Quando a causa está quase de todo perdida, deve-se tudo arriscar

(Sabedoria popular portuguesa)

 

Na eleição indireta de 1985, o PT decidiu, por amplíssima maioria, o boicote ao Colégio Eleitoral e se negou a liberar deputados a votarem na chapa Tancredo Neves/José Sarney contra Paulo Maluf. O PT considerou, naquelas circunstâncias, que a votação no Colégio Eleitoral era ilegítima e, portanto, não depositaria nenhum voto em Tancredo.

As razões que levaram à constituição de uma esmagadora maioria no PT contra a participação no Colégio Eleitoral eram, todavia, variadas. Para aqueles que abraçavam uma perspectiva socialdemocrata e se apoiavam, essencialmente, na classe média urbana, a recusa do voto em Tancredo se justificava em função do compromisso com a campanha das Diretas em 1984. Para as correntes que se inspiravam no marxismo, e tinham como estratégia a revolução brasileira e a independência política da classe trabalhadora, a oposição ao “acordão” se justificava, também, porque a chapa Tancredo/Sarney representava um projeto burguês ao qual o PT deveria fazer oposição desde o início.

Três entre os oito deputados federais do PT, Bete Mendes e José Eudes, liderados por Airton Soares, romperam com o partido em 1985, porque o PT não apoiou a Aliança Democrática que elegeu, indiretamente, a chapa Tancredo/Sarney. A trajetória posterior de Aírton Soares foi errática: uniu-se ao PDT (esteve nos bastidores da campanha para a presidência de Brizola em 1989), PSDB, PPS (esteve com Ciro Gomes em 1998) e, finalmente, filiou-se ao PV no apoio a Marina Silva em 2010.

Embora representassem quase 40% da bancada de deputados federais, os três saíram sozinhos, sem deslocamentos militantes, e sem maiores seqüelas na influência eleitoral petista que permaneceu ascendente. Foram, finalmente, expulsos. O PT teve a primeira ruptura pela direita, mas foi indolor, tanto na vanguarda mais orgânica quanto na área de influência eleitoral. Mas o peso da ruptura na bancada de deputados foi, desproporcionalmente, grande, o que já sinalizava os perigos gigantescos que a adaptação à institucionalidade de um aparelho com pouco controle dos militantes, mesmo naquele parlamento sob regime ditatorial, representaria para o futuro do PT.

Crise econômica e social transborda em crise política do regime
A discussão historiográfica das Diretas remete à pesquisa das causas que potencializaram a mobilização de massas, na dimensão de milhões, em 1984 e não antes. Ela está condicionada a uma apreciação do impacto econômico-social do ajuste de 1983 que a economia brasileira sofreu depois da moratória mexicana de 1982. Dirigido por Delfim Neto, o ministro da Fazenda de Figueiredo, hoje um dos conselheiros do governo Dilma, a mega desvalorização de 100% da moeda nacional tinha como objetivo garantir as divisas que pudessem manter pelo menos a rolagem dos juros da dívida externa, recuperando taxas de crescimento de 5% ao ano pelo aquecimento da demanda do setor exportador.

O plano fracassou. O desemprego não diminuiu, e a inflação disparou para além de 100% ao ano, porém, sem mecanismos de reajuste salarial anteriores à negociação dos convênios anuais. A inflação incendiou o mal estar social entre os trabalhadores, e aproximou a classe média urbana das massas populares. A essa dinâmica objetiva uniu-se uma situação imprevista pela ditadura: estava se organizando no Brasil, desde 1980, o Partido dos Trabalhadores, tendo à sua frente líderes sindicais, entre eles, Lula, que se apoiava no novo proletariado que tinha surgido da industrialização, e que já não tinha referência no antigo PCB. Sem a formação do PT seria impossível compreender o deslocamento da direção do PMDB depois das eleições para governadores de 1982: o medo de serem ultrapassados pela esquerda, após o impacto do comício na Praça Charles Miller no Pacaembu, em São Paulo, em novembro de 1983.

