“É ali que está a chave do enigma. O impulso criador vem da pessoa; a obra é produto” (Florestan Fernandes, 1989, p.27).Em 10 de agosto de 1995 faleceu o intelectual socialista Florestan Fernandes. Ele é um marco na sociologia no país, como também no marxismo. A sua produção teórica e política ainda está por ser compreendida pelos marxistas, especialmente nos desdobramentos atuais de suas formulações. A perspectiva revolucionária, nitidamente demarcada a partir da década de 1970, lhe impôs o isolamento acadêmico, quando a intelectualidade universitária e amplos setores da esquerda iniciaram um deslocamento ideológico para o campo das liberdades políticas e, especialmente, críticas às categorias marxistas. O combate político no campo das idéias terminou por levá-lo a se eleger deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em 1986 e se reeleger em 1989.

De origem social proletária, nascido na capital paulista em 22 de julho de 1920, sua mãe portuguesa trabalhava como doméstica e, mais tarde, como empregada em padaria. Desde pequeno batalhou pela sobrevivência com sua mãe. Engraxate, depois copeiro de bar, mais tarde vendedor de remédios. Os estudos foram comprometidos por essa condição social; não conseguiu terminar o curso primário. Sobre esse período da vida, disse Florestan: “Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extra-escolar que recebi, através das duras lições da vida”. Aos 17 anos, incentivado por amigos, realiza o Curso de Madureza (atual Supletivo) e, entre 1941-1944, faz o curso de Ciências Sociais na USP. Em 1947 torna-se mestre em Sociologia e Antropologia, quando inicia a carreira docente na USP; doutora-se em 1951 e torna-se livre-docente em 1953. Leciona entre 1965-1966 na Universidade de Columbia (Nova York, EUA), volta para o país e, em 1969, a ditadura lhe impõe a aposentadoria compulsória da USP, junto com diversos colegas. Vai para a Universidade de Toronto (Toronto, Canadá) como professor-visitante e se torna titular entre 1969-1972, quando volta ao Brasil.

Em sua trajetória de vida interessa-nos a radicalização de seu pensamento e prática política, que o distingue inteiramente do marxismo acadêmico que foi flertado por seus ex-discípulos (Fernando Henrique Cardoso, Paul Singer, Francisco Weffort) que, em grande parte, bandearam para o campo do conservadorismo. Interessante notar que Florestan, com seus ex-discípulos, compõem o que veio a se chamar “sociologia paulista”, constituída na USP, especialmente a partir da década de 1950. Desde este espaço social foram produzidos importantes estudos sobre a formação social brasileira: o negro na sociedade capitalista e a industrialização no país destacam-se nessas pesquisas. Conceito central que foi compartilhado pela escola refere-se à chamada “dependência estrutural” do país aos centros imperialistas. Dessa discussão surgiram as primeiras críticas ao que foi chamado de populismo e o questionamento às teses do PCB.

O caminho teórico
Quando inicia a docência na USP (1947), seu pensamento está delimitado pelo funcionalismo, ou seja, os conceitos de “função social”, “anomalias sociais”, “coesão social” que são próprios da tradição francesa da escola durkheimiana (Émile Durkheim). Nesse período, com a supervisão de seu mestre Fernando de Azevedo, produz o estudo sobre a sociedade dos tupinambás que se desdobra em sua tese de mestrado e, depois, em seu doutorado. A sólida base teórica de Florestan também se expressou na perspectiva weberiana, com conceitos como “racionalidade”, “motivação”, “ação social”, “estamentos” e “patrimonialismo”. Especialmente verificamos essa chave teórica em suas obras sobre o negro na sociedade de classes e nas pesquisas sobre a industrialização.

Florestan Fernandes condensa em sua vida e produção intelectual um período do pensamento social brasileiro, em especial o acadêmico, constituído pela universidade pública como espaço social e político, que concentrou energias no sentido de (i) compreender a especificidade da sociedade brasileira, de formação colonial, escravista e integrada de maneira subalterna ao modo de produção capitalista, (ii) em diversos matizes políticos e ideológicos, apresentar alternativas à subalternidade e dependência do país e (iii) superação de uma escrita social antes marcada exclusivamente pelo ensaísmo.

