em breve com armas de fogo), criminalização da pobreza apelidada de “combate à desordem urbana” e por aí em diante.

Gabeira se tornou o reconvertido tardio da esquerda brasileira ao neoliberalismo quando alguns de seus predecessores já começavam a se arrepender do afã com o qual encamparam o discurso tecnocrático, asséptico e excessivamente mercadológico de outrora. Não à toa a “revista” Veja o adora. Caso se transforme de fato no tão aguardado (pela direita) “Fernando III, a Missão”, ele pode estar dando início ao grande contra-ataque radical-neoliberal que tem tudo pra agravar ainda mais a já desesperadora situação social da cidade. Sua postura abertamente elitista e preconceituosa durante a campanha infelizmente apenas corrobora tal diagnóstico, tornando pouco provável que alguma “visão suburbana” sobre política seja levada em conta no momento de decidir as prioridades do município.

Além de mais miséria, favelização galopante (“esses pobres insistem em se reproduzir!”), destruição ambiental, caos no transporte e infra-estrutura e segregação sócio-territorial, corremos o risco de ver se tornar realidade a última piada sobre as caríssimas pick-ups importadas – provavelmente pagas com as generosas doações de empreiteiras e bancos de investimento – da campanha do PSDB (quer dizer, do PV e do PPS também). Ou seja, se o governo do Estado tem seu “Caveirão” para manter o controle social à custa de muito sangue, o município do Rio já pode se orgulhar de estar produzindo sua própria máquina mortífera. É o “Gabeirão”, prancha sob medida pra surfar essa nova-velha onda.

Como a candidatura de Eduardo Paes evidentemente nem de longe representa uma alternativa séria a tudo isso, o cenário político-institucional apresenta-se como realmente desolador. Seja sob sua forma radical com Gabeira ou em sua confusa formação social-liberal com Paes, a onda que continua quebrando sobre nossa cabeça é a mesma: trata-se do conhecido conjunto de práticas capitalistas-neoliberais que tornam nossa praia a cada vez mais inóspita e nosso mar cada vez mais traiçoeiro. Enquanto não produzirmos uma onda, ou pelo menos uma marola mais forte, num sentido verdadeiramente contrário, nada tende a mudar. Quer dizer, pode sim, piorar. Pena de nós, cariocas.

*Miguel Borba de Sá é historiador da UFRJ e mestrando em Relações Internacionais na PUC-Rio). É simpatizante do PSTU.