O grande medo: depois do comício do Pacaembu
Foi no calor dos noventa dias de luta que o PT (Partido dos Trabalhadores) e a CUT, (Central Única dos Trabalhadores) e Lula conseguiram aumentar sua audiência e credibilidade política. E foi porque o PT decidiu não esperar mais, e tomou a iniciativa de ir para as ruas, em 27 novembro de 1983 no Pacaembu em São Paulo (reunindo uns 25.000 militantes), que o governador Montoro, finalmente, tomou a iniciativa de chamar ao primeiro comício para o dia 25 de janeiro de 1984, temendo ser ultrapassado pela esquerda. [1](LEONELLI e OLIVEIRA, 2004, p.307).

Os noventa dias de luta pelas Diretas Já deixaram a ditadura, politicamente exaurida. Mas ainda manteve o controle do Congresso para impedir a queda de Figueiredo, e conseguir uma solução da crise política – expressão da crise econômica e social mais grave desde 1964 – por dentro das instituições do regime. Entre o 25 de janeiro e o 25 de abril, milhões de brasileiros foram às ruas em sucessivas manifestações que tomaram as principais cidades do país, e fizeram tremer o último governo da ditadura para exigir a convocação de eleições presidenciais diretas.

Esta mobilização política democrática teve desde o início a direção burguesa do PMDB, embora Lula fosse o orador mais entusiasticamente aplaudido em todos os atos, e a vanguarda mais mobilizada fosse petista. O surgimento do PT em 1980 era uma expressão da reorganização da esquerda e dos movimentos operários, estudantil e popular. O impulso de uma onda de ascenso de luta que começou em 1978/79 foi poderoso o bastante para radicalizar uma parcela da burocracia sindical, atrair uma parcela dos líderes populares articulados pela Igreja Católica, e favorecer um reagrupamento de algumas organizações marxistas, todas com algo próximo a pelo menos mil ativistas, embora na maioria jovens, para um projeto político legal comum: CS (Convergência socialista), OSI (Organização Socialista Internacionalista), DS (Democracia Socialista), MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado), PRC (Partido Revolucionário comunista), entre outras menores. Estas forças criaram um partido de esquerda sui generis para os anos oitenta: um partido de trabalhadores, independente da burguesia, ainda que com direção, majoritariamente, reformista.

O surgimento do PT e a formação do PDT dirigido por Leonel Brizola abriu uma etapa política de disputa com o PMDB da representação da oposição à ditadura. O diferencial do PT era a sua presença orgânica nos movimentos sociais, operários e populares, onde a rivalidade da luta política era conduzida, ferozmente, contra o PCB, o PCdoB e o MR-8 que permaneceram no PMDB. Essa competição política era a expressão de uma diferença programática central: confiar ou não confiar na liderança liberal-burguesa do PMDB na luta contra a ditadura.

O refluxo conjuntural da onda de mobilizações populares, depois da derrota da greve do ABC de 1981, abriu o caminho para uma luta implacável pela direção do processo de reorganização do movimento sindical. Depois do fracasso do Conclat da Praia Grande, quando ficou claro a impossibilidade da construção de um Central Sindical Nacional unificada, incluindo a burocracia sindical moderada, acelerou-se o processo que culminou com a fundação da CUT no Congresso de São Bernardo em 1983. A questão estratégica era a construção de uma ferramenta de luta que pudesse ser um ponto de apoio independente para a hora da luta decisiva contra a ditadura. A hora em que o relógio da história ofereceria uma chance de derrubá-la.