Fernandes foi uma espécie de ponte entre um conhecimento transmitido por professores estrangeiros (Fernand Braudel, Levy Straus, Roger Bastides e outros) na constituição da USP (1935) e sua aplicação na pesquisa de campo, de maneira a sintonizá-lo com as problemáticas locais. Segundo Fernandes, a tradição universitária nas Ciências Sociais ocorrera com um ensino de alto nível acadêmico, mas tal padrão educacional estava desvinculado das “nossas ânsias de aprendizagem nem correspondia às nossas necessidades socioculturais” (Fernandes, 1976, p.115). Essa tradição limitava-se à formação do scholar, ao invés de uma “intelectualidade militante”, afeita aos problemas nacionais: “aquele ensino não preparava o estudante para nenhuma carreira e muito menos para a carreira científica” (idem, p.115). A educação e a pesquisa, por sua vez, seriam condições indispensáveis para o desenvolvimento nacional e autônomo, o que tornava mais crucial a tarefa de ultrapassar a debilidade daquela tradição estrangeira. Dizia ele: “Ninguém pode ignorar que é no setor do pensamento científico e tecnológico que o progresso das nações desenvolvidas se mostra mais rápido. Se quisermos atenuar ou superar a distância que nos separa dessas nações, o caminho é um só – conquistar pleno domínio das técnicas sociais modernas, entre as quais se incluem o pensamento científico e a tecnologia fundada na ciência” (idem, p.116).

Portanto, o sociólogo demarca essa tradição acadêmica em formação em torno de um projeto de universidade que viesse dar apoio à constituição de uma nação independente e autônoma. Por essa razão, não é demais afirmar que sua prática acadêmica encontrava-se, ainda na década de 1950, envolvida por uma forte ideologia de cunho nacional-desenvolvimentista, embora Florestan nunca tenha concordado com essa caracterização.

Mas são suas obras da década de 1970 e 1980 que expressam o deslocamento teórico do intelectual quando, embora mantendo conceitos funcionalistas e da sociologia compreensiva weberiana, estará norteado por uma perspectiva marxista e leninista, como se verifica em alguns de seus títulos: Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (1973), A revolução burguesa no Brasil (1975), Universidade brasileira: reforma ou revolução? (1975), Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana (1979), Movimento socialista e partidos políticos (1980), O que é revolução (1981), A ditadura em questão (1982), Nova república (1986).

Esse deslocamento teórico de Florestan cabe considerar que não é uma realização isolada, que possa ser atribuída exclusivamente a um pensamento genial ou brilhante. A capacidade teórica do intelectual é central em suas novas formulações mas, principalmente, devemos considerar que ela ocorre por um interstício político e ideológico relacionado ao quadro histórico que se abre com a contra-revolução preventiva, ocorrida após o golpe militar-civil de 1964 no Brasil e que também ocorrerá em outros países sul-americanos. Apresenta-se nesse novo quadro uma radicalização crítica pela esquerda, de diversas organizações e partidos (vide Ridenti, 1993), como também com a intelectualidade brasileira (vide Silva, 2004). O que ocorreu naquele período foi uma redefinição crítica sobre muitas teses políticas em torno do “desenvolvimentismo nacionalista”, que eram hegemonicamente defendidas e propagadas por nacionalistas e Partidos Comunistas, inclusive no Brasil. Empiricamente ficara demonstrada a debilidade da “burguesia nacional” brasileira em se tornar sujeito da constituição de uma nação autônoma. Ao contrário, como demonstrara a clássica obra de Dreiffus (1981), as frações mais significativa da “burguesia brasileira” compuseram com os militares e o imperialismo o golpe de Estado de 1964, por meio de instituições como IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais – e IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática.

