Redação

 

 

Chegando de viagem, acabei indo quase que direto pra Funarte que está ocupada pelos trabalhadores da cultura e das artes. A briga, como todo mundo deve saber, é, pra começar, contra o fechamento do Ministério da Cultura pelo Temer; mas tem uma extensa pauta relacionada ao sucateamento do setor, à falta de verbas, aos ataques aos direitos trabalhistas, dentre outras coisas.

Valeu muitíssimo ter ido. O espaço está borbulhando com manifestações artísticas etc. e o ato foi bastante expressivo (sou péssimo em números, mas não arriscaria menos de mil pessoas). E valem alguns comentários sobre o que vi lá.

Primeiro, havia um visível clima “antigolpe” entre os participantes. E acho que todo mundo já sabe o que penso disto. Contudo, o que me chamou a atenção é que, apesar de algumas falas irem neste sentido, não foi isto que deu o tom da maioria das intervenções feitas (boa parte por negros da periferia) nem nas palavras de ordem durante o ato, onde a defesa da cultura foi intercalada pelo grito uníssono do “Fora Temer”. Também neste setor há uma nostalgia cega ou ingenuidade em relação ao que foram os governos do PT.

Várias das falas lembraram que nem o MinC nem as políticas culturais jamais se voltaram para a cultura e a arte “periféricas”. Porque também no setor prevaleceu a lógica neoliberal: o tratamento das artes e da cultura como mercadorias submetidas aos patrocínios privados (agraciados com gordas isenções de impostos); leis de fomento feitas sob medida para incentivar as produções “globais” que valorizam o estrelismo individual ao invés da produção coletiva e popular; uma espécie de “censura” imposta pelo simples fato de que não há burguês conseqüente que coloque dinheiro em produções que questionem a ordem, denunciem o Capital, discutam as opressões, o aborto etc. etc..

Como também dou aulas num Centro Livre de Artes Cênicas que atende majoritariamente jovens das periferias do ABC que atuam no teatro de grupo, fazem arte na rua, nos circos e espaços ditos alternativos, pesquisam novas linguagens etc., conheço as dificuldades que eles (as) têm para montar seus espetáculos e trabalhos. A começar pela burocracia demente que serve como obstáculo pra lá de concreto.

Exatamente por isto, a enorme maioria das falas apontou para a necessidade de que o movimento não se restrinja à luta contra o fechamento do MinC e vá para muito além disso. Que questione também as políticas em curso e suas perspectivas eurocêntricas, elitistas, machistas, LGBTfóbicas etc. Que as ocupações que se espalharam pelo país devem servir como palcos para a construção de políticas culturais realmente voltadas para os interesses e necessidades da maioria da população, principalmente aquela mais carente de opções culturais e condições para dar vazão a sua criatividade.

Ao ler o manifesto do Coletivo dos Artistas Socialistas (filiado à CSP-Conlutas), Mateus Fávero destacou que “Temer inicia seu mandato com mãos de ferro. Aprofunda as políticas do governo Dilma e faz um ataque direto aos trabalhadores da Cultura com o fechamento do Ministério da Cultura”, encerrando com um sonoro “Fora Temer! Fora Todos! Eleições gerais, já!”. A mesma coisa que foi dita por um cara que falou logo depois do Mateus.

Falando pelo Quilombo, lembrei que para nós, os problemas que enfrentamos na cultura e em todos demais setores não são resultados de nenhuma mudança “abrupta” que tenha ocorrido nas últimas semanas. O ministério branco, masculino aparentemente hétero de Temer é, inegavelmente, a expressão de um governo mais conservador que tenta sinalizar para o mercado e a classe média que irá colocar ordem na casa. A Casa-Grande, obviamente.

Contudo, antes mesmo dele, em setembro passado, Dilma já havia fundido/esvaziado as secretarias de mulheres, promoção de políticas raciais e Direitos Humanos. Muito antes ainda, LGBT’s viram o kit antihomofobia e o PLC 122 engavetados em função das negociatas do governo com fundamentalistas e conversadores de toda ordem.

Negros e negras viram o Estatuto da Igualdade Racial se desfigurando pelas mesmas razões e a ineficácia das políticas do governo ficou expressa tragicamente na escalada do genocídio da juventude negra (em 2002, a possibilidade de um jovem negro ser assassinado era 43% maior de que a de um branco; em 2015, já era cerca de 160% maior). Enquanto isso, sob a chibata de Kátia Abreu, quilombolas e indígenas foram atacados com violência crescente.

Por estas e outras, particularmente no que se refere à juventude negra da periferia, é preciso uma luta por uma transformação radical nas políticas para a cultura e as artes. É preciso criar canais para que aquilo que já brota nos saraus, no hip hop, nos grupos e coletivos das quebradas possa se manifestar com liberdade, autonomia e apoio.

E também lembrei que o que está acontecendo na Funarte é o caminho pra construir algo como isto. Ocupar, lutar e resistir é o grito que tá ecoando país afora. Nas mais de 80 escolas ocupadas no Rio Grande do Sul, nas ETEC’s, nas lições deixadas pelos secundaristas no ano passado, nas ocupações dos postos do Incra por quilombolas e indígenas, na fábrica da MABE em Campinas, nas ações do movimento popular etc.

É ali, no interior da ocupação, que ideias estão sendo trocadas e novos projetos sendo construídos. Projetos que, para nós do Quilombo Raça e Classe, têm que ter uma lógica quilombola como foi “denunciado” por um espião enviada pelo governo do Recife: “Entre eles, tudo que é produzido é distribuído de acordo com o trabalho e a necessidade de cada um”.

Acreditamos que isto também é válido para a cultura e as artes. A produção coletiva do fazer artístico e cultural, baseada nos desejos e necessidades da maioria da população e particularmente dos setores que têm sido historicamente oprimidos e explorados e mais alienados da produção artísitico-cultural.

Por isso, também pra nós, a ocupação é parte de uma luta maior. É preciso barrar o fechamento do MinC. É preciso colocar Temer pra fora. É preciso que coloquemos todos pra fora e convoquemos eleições gerais. Mas é preciso mais. É preciso que as ocupações e lutas se unifiquem. É preciso que os trabalhadores da cultura e das artes se juntem em uma luta conjunta com a juventude, os trabalhadores das demais categorias e os setores oprimidos pra que construamos uma sociedade quilombola. E, pra isso, é necessário que continuemos ocupando o que for necessário e também as ruas, rumo a uma greve geral que sacuda esta pasmaceira toda.

No começo de minha fala, disse que sempre digo pros meus alunos (e tive orgulho de ver alguns deles lá) que a arte só se faz arte se está sintonizada com o mundo, antenada com a realidade e voltada para a libertação e livre expressão do “outro”. É este espetáculo que estão ensaiando na Funarte. E que a temporada seja longa! Evoé!