As Diretas Já: a maior mobilização política de massas da história
As Diretas, como ficaram conhecidas as jornadas de luta democrática de 1984, foram a maior mobilização política de massas da história do Brasil nos últimos trinta anos.[2] Não obstante, embora o governo Figueiredo tenha sido paralisado, não chegou a ser derrubado no dia 25 de abril de 1984. A crise do governo se transformou em crise de regime. A principal instituição do regime militar, as próprias Forças Armadas, descobriram-se desmoralizadas diante da vontade da nação expressa nas ruas. Figueiredo ficou suspenso no ar, ou seja, por um fio. Faltou o empurrão final. Até o fim do mandato, Figueiredo deixou de  poder governar. Sua queda foi evitada por uma operação política complexa que envolveu governadores da oposição como Tancredo e Brizola, o alto comando das Forças Armadas, e até a Igreja Católica.

O governo não ruiu, mas a ditadura acabou. Figueiredo manteve seu mandato, mas, politicamente, o regime militar foi derrotado. As liberdades democráticas conquistadas nas ruas foram garantidas e, finalmente, o regime militar acabou. A força política das Diretas revelou-se insuficiente para alcançar, imediatamente, o direito de eleger pelo sufrágio universal o presidente da República. A democracia liberal brasileira nasceu de uma luta política de massas, a ditadura foi deslocada, mas o governo Figueiredo não caiu. O fim da ditadura foi amortecido por um grande acordo que, finalmente, apesar de ter sido respeitado, nem sequer pôde ser comprido. Quis o acaso que o resultado das Diretas terminasse sendo esdrúxulo: Tancredo Neves foi eleito presidente, tendo José Sarney como vice, mas não tomou posse, porque veio a falecer vítima de uma doença que, misteriosamente, ninguém suspeitava existir.

No Brasil, o fator detonador foi o impacto da crise econômica detonada pela crise da dívida externa. Em dois anos, entre 1982/84, o crescimento da inflação e do desemprego abriram uma crise social que incendiou o mal-estar no proletariado e provocou uma séria, ainda que minoritária, divisão burguesa, arrastando a classe média para o campo da oposição à ditadura. Esta nova relação de forças se traduziu em um isolamento político do governo que inviabilizou o projeto da transição pelo alto, tal como tinha sido elaborado durante o mandato de Geisel/ Golbery. O governo Figueiredo terminou em 1984, mas antes de completar o seu mandato.

A ditadura foi surpreendido pela decisão de uma parcela da direção do principal partido de oposição, o PMDB, um partido socialmente burguês e politicamente liberal, de tentar impulsionar uma mobilização de rua pelas Diretas, subvertendo o calendário da transição controlada pelo regime. O que foi impressionante é que vários milhões de pessoas, em todas as principais cidades do país, desceram às ruas. Essa luta democrática foi grande o bastante para dividir o partido político de sustentação do regime, desmoralizar politicamente as Forças Armadas, e impedir que os candidatos do PDS, Andreazza e Maluf, pudessem manter o controle sobre o Colégio Eleitoral e chegar  à presidência.

A divisão no PMDB: Tancredo contra Ulysses
A direção do PMDB estava dividida, seriamente, em relação à tática, portanto, em relação ao objetivo das Diretas Já, desde o início da campanha. Ulysses Guimarães de um lado, e Tancredo Neves do outro, disputavam entre si a candidatura à presidência. Ulysses queria ser candidato em eleições diretas e Tancredo acreditava que só poderia vencer em eleições indiretas. Por isso, Tancredo iniciou negociações com a direção do PDS desde antes do comício da Praça da Sé de 25 de janeiro de 1984.[3]

Aliás, o que merece ser considerado excepcional no processo das Diretas não é que Tancredo tivesse conspirado com a ditadura, mas que Ulysses e Montoro tenham convocado a mobilização de massas contra Figueiredo. A desconfiança da participação popular foi o padrão da conduta política da burguesia brasileira. Só a obstinação da alta oficialidade das Forças Armadas na defesa obtusa do regime, quando uma nova relação de forças interna e internacional o deixaram obsoleto, pode explicar a decisão in extremis de Ulysses e Montoro de resolver conflito apelando à mobilização de massas.