No plano pessoal fica evidenciado o significado dessa ruptura política que incidiu em um projeto de universidade que Florestan defendia. Ele passa a analisar atentamente o caminho da “contra-revolução”, no Brasil e na América Latina e, também, a maneira como ela se entronizava na universidade pública. Período esse que significou penoso isolamento intelectual mas, ao nosso entender, o determinante conjuntural para a expressão definitiva de sua radicalização teórica. Sua definição enquanto intelectual marxista, embora não tenha abandonado os recursos sociólogos das décadas anteriores, torna-se o traço principal da obra de Florestan Fernandes. Em meio às dores do parto integra-se ao ascenso ocorrido na luta de classes no final da década de 1970 que abrira para o sociólogo uma possibilidade concreta de confronto com a ditadura militar e um momento decisivo para constituição de um movimento socialista revolucionário, constituindo seus partidos, remetendo criticamente os equívocos aliancistas dos PCs e denunciando e demarcando campo com a intelectualidade liberal. Seria o momento em que o intelectual poderia transformar-se em socialista e engajado, retomando o elo perdido em sua juventude. Fernandes, como é por muitos sabido, militava em um grupo trotskista (PSR). Afasta-se do Partido e, por opção, dedica-se integralmente à atividade acadêmica. Esse elo é reencontrado, talvez especialmente pelas duras condições que o tenham afastado da academia com a ditadura militar, mas especialmente por meio do ascenso dos movimentos sociais.

Em diversos momentos expressou o significado do “isolamento intelectual” que sofrera na década de 1970.

“Vim para cá e não pude lutar coisa alguma, porque realmente de 73 em diante vivi dentro de um isolamento tremendo. Até 1975 eu tinha o que fazer dentro da produção anterior. Podia viver assim, o isolamento de maneira equilibrada. Mas, depois, não. Depois eu resvalei. E a radicalização pela qual eu passei engendrou o desequilíbrio, que tive de enfrentar como pessoa. Não vá pensar que um intelectual, um sociólogo, está livre das contingências que afetam todos os seres humanos. E na medida em que eu estava isolado eu vi amigos e companheiros que sequer se lembravam de mim, eu fiquei prisioneiro da família. É uma bela prisão, mas, entra ano sai ano, ficava só com essa convivência e com um desdobramento que não vem ao caso discutir. E era isso aí. Dei alguns cursos no Sedes e um cursinho sobre a teoria do autoritarismo, uma coisa intermediária. De repente, me vejo diante de um curso e da necessidade de engolir a condição de professor, que eu não queria engolir de novo. Realmente o que eu queria era exatamente voltar a uma atividade militante e só militante. Daí essa tensão, essa frustração. Tente fazer mais do que isso. Onde? Você fica preso a um grupúsculo e neste grupúsculo fica na condição em que eu fiquei na década de 40, você fica patinando. O movimento socialista aqui ainda não engrenou a ponto de se diferenciar, de criar um espaço para o ser humano poder sobreviver e lutar por dentro dele. Não conseguimos isso. A ruptura com a ordem é tão superficial que as pessoas só sobrevivem se realmente se ‘radicalizarem’. Se as pessoas não perceberem que o status de classe média é instrumental para sobreviver, elas se destroem. Então o que aparece ali como tensão é uma tensão psicológica. Eu tive de aceitar o fato de não ser nada mais do que um intelectual divergente. Tive que engolir esse fato e estou engolindo. […]”. (Entrevista à revista Escrita Ensaio, nº 8, 1980, p.21-22)

Fernandes relata um período de sua vida que, ao nosso entender, levou à sua radicalização. Qual a base dessa contradição que o leva ao isolamento? Em termos estruturais, a ditadura militar consolidava um projeto econômico e político de integração ao modo de produção capitalista mundial, de maneira subordinada e dependente. Os desdobramentos desse projeto verificaram-se no âmbito universitário, que requereu isolar e afastar dos seus espaços o que existisse de pensamento crítico e de resistência ao regime. É patente na fala de Fernandes, “eu vi amigos e companheiros que nem sequer se lembravam de mim”. Como se sabe, foi um período de redefinição de poderes dentro da universidade e, ao mesmo tempo, de sedução dessa intelectualidade, ou melhor, da “comunidade científica”. E cabe outra passagem de Fernandes nesse sentido, sobre a universidade:

“… A universidade brasileira, de uma forma geral, cresceu muito, e não se pode negar que o trabalho intelectual se tornou mais sofisticado, mais sério, mais produtivo. A crise intelectual vem do fato de que, na relação entre uma universidade que tinha avançado muito e o espírito reacionário das classes possuidoras na sociedade brasileira, nessa relação a reação conseguiu, pela primeira vez, depois de 64, penetrar nos muros da Universidade. E penetrou através de seus baluartes internos, que estão nas profissões liberais, nos vários campos de ensino e de trabalho intelectual, que realmente eram os alicerces da contra-revolução dentro da universidade. […].”

Esse aspecto crucial nos interessa sensivelmente. Florestan Fernandes vivenciara a construção da universidade e da sociologia paulistana, desde a década de 1940, projetando-se como renomado pesquisador, desenvolvendo eixos de pesquisa coletiva, formando docentes e pesquisadores, procurando constituir espaços de autonomização da produção científica em relação às classes dominantes, e nesse sentido sua luta pela Escola Pública. Na década de 1970, os espaços acadêmicos estiveram fechados a ele, seu isolamento intelectual está definido, e seu retorno à docência transforma-se em tensão e sofrimento. Por essa razão a afirmação sobre o intelectual que se identifica com o proletariado: “Numa sociedade de classes, se a classe trabalhadora não amadurece politicamente, se não se desenvolve como classe independente, o intelectual que se identifica com ela não pode ser instrumental para nada. A menos que ele queira ser instrumental para as suas inquietações, para o seu nível de vida, para um trabalho pessoal criador. Mas, se você vai além disso, você se esborracha. O que aconteceu comigo foi que eu me esborrachei e daí o fato de que, até hoje, não me conformo com o nosso padrão de radicalismo e de socialismo” (idem, p.22).

A revolução burguesa no Brasil
A referência principal para a análise de sua radicalização encontra-se na obra A revolução burguesa no Brasil, na qual o sociólogo apresenta uma análise estrutural-histórica sobre o surgimento e desenvolvimento do capitalismo no país. Seu ponto de partida é a compreensão sobre “revolução”, sustentada em duas dimensões, revolução política e revolução estrutural. Para ele, a revolução burguesa teria se desenvolvido a partir do final da escravatura. A obra começa nos parâmetros funcionalistas e é encerrada em uma nítida perspectiva marxista, isto porque esse trabalho foi desenvolvido em vários períodos. Além de mostrar nitidamente o tensionamento e desenvolvimento no pensamento do autor, ela é a base de sustentação para sua reflexão política posterior.

Florestan repensa o conceito de “revolução burguesa” nos marcos da sociedade de classes configurada com o capitalismo dependente e subdesenvolvido, que não apresentaria as mesmas características dos países capitalistas europeus, em particular França e Inglaterra. Sob a égide do colonialismo (escravismo colonial, para Gorender) e, em seguida, do imperialismo, o capitalismo no Brasil havia se desenvolvido tardiamente. Os latifundiários escravistas não incorporavam, para Florestan, a lógica capitalista, mas se orientavam por outra “racionalidade“, chamada por ele de “patrimonialista“. Aqui se verifica preocupações com eixos metodológicos que, décadas antes, apresentavam-se em Sérgio Buarque de Holanda, com seu clássico Raízes do Brasil (1930), no qual utilizava pela primeira vez na literatura sociológica brasileira os conceitos weberianos de “patrimonialismo”, significando a extensão dos interesses das famílias agrárias para o Estado brasileiro (Estado patrimonialista). É daí que se originam, a partir da expansão de relações comerciais na época imperial, os fazendeiros de café e os imigrantes, os quais começam a agir segundo uma racionalidade propriamente capitalista, por isso o papel de sujeitos da “revolução burguesa“ que se processou em nosso País.

