Dirigente haitiano, Didier Dominique

Sindicalista denuncia o verdadeiro papel das tropas de ocupação no país e a volta do duvalierismo sob o novo governoUm ano após as conturbadas eleições que deram a vitória ao atual presidente do país, Michel Martelly, pouca coisa mudou no país ocupado pelas tropas da ONU há sete anos. Fica cada vez mais claro o plano do imperialismo de transformar o país num mero depósito de mão-de-obra barata às multinacionais. O novo governo, por sua vez, vai assumindo feições cada vez mais autoritárias, com o aumento da influência do ex-ditador Jean-Claude Duvalier (Baby Doc) e a criação de brigadas paramilitares, reeditando os ‘tonton macoute’ (temíveis milícias paramilitares que serviram à ditadura Papa Doc e seu filho, Baby Doc, entre os anos de 1959 a 1986).

O Portal do PSTU conversou com o Didier Dominique, dirigente da central sindical Batay Ouvriye (Batalha Operária), que falou sobre os desafios colocados por essa nova situação no Haiti.

Portal do PSTU – O que mudou no Haiti com a eleição do novo presidente
As eleições foram marcadas por corrupção e fraude por todos os lados. Teve urnas destruídas, gente que entrou armada nos locais de votação. No entanto, o imperialismo preferia um governo e um Estado globalmente mais eficazes para que os investidores pudessem explorar melhor a mão-do-bra haitiana. Então, por meio de uma comissão da OEA [Organização dos Estados Americanos], que fez um cálculo que ninguém entende, disseram que a candidatura de Jude Celestin (candidato do ex-presidente Préval) não estaria no segundo turno. Assim, nas eleições os candidatos Mirlande Manigat e Michel Martelly foram para a disputa. Ou seja, o que vimos foi outra fraude.

É preciso dizer também que a participação foi muito fraca, com só 25% do eleitorado em cada um dos turnos. E Martelly ganha no segundo turno com 67%, um índice semelhante à eleição de [Jean Bertrand] Aristides. Mas na época em que Aristides foi eleito cerca de 80% dos eleitores foram votar. Com Martelly foram apenas 25%. Ou seja, não existe essa história de que o atual presidente conta com a maioria do apoio da população.

Por outro lado, a eleição de Michael Martelly significa um rechaço aos políticos tradicionais. Martelly que é um cantor muito popular, muito provocador, surge como candidato perfeito para esse rechaço. Mas, apesar de não ficar muito claro nas eleições, Martelly é de ultradireita. Foi um jovem ‘macout’ de Duvalier, que entrou no Exército antes de se tornar artista. No golpe de Estado contra Aristides, em 1991, o chefe do Exército fazia a articulação do campo golpista. Mas quem fazia o trabalho sujo, a matança de 5 mil ativistas do movimento popular, é o Coronel Michel François, chefe da polícia, que depois do massacre se autodenominou “Sweet mickey” . Pois então, Martelly adotou esse apelido como seu nome artístico. Ou seja, recorre a um nome de um sádico criminoso e, na prática, apóia o massacre e o golpe de Estado.

Agora o que vemos é um ‘neoduvalierismo’. Claro, disfarçado de “mudança” e “renovação”. Hoje, por exemplo, o primeiro-ministro Garry Conille, é filho de um macout duvalierista. Um dos filhos de Duvalier está trabalhando no gabinete de Martelly. Seu governo aplica os mesmos métodos de Duvalier, ou seja a força e a ditadura. Por exemplo, no campo os duvalieristas voltam a recuperar as suas terras. E, agora, com a polícia e a Minustah, os latifundiários de antes voltam a fazer uma contrarreforma agrária. A Minustah dá apoio ao desalojamento dos camponeses de suas terras, onde estão desde 1986 (após queda de Baby Doc). Muitos ativistas da Batay Ouvriye então neste enfrentamento no campo. Quando a Minustah sai, deixa para trás alguns “gerente”, “guardiões”, pessoas armadas fazendo a segurança.