As formas institucionais do processo de passagem da ditadura para a democracia pareceram as de uma transição negociada, mas elas ocultaram o conteúdo político-histórico do que tinha acontecido: o governo se manteve até a eleição de Tancredo e Sarney pelo Colégio Eleitoral, mas, paradoxalmente, junto com Figueiredo era a ditadura que tinha sido vencida.

A análise histórica precisa reconstituir os contextos, descrever os acontecimentos, e explicar a grandeza e os limites destes combates democráticos. O que não deve fazer é diminuir a imponência das mobilizações políticas das massas populares que deslocaram uma ditadura tão longeva. Porque a ditadura não conseguiu conduzir a transição que tinha planejado. A ditadura tinha mergulhado a sociedade em uma dinâmica de decadência histórica: estagnação econômica, superinflação, arrocho salarial e aumento das desigualdades sociais, déficit externo, em resumo, regressão social.  E a decadência foi a parteira de uma crise nacional gravíssima que provocou uma comoção social de tais proporções, que fez tremer tudo o que parecia inamovível.

Foi exuberante a entrada em cena de forças sociais até então contidas – um bloco social de aliança da classe trabalhadora com a maioria da classe média, e minoritárias frações burguesas – que deslocaram as relações de forças e puseram fim ao regime ditatorial.

Figueiredo era consciente do perigo. O regime estava exausto em 1984. Esgotado, politicamente, por um impasse insolúvel. Estava isolado, tanto nacional, quanto internacionalmente. A ditadura permaneceu resguardada, durante duas décadas, no contexto da guerra fria, mas sua preservação era incômoda até para Washington, Londres e Paris. Enfrentava deslocamentos para a oposição de forças sociais a cada dia mais amplas. É verdade que não foi surpreendida. Vinha ensaiando de forma ziguezagueante uma abertura lenta e gradual desde o final dos anos setenta, quando o governo Geisel aceitou, durante a presidência Carter nos EUA, a necessidade de uma transição controlada para a democracia.

No Brasil, a entrada em cena, pela primeira vez na história política do país depois de completada a urbanização, de milhões de pessoas nas ruas, uma expressão da potência de um proletariado jovem e inexperiente, mas muito numeroso e concentrado, foi capaz de atrair o apoio da maioria do povo e dividir a classe média. Não obstante esta gigantesca força social, não se viveu, no Brasil, o momento vitória da Praça Tahrir do Cairo (Midan al-Tahrir, ou Praça da Libertação) de fevereiro de 2010 no Egito, quando Mubarak renunciou. Mas isso não deve ser o bastante para ignorar a sua potência. O resultado final nos diz muito sobre a evolução desfavorável da relação de forças entre as classes, por suposto. Mas nos diz mais sobre a direção das mobilizações do que sobre os limites daquelas milhões de pessoas dispostas a lutar.

Mobilizações populares de tal grandeza, como as que tomaram as ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro em 1984, entre outras dezenas de grandes cidades, mesmo sem uma presença independente e organizada da classe operária com suas reivindicações, merecem ser qualificadas como revolucionárias.

As Forças Armadas não se dividiram na hora da crise final da ditadura. A emenda constitucional que previa a realização de eleições diretas, emenda Dante de Oliveira, pelo nome do deputado de Mato Grosso que a apresentou, foi derrotada em votação no Congresso Nacional, embora as forças sociais que sustentavam a ditadura já fossem muito minoritárias desde o final dos anos setenta. A hora da crise final da ditadura soou com a derrota do PDS nas eleições de 1982 para governadores. Foi devastadora. Na seqüência, Figueiredo não conseguiu sequer a indicação do seu candidato, Andreazza, no partido que defendia o regime que agonizava. Eleições diretas, contudo, só vieram a acontecer cinco anos depois, em 1989. A democracia-liberal nasceu em Brasília com as marcas de uma concertação que frustrava a maior mobilização política de massas da história do país.