O caráter autocrático do poder burguês no país, ou seja, que não seguiria o modelo de regime democrático-burguês clássico, adviria dessa situação particular de nossa formação, na qual a “burguesia brasileira” estaria determinada pelo crivo do imperialismo; por outro lado, não haveria resolvido o problema agrário, tornara-se débil e sem autonomia, e sobredeterminada e integrada nos mecanismos do capitalismo internacional. Essa burguesia, desta maneira, estaria impedida de qualquer arroubo no sentido de ampliação dos espaços burgueses clássicos. A “contra-revolução permanente” é um conceito que surge dessa elaboração, uma vez que seria a forma reativa da burguesia em situações consideradas de perigo, com o acirramento da luta de classes. É o caso do golpe militar de 1964, entendido pelo autor, como uma “contra-revolução preventiva”.

Florestan analisa ainda o espaço do projeto de abertura que iniciava seu movimento, por ele considerado como um processo de cooptação pelo regime dos setores oposicionistas. Esse quadro surgia da crise econômica e política na qual o país entrava naquele momento. Haveria uma natureza “autocrático burguesa” nesse movimento.

As condições gestadas pelo capitalismo monopolista abrira uma nova etapa na luta de classes no país, na qual o eixo não seria mais uma etapa da revolução burguesa, mas sim a revolução socialista, pois se constituíra uma classe trabalhadora de caráter nacional. Nos últimos trinta anos, especialmente depois de uma industrialização maciça com tecnologia avançada e intensiva no uso do capital, a formação da classe havia se acelerado.

A revolução socialista e o partido revolucionário
As novas condições na luta de classes com a emergência de um proletariado nacional exigiam do “socialismo revolucionário e do comunismo” colocarem-se na situação de classe dos proletários e caminhar por dentro da classe para fazer parte de sua vanguarda. Para o sociólogo, tratava-se, nos marcos que se abriam na década de 1980, da proletarização de partidos que antes só podiam ser operários de nome, embora fossem revolucionários de fato e de direito, por defenderem e propagarem doutrinas revolucionárias e por correrem todos os riscos que isso acarretava. A primeira conseqüência dessa transformação, que os socialistas revolucionários e os comunistas não poderiam ignorar, aparece no emprego correto da ótica do socialismo revolucionário e do comunismo. Fernandes é categórico:

“(…) A lua-de-mel com a burguesia, com o nacionalismo burguês, com o radicalismo burguês ou com o que se queira está acabada, chegou a seu termo! Não se trata de sair dando coices, chifradas ou marradas, de ficar na ilusão ingênua do ‘quanto pior melhor’. Mas de estabelecer, como parte da vanguarda da classe operária, como este deve manejar a luta de classes com objetivos políticos bem marcados, de curto, médio e largo prazos, e para impedir que os antagonismos existentes só produzam dividendos políticos para as classes dominantes.” (1981, p.100-01)

As tarefas do movimento revolucionário seriam nítidas: proletarização dos partidos operários e rompimento com a perspectiva aliancista. Essa posição do sociólogo refere-se à “maldita” condução pela esquerda brasileira ao aliancismo político que historicamente lhe marca, em sua posição e crença de que seria possível a aliança do proletariado e da esquerda socialista com setores da burguesia. Os efeitos dessa ilusão foram, como se sabe, desastrosos nos anos anteriores ao golpe de 1964. Essa ideologia “frentepopulista”, que consiste em desenvolver a linha política de aliança com setores burgueses e liberais, na atualidade volta a ter seus efeitos devastadores através do projeto político petista e do Governo Lula, como também agora – saindo do “ventre da besta” – um frentepopulismo “turbinado” com o surgimento do P-Sol.