Como o governo está montando as suas brigadas nas cidades?
Nas cidades o conflito maior se localiza nas fábricas do setor têxtil. O sindicato dos trabalhadores do setor está sendo atacado. Alguns burgueses, empresários, estão dizendo “fora qualquer atividade sindical”. Supostamente, a atividade sindical está protegida pelo Código Nacional de Trabalho e pela Constituição. Mas, de maneira descarada, os burgueses sentem extrema confiança para atacar os trabalhadores. Isso reflete outro aspecto do retorno do duvalierismo. A isso se soma a repressão às manifestações, contra a distribuição de panfletos. Quando distribuímos panfletos para protestar fomos recebidos por policiais encapuzados que atiraram bala de borracha. Além disso, está se organizando o exército duvalierista, com os comandantes de antes, e também com a base de Martelly. É um exército ‘macout’ concretamente. Paralelamente está se organizando o SIN (Serviço Secreto Nacional) para controlar os bairros populares etc. O coração da coisa toda é a organização de um projeto imperialista de exploração. Paga-se R$ 4 por dia, R$ 80 ao mês como salário aos trabalhadores. Os operários não comem ao meio dia para poderem levar alguma coisa para casa. É uma situação muito difícil para os trabalhadores. Esse é o Plano [Bill] Clinton que, mesmo antes do terremoto, trouxe ao país 150 investidores estrangeiros, 12 deles brasileiros. O plano é investir no Haiti e explorar a mão-de -obra mais barata das Américas criando 40 Zonas Francas para explorar uma mão-de-obra controlada e reprimida como escravos. Se antes os governos populistas não tinham como orientação reprimir e matar para explorar a classe trabalhadora, agora Martelly tem essa orientação. Está escrito nos estatutos do SIN que seu objetivo é lutar contra os “terroristas” que não estão de acordo com sua visão econômica. Papa Doc escrevia, nos anos 1960, à aqueles que se opunham a sua “ambição econômica”: ‘vai haver um Himalaia de cadáveres’.


Atual presidente do Haiti, Michel Martelly

Conte um pouco sobre o período de Papa Doc
Quando Duvalier sobe há dois projetos da classe dominante haitiana. Um é o da velha oligarquia, que defende o projeto da agroindústria, seguindo o padrão da ocupação norte-americana, que impôs esse modelo de grandes agroindústrias. No entanto, outro grupo dos latifundiários médios, os “nacionalistas”, que dizem que estão de acordo com este projeto, mas reivindicam sua participação para que não sejam engolidos pelos grandes latifundiários. Essa é a gente de Duvalier que depois ganha as eleições.

Mas para esta forma político-econômica se tornar capitalista, sem revolução, foi um processo longo e violento. Essa foi o papel de Duvalier. Logrou-se algumas conquistas sob seu governo, como o código de trabalho. Mas o plano geral era a superexploração. Para manter sua força, juntam-se à luta imperialista contra o comunismo e a ameaça da Revolução Cubana. O Haiti é entregue ao imperialismo como base para essa luta. E entregam o país à superexploração da mão-de-obra. Martelly agora significa a força pra impor isso. Dizem eles que vão ‘dar trabalho’. Bom, nós dissemos que na época colonial também se dava trabalho e não havia desemprego, mas escravidão.

Quais são as semelhanças entre os tonton macoutes e as brigadas que Materlly organiza hoje?
Os macoute exerciam um controle nos bairros populares que não era só um controle político como um controle também econômico. Neste plano imperialista de mão-de-obra barata e migração, Duvalier usava uma técnica. Ele tomava as terras de seus oponentes no exílio, mortos, ou na prisão, e dava a algum grupo organizado de macoute, que alugava essa terra aos migrantes, trabalhadores e camponeses. Cooptavam-nos, havia grupos políticos, tinham todo uma estrutura de controle, de espionagem, para estender a teia. E também o controle econômico e de serviços. Os principais responsáveis recebiam a água e a luz, e vendiam esses serviços. Por isso que é tão difícil para um novo tipo de Estado dar serviços, pois esses serviços estão nas mãos dos macoute. Quando Duvalier sai, esses serviços já não existem, estavam todos destruídos. Pouco a pouco, já nos anos 1990, entra a droga, as gangues. Necessários para eles para espalhar o terror novamente. E para exercer o controle nos bairros populares. Este tipo de controle chega a entrar em contradição com certa pequena burguesia e até com a própria burguesa, na época dos sequestros. Então chega a afetar certo setor da classe dominante. Então, tinha-se que eliminar essas gangues. Prendem e matam os líderes das gangues e voltam a ter ocontrole. E nas eleições agora havia disputa sobre a base dessas gangues, entre Martely e Jude Celestin. Por pouco não houve uma guerra civil entre os bairros populares. E agora, a gente de Martelly, mas também de Préval e Celestin, se rearticulam com muito mais gente, sob o controle da classe dominante, que quer dizer, do imperialismo. Então, eles querem reconstruir o exército macoute e aí se há esse novo exército, a Minustah pode retroceder. Esse é o seu plano.