O partido que defendia o governo, a ARENA, dividiu-se em duas frações. A maior delas criou o Partido da Frente Liberal e indicou José Sarney como vice-presidente na candidatura encabeçada por Tancredo Neves. A menor, transformada em PDS (Partido Democrático Social), se dividiu em três alas, uma liderada por Andreazza, com o apoio de Figueiredo, outra pelo ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, e uma menor em torno do vice de Figueiredo, Aureliano Chaves.

O fim da ditadura foi atenuado por um pacto político, em que a oposição liberal se dobrava ao resultado da votação de 25 de abril no Congresso Nacional, em troca de um acordo com uma ala dissidente do partido da ditadura, para garantir maioria no Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Figueiredo governou, formalmente, até o último dia do seu mandato, embora fosse um governo impotente e abandonado pela maioria do seu partido, e resignado com a eleição da chapa Tancredo/Sarney.

Renunciando à continuidade da campanha para conquistar eleições diretas imediatas, uma campanha que exigia a radicalização das formas de luta para desafiar tanto Figueiredo, como o Congresso controlado pela ditadura, a oposição liberal liderada pelo PMDB fez um cálculo estratégico: seria demasiado perigoso continuar mobilizando milhões de pessoas nas ruas. Não valia a pena correr o risco de radicalizar a luta pela democracia, porque somente recorrendo a métodos revolucionários seria possível derrubar Figueiredo. E o problema seria o dia seguinte. As esperanças represadas durante tanto tempo explodiriam, inevitavelmente, no colo do novo governo deixando o Brasil ingovernável.

A oposição liberal encarou desde o início, ou seja, logo depois da posse dos governadores, em 15 março de 1983, a articulação da campanha pelas Diretas como uma campanha de pressão para negociações com Figueiredo. Os limites burgueses da direção do PMDB condicionavam a sua participação em uma luta através da mobilização popular. Desde antes do comício na Praça da Sé, Tancredo já estava decidido a ser candidato na eleição indireta pelo colégio eleitoral. (LEONELLI e OLIVEIRA, 2004, p.357). A própria direção do PMDB já se sentia derrotada antes de começar a luta nas ruas.

Quase não houve presença de empresários na campanha pelas Diretas. Os que subiram nos palanques foram uma exceção. Da grande imprensa, somente um jornal apoiou a campanha, a Folha de São Paulo. Por que, depois de vinte anos, tanta hesitação burguesa? Pelo temor da dinâmica da mobilização dos trabalhadores e da juventude. Porque não podiam saber, por antecipação, quais seriam os custos de uma desestabilização de Figueiredo. No dia seguinte ao comício da Praça da Sé de 25 de janeiro de 1984, em editorial, a Folha de São Paulo comemorava a grandiosidade da manifestação, mas destacava que foi uma concentração ordeira, pacífica, civilizada. Ou seja, suspirava de alívio, porque foi controlada [4].

O PMDB abandonou, na verdade, a luta pelas Diretas antes da derrota do 25 de abril, quando ficou claro que não seria possível derrotar Figueiredo no Congresso, em Brasília. Foi, aliás, para prevenir situações como aquela, que a capital tinha sido deslocada do Rio de Janeiro para Brasília. Tancredo estava em negociações discretas, porém, não secretas, com os líderes do Estado-Maior das Forças Armadas, entre eles o general ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, com a Igreja Católica, e ninguém menos do que a Rede Globo (que silenciou, escandalosamente, sobre o primeiro comício de massas na Praça da Sé).