Essa demarcação histórica e política, de acordo com Fernandes, exigiria dos socialistas revolucionários e comunistas “tarefas revolucionárias essenciais”, que objetivariam pôr sua experiência e sua visão a serviço dos proletários, favorecendo a socialização política revolucionária no dia-a-dia da luta de classes, a constituição de quadros treinados e “o crescimento seletivo da própria vanguarda da classe”. Ou seja, exigiria converter-se em partidos proletários por sua composição, por sua orientação e por sua prática cotidiana. Ao mesmo tempo, também exigiria a própria educação de seus quadros: “seria funesto que não ocorresse uma proletarização da consciência social dos revolucionários militantes e dos partidos revolucionários”. Caso contrário, a partir de certo ponto, o proletariado caminharia em uma direção e o que deveria ser o partido da revolução proletária caminharia em outra. Além disso, se tal condição não se realizasse, “o partido proletário não poderia colocar-se momentaneamente contra a classe, se as circunstâncias o exigissem, sem perder sua confiança e sem comprometer sua base social de poder real, que lhe permite agir tática e estrategicamente como a vanguarda política da vanguarda da classe na luta pela revolução.” (p.102)

A estratégia central: “converter a ‘guerra civil oculta’ em ‘guerra civil aberta’”. De maneira semelhante à tática do Programa de Transição (Trotsky), Fernandes considerava que haveria que combinar as reivindicações mais concretas e os pequenos combates com o fortalecimento da consciência revolucionária do proletariado. Para ele, a formação recente do proletariado e sua heterogeneidade não havia impedido, ao exemplo do caso das greves do ABC do final da década de 1970, uma incomparável solidariedade proletária. Mas a dificuldade se encontrava justamente em constituir e manter uma consciência proletária revolucionária em meio ao cerco das inúmeras instituições capitalistas, além das pressões e lutas imediatistas presentes no cotidiano. Por essa razão, caberia papel determinante ao partido revolucionário:

As tarefas seriam duras para a os revolucionários no país, pois um partido desse porte teria de perder a obsessão pela legalidade, já que o essencial não seria esta, embora ele devesse sempre bater-se pela legalidade, mas não deveria constituir preocupação principal. A “concessão da legalidade”, pensava o sociólogo, constitui uma autorização para funcionar nos limites da ordem e para ser punido nas “transgressões”, implicaria uma tendência à domesticação política e à socialdemocratização. A outra está na redução drástica do espaço político para a ação revolucionária. Essa tendência seria tão danosa que até “a educação das bases e dos quadros no conhecimento da teoria socialista revolucionária e do comunismo, bem como dos clássicos da teoria revolucionária, é negligenciada ou evitada, largada, por assim dizer, pelo partido ao azar das circunstâncias” (Fernandes, 1981, p.109-110). Essa tendência teria de ser combatida com persistência e, ao mesmo tempo, dever-se-ia procurar as formas viáveis (“elas sempre existem, por perigosas ou difíceis que sejam!”) de compensação clandestina dessa desvantagem.

“Os seus membros – em particular: os seus quadros – terão de entender que a opção pelo partido constitui uma ruptura com a ordem (esta não deve consumar-se só com a vitória da revolução, mas muito antes: todo militante tem de saber que, ao inscrever-se em um partido desses, rompe praticamente com a ordem e perde todas as suas garantias ou compensações). Isso não quer dizer que devam forjar um clima de pré-revolução neurótico. Ao contrário, devem estar prontos para defender o direito à revolução, usado pela burguesia e, mais tarde, proscrito por ela. A imposição da ‘ilegalidade’ às atividades revolucionárias e de subversão violenta da ordem foi um dos primeiros atos do terrorismo burguês na Europa. Essa forma de opressão precisa ser combatida, porém não à custa das próprias tarefas históricas e políticas de um partido proletário que se pretenda revolucionário. Ele deve, no mínimo, estar permanentemente preparado para realizar aquelas tarefas em duas frentes simultâneas, a legal, se existir, e a ‘ilegal’, se não houver outro remédio. O grande dilema desta situação está em duas tendências que ela engendra.” (Idem)