Tonton Macoute patrulha ruas de Porto Príncipe durante ditadura Duvalier

Qual a taxa de desemprego no país?
É de 72%. Há países que, quando chegam a 12% de desemprego, é uma catástrofe. Vê-se pelas ruas um monte de gente andando, sem emprego nem nada, ou em empregos que chamam de ‘informais’, é uma outra forma de ajustar-se. E é muito difícil. Vou dar 2 exemplos. Primeiro para se ter uma ideia do que é o ‘Plano Clinton’. Clinton, mandado pela ONU, e também por Obama, é presidente da Comissão Interina de Reconstrução do Haiti. Tem 12 bilhões de dólares em suas mãos, arrecadado do mundo inteiro. No Haiti há um gabinete para reconstrução, infra-estrutura, saúde, etc. Em cada uma dessas áreas há um chefe de gabinete haitiano. Daí veio o primeiro-ministro do Haiti. Martelly tinha que escolher um primeiro-ministro e escolhe um chefe de gabinete de Clinto. E é um tipo que trabalhou na ONU. Entende? Segundo, no sul do país as cidades estão destruídas. O primeiro projeto da Comissão de Reconstrução é de uma zona franca ao norte do país! Nada de reconstrução das cidades destruídas. E quem está organizando essa zona franca é Hillary Clinton, do Departamento de Estado dos EUA.

Com o tempo o Brasil parece perder importância no Haiti
Claro, o Brasil desde o terremoto foi, eu diria, muito ridicularizado, humilhado, pelas forças norte-americanas. Antes o Brasil, pela política de Lula, de tentar um assento no Conselho de Segurança da ONU, aparece ajudando aos haitianos. Quando o terremoto ocorre, para começar, quase morre a direção política da Minustah. Estavam em reunião em um hotel que caiu e morreram 12 do grupo de direção. Caem vários estabelecimentos da Minustah, morrem soldados, etc. Terceiro, toda a Minustah que estava no Haiti nessa época sente o choque do terremoto. E realmente, durante uns dez dias, a Minustah desaparece. Dois dias depois aparecem os norte-americanos, e tomam o aeroporto sem pedir licença a ninguém. Cinco dias estão 22 mil homens, tomando praticamente todo o território. E aí acontecem coisas como o seguinte: às 18h os americanos decretavam toque de recolher. Não formalmente, mas na prática foi o que fizeram. Diziam para fechar o comércio, não sair ninguém de casa. E a Minustah saiu em seus tanques para ajudar a impor o toque. E os americanos mandaram a Minustah para dentro também! ‘Não, não, não, ninguém! A não ser os americanos’. E mandaram a Minustah para dentro de seus acampamentos. O Brasil, disseram, por pouco não se vai.

Qual a posição oficial do governo Martelly em relação a Minustah?
Igual o governo anterior. Acabam de renovar o contrato de permanência da Minustah no dia 15 de outubro. Quando havia todo aquele movimento de ‘ocupar’ Wall Street, a Praça do Sol na Espanha, em Portugal, Itália, França; no Haiti é o dia em que se renova em todo o ano a ocupação do país. Dizem que, pouco a pouco, de maneira progressiva ela se vai. Mas a Minustah não se vai se o governo haitiano quer ou não. Ela só vai embora se ela quiser, ou se tem uma mobilização, uma luta contra ela. E tem outro problema. Os duvalieristas dizem também ‘fora a Minustah’, porque são eles que vão integrar o novo Exército. Mas não querem ‘fora Minustah’ como nós, querem só com uma progressão um pouco mais rápida do que a burguesia e a oligarquia querem. Eles supõem que vão representar a força com o fim da Minustah. E isso é perigoso, por isso que as consígnias devem ser mais precisas: ‘Fora a Minustah e ‘abaixo o Exército Macoute’ que estão construindo.

A Minustah sofre no último período um processo de grande desgaste ante a população, como o governo lida com isso?
O governo não se preocupa com isso. Protege a Minustah sempre. Pesquisas feitas por americanos, franceses, holandeses, provam que foi o batalhão do Nepal da ONU que trouxe o cólera. E isso nunca foi declarado formalmente. O governo também acoberta os crimes dos soldados da ONU. Há dois anos, em Cap-Haitien, um jovem que devia um pouco de dinheiro a um soldado foi encontrado enforcado. E recentemente 5 soldaddos uruguaios violaram um jovem haitiano de 18 anos. E também 150 soldados do Sri Lanka fizeram horrores a meninas de 12, 13, 14 anos. E não aconteceu nada com esses 150 soldados. A organização Sofa tem acompanhado o caso e sabe que não foi feito nada a eles. E esses são os casos divulgados. Mas há um monte que não se conhece. Então, a Minustah está cumprindo um papel imoral, eu diria. Ocorre que a dominação é tão forte, que essas ações aparecem naturalmente.