A Folha de São Paulo noticiou: “O porta-voz do Palácio do Planalto, Carlos Átila comentou: o governo só pode ver com bons olhos a atitude do governador Tancredo, o presidente Figueiredo tem reafirmado seu desejo de negociar”.[5] A participação de Tancredo em negociações com a ditadura aceitando o seu nome como candidato, antes da votação da emenda Dante no dia 25 de abril era pública: “Tancredo jogou a pá de cal na Emenda (..) ao se oferecer como mediador entre as oposições e o governo Federal tendo já um plano mais de governo do que de mediador”. [6]

Nunca existiu na história, porém, uma correspondência direta entre os ritmos de agravamento da crise econômico-social e os ritmos de amadurecimento da consciência de classe dos trabalhadores e do povo. As sociedades reagem, invariavelmente, com atraso à maturação da crise. As crises se precipitam, justamente, porque transformações necessárias foram por muito tempo adiadas, e o conflito entre mudança e reação se apresenta impreterível. Há um tempo necessário para que a dramática percepção de que a vida não vai mudar por inércia seja assimilada por milhões. A consciência de classe evolui mais lentamente que o apodrecimento da realidade social. Um intervalo de atraso, maior ou menor, em relação à situação objetiva é inevitável.

No Brasil, entre as décadas de cinqüenta e setenta, apesar de sacrifícios inenarráveis, o passado de muitas famílias de extração operária e popular, senão camponesa, tinha sido uma história de árdua melhoria. Mas, sob o impacto da crise a partir de 1982, dois anos depois da queda da ditadura argentina após a derrota na guerra das Malvinas, tudo mudou, a ditadura agonizava.

O direito de eleger governadores de oposição, ou seja, o direito à alternância tinha sido cedido pela ditadura na expectativa de que a oposição liberal, liderada pelos moderados do MDB, aceitaria uma última eleição indireta da presidência na sucessão de Figueiredo. Sob o impacto da crise econômico-social, o MDB – em especial o núcleo paulista do MDB liderado por Franco Montoro e Ulysses Guimarães – pressionado pelo PT e pela CUT recém fundada, surpreendeu o governo e os meios empresariais e decidiu convocar o povo às ruas, pela primeira vez, em vinte anos. A surpresa histórica foi o volume da resposta popular: centenas de milhares encheram as praças das principais capitais, culminando em comícios em São Paulo e Rio de Janeiro na escala de milhões.

A discussão do significado das diferenças políticas que surgiram entre os partidos e movimentos sociais que estavam à frente da campanha no CNPD (Comitê Nacional Pelas Diretas), ou seja, PT, MDB (dentro do qual atuavam os ainda semi-legais PCB, PCdoB e MR-8) e PDT foi uma das questões centrais em 1984. Surgiram três campos: a proposta de um dia de greve geral levantada pela CUT, a proposta de extensão de dois anos do mandato de Figueiredo apresentada por Brizola com eleições presidenciais em 1986, e a proposta de participação no Colégio Eleitoral defendida, finalmente, por Ulisses Guimarães, Franco Montoro e Tancredo Neves.

As diferenças políticas na condução do movimento que surgiram dentro do bloco de oposição à ditadura expressava as pressões sociais a que cada partido estava submetido. Eram variadas, mas estavam concentradas em torno de um dilema: conduzir as mobilizações até o limite para impor a queda do regime pela radicalização das ações de rua, ou abrir negociações com o regime para uma solução institucional que preservasse as Forças Armadas de um processo político-judicial que poderia levar uma parcela da oficialidade aos tribunais.

A proposta da CUT de um dia de greve geral no 25 de abril, avançada por Jair Meneguelli, seu primeiro presidente, e referendada, mas sem entusiasmo, pela direção do PT, foi recusada por Tancredo Neves. Essa proposta era a maior ameaça ao regime. O Brasil era um dos poucos países urbanizados do mundo onde nunca tinha antes acontecido uma greve geral. Ser derrotado por uma greve geral era o maior pesadelo de Figueiredo. Muito importante seria tentar compreender porque as direções da CUT e do PT aceitaram os limites impostos pelo PMDB dentro do CNPD (Conselho Nacional Pelas Diretas). O PT tinha aceitado o papel do PMDB à frente da campanha das Diretas, um lugar que correspondia à expressão eleitoral nas eleições estaduais de 1982. Mas a liderança de Lula crescia, visivelmente, com os comícios de rua. A direção do PMDB temia o conteúdo de classe dos discursos de Lula que unia a denúncia da ditadura à denúncia do desemprego e da superexploração. Quando as negociações de Tancredo se tornaram públicas, Lula declarou: “o que se procura com estas negociações é apenas uma saída política para o governo que embora mudando os homens não muda o regime”.[7]

Entretanto, depois da derrota do 25 de abril, quando a direção do PMDB girou para uma concertação com a ala dissidente do partido da ditadura, a direção do PT denunciou o Colégio Eleitoral e se recusou a participar da eleição de Tancredo Neves e Sarney. Mas, recuaram, e desistiram de tentar manter a luta nas ruas. Ulysses recuou pressionado por Tancredo e a direção do PT recuou pressionada por Ulysses. O temor a uma mobilização política que poderia adquirir contornos classistas radicalizados em um cenário de crise econômica e social aguda explica o veto. O governador de Minas Gerais vinha se consolidando como o candidato do MDB à presidência porque sua trajetória conciliadora, desde antes de 1964, encontrava menos resistência nos meios burgueses, inclusive no ambiente militar. Não foi o PMDB quem escolheu Tancredo. Finalmente, a ironia da história, é que foram os homens que serviram uma vida inteira à ditadura que escolheram o candidato da oposição, que poderia ser eleito no Colégio eleitoral. Ulysses Guimarães, presidente do MDB que disputava, também, a indicação à presidência pelo partido, foi o grande derrotado. Ele chegou a levantar a proposta de uma paralisação cívica nacional, uma greve convocada por patrões e por trabalhadores, com apoio dos governadores, que foi rechaçada, igualmente, por Tancredo.

Ulysses mudou duas vezes de posição sobre a condução da luta para pressionar o Congresso Nacional. Primeiro, apoiou o chamado à greve geral, depois apoiou a convocação da paralisação cívica e, finalmente, aceitou o recuo completo: nem sequer mobilizações de rua no dia 25 de abril. Por quê? A decisão do Planalto de declarar o Estado de Emergência em Brasília no 25 de abril, proibindo até a transmissão da sessão do Congresso pelas rádios e TV’s, era o tipo de medida que aterrorizava a oposição liberal. Uma possível resposta à capitulação de Ulysses a Tancredo nos remete à sobrevalorização do perigo de um autogolpe de Figueiredo.[8]

A proposta de Brizola foi anunciada, também, publicamente, em sessão na Câmara de Deputados, e consistia em aceitar uma reeleição indireta de Figueiredo para um mandato de  dois anos, em troca de eleições diretas para 1986, que coincidiriam com as eleições para governadores e para o Congresso, ou seja, eleições gerais. Brizola pretendia com esta proposta abrir uma negociação e ganhar tempo. As margens de manobra de Brizola para conseguir uma negociação com os militares e a grande burguesia paulista e carioca eram menores, incomparavelmente, do que as de Tancredo. Sendo um dos pré-candidatos presumidamente favoritos, se houvesse eleições, considerada a exuberante, porém, áspera vitória para governador do Rio de Janeiro em 1982, Brizola ainda despertava, naquelas circunstâncias, grandes resistências nos militares pela sua biografia antes de 1964. E Tancredo não era o primeiro da fila no MDB, se houvesse eleições diretas. O primeiro era Ulysses Guimarães. (LEONELLI e OLIVEIRA, 2004, p.169)

A proposta que vingou foi uma solução de compromisso. Tancredo acabou sendo eleito, mas sem eleições diretas. Da “explosão” da luta democrática de massas resultou uma vitória usurpada, portanto, muito parcial: as massas mobilizadas – uma aliança da classe trabalhadora urbana com a juventude, setores médios plebeus, mas com liderança direta ou indireta de dissidências burguesas – derrubou o governo odiado, e com ele o regime que o sustentava, mas não conquistou eleições imediatas.

A concertação burguesa conseguiu fechar as crises, respeitou-se a ordem constitucional, assumiu um vice sem confiança popular. Na maior crise de dominação conhecida na história do país, quando as consequências da crise final da ditadura estavam em disputa, o MDB de Ulysses Guimarães foi o fiador da estabilização, garantindo a posse de José Sarney, do improvisado PFL, depois da morte inesperada de Tancredo Neves.

A peculiaridade brasileira é que o governo Figueiredo não foi derrubado pelas Diretas, mas foi derrotado. A ditadura ruiu. O fim da ditadura foi uma vitória da mobilização de massas. A eleição da chapa Tancredo/Sarney foi uma vitória do plano reacionário de manter intactas as Forças Armadas, a principal instituição do regime militar.

Mas, entre os dois processos, o mais importante, aquele que definiu o signo da situação política nos anos entre 1985/1989, foi o primeiro, porque abriu o caminho para o mais importante ascenso operário e popular da história. Esse resultado dúbio ou ambíguo alimentou dois tipos de interpretações unilaterais. Para alguns, a eleição de Tancredo teria sido uma vitória democrática, garantindo uma transição indolor e sem rupturas, que era o limite das possibilidades no quadro da relação de forças que existia no Brasil em 1984. Para outros, o sucesso da negociação entre o PMDB e as dissidências do regime seria a demonstração da derrota da mobilização popular. Ambas estas conclusões são insatisfatórias.

A força política das manifestações foi suficiente para exercer tal pressão que as Forças Armadas – principal instituição do regime ditatorial – aceitaram, com tensões, uma solução negociada para um processo que foi em parte falência e, em parte, transição da ditadura para o regime democrático. Os resultados deste processo de luta foram paradoxais. José Sarney foi o último presidente da ARENA (Aliança Renovadora Nacional), e o primeiro presidente do regime democrático.

Quis a ironia da história que Sarney viesse a ser, duas décadas depois, o presidente do Senado por dois mandatos com o apoio do PT e de Lula na presidência (2003-2010), os mesmos que se recusaram a participar da votação no Colégio Eleitoral indireto da ditadura que o elegeu para a presidência em 1985.



[1] LEONELLI, Domingos, e OLIVEIRA, Dante. Diretas Já, 15 meses que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro, Record, 2004.

 

[2] Foi na campanha pelas Diretas que o Datafolha, criado em 1983, iniciou o cálculo de pessoas presentes nas manifestações usando a medição do número de metros quadrados ocupados pelos presentes. Este método é um critério pouco polêmico. O Datafolha estimou que 300.000 pessoas estiveram na Praça da Sé em São Paulo no dia 25 de Janeiro de 1984. Durante os noventa dias de mobilizações estima-se que saíram às ruas em todo o país mais de 5 milhões de pessoas. Em 1984, a PEA (População Economicamente Ativa) era estimada em 40 milhões. Mais informações em:  http://acervo.folha.com.br/fsp/1984/01/26/2

Consulta em 15/11/2011.

[3] As negociações que Tancredo realizava com os interlocutores do governo, desde antes do começo das mobilizações de rua em janeiro, não eram um segredo. Depois da derrota da emenda das Diretas passaram a ser públicas e envolveram o próprio Figueiredo. Na manchete da Folha de São Paulo do dia 27 de abril de 1984, ninguém menos que o ministro da justiça, o mineiro Abi Ackel, admitia que Tancredo poderia ser até o candidato do consenso do governo e oposição. Conferir em: http://acervo.folha.com.br/fsp/1984/04/27/2

Consulta em 15/11/2011.

[4] Folha de São Paulo, 26/01/1984, p.2

Consulta em 28/04/2010

[5] Folha de São Paulo, 25/04/1984, p.4. Idem.

Consulta em 28/04/2010

[6]Folha de São Paulo, 25/04/1984, p.4. Idem.

Consulta em 28/04/2010

[7] Folha de São Paulo, 19/04/1984, p.4.

Consulta em 28/04/2010

[8] Folha de São Paulo, 25/04/1984, p.4.

Consulta em 28/04/2010