Algo extraordinário percebemos nessa dimensão do pensamento de Florestan Fernandes. Suas considerações sobre revolução, partido revolucionário e a discussão sobre legalidade/ilegalidade certamente o colocava na contracorrente do pensamento acadêmico e mesmo do pensamento de amplos setores da esquerda brasileira. Ele realiza uma reflexão sobre partido revolucionário e revolução proletária, no momento em que a principal discussão encontrava-se sobre o início do Partido dos Trabalhadores, que tinha como visão hegemônica a crítica de que a concepção de partido leninista era burocrática e autoritária. Fernandes, pelo contrário, remete sua análise para a necessidade de construção desse partido. Desta maneira, o sociólogo localizava-se, no plano teórico, no universo daqueles setores da esquerda marxista que voltavam à cena e mantinham como objetivo principal a construção do partido revolucionário, a crítica que realizavam ao aliancismo dos partidos comunistas e o projeto de revolução socialista.

A crítica ao aliancismo de classe
A transição política até a vitória presidencial, via Colégio Eleitoral de Tancredo Neves, amalgamou diversos setores empresariais, as forças armadas, os políticos liberais e uma ampla base dos estratos médios da população. A Aliança Democrática, como lembrou Florestan Fernandes, empenhava-se em conciliar os anseios democráticos do povo brasileiro com a “vocação liberal-conservadora”. Ou seja, deslocava para o “topo” os processos cruciais de decisão política e de fazer da constituição uma fachada. Desta maneira, esse “biombo parlamentar” possibilitaria às elites das classes dominantes e dirigentes “preservar em bloco o seu poder real, manter ou ampliar o monopólio do poder político institucionalizado e exercer, por dentro e através de um Estado aparentemente democrático, uma ditadura mesquinha e covarde” (Folha de S. Paulo, 11/ago./85).

Essa hegemonia burguesa procura se construir tendo como base os anseios populares, principalmente a partir do final da década de 1970, passando pela vitória oposicionista nas eleições de 1982 e, posteriormente, a campanha pelas Diretas-Já, que mobilizou politicamente várias regiões do país. Dentro da perspectiva de institucionalização política, em molde liberal-conservador, portanto, ocorreu a passagem de uma forma de dominação política para outra, que levou em consideração a necessidade da “democratização” de mecanismos liberais para as disputas eleitorais e, por outro lado, a necessidade de criar mecanismos que envolvessem o conjunto da sociedade nessa perspectiva, evitando assim espaço para o desenvolvimento de uma perspectiva classista contra o regime militar de então.

A questão apresentada por Fernandes é importante porque questiona como condicionante político a ausência de radicalidade (e negação) do processo de transição política como se desenvolveu naquele período. Talvez o melhor exemplo dessa situação relacione-se ao Colégio Eleitoral, no qual disputaram indiretamente a eleição presidencial Tancredo Neves versus Paulo Maluf, em 1984. Nessa situação parte significativa da esquerda negou-se a ir além dos limites impostos pelos setores liberal-conservadores e burgueses, embora existindo um movimento social no qual ela pudesse se apoiar. A opção política significou não somente o limite das forças sociais proletárias que emergiram naquele período, mas também o rebaixamento das forças políticas de esquerda ao “realismo político”: desde as lutas de resistência até as amplas mobilizações populares e operárias. A maioria das oposições partidárias e civis (PMDB, PDT, PCB, PCdoB; OAB, CNBB, ABI) refletiu sobre a impossibilidade de ir adiante, em torno da bandeira de “Só Diretas”, ainda levantada por forças de esquerda, depois da votação da emenda Dante de Oliveira, em 25 de abril de 1984. Nesse sentido dariam razão às proposições daqueles que defendiam um “governo de transição“, na figura de Tancredo Neves. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, comparou tal transição política a uma “guerra de cerco”, na qual a “sociedade civil cercara a fortaleza do Poder“, no entanto nenhum dos dois lados tinha força para o golpe final (Cardoso, 1985, p.5).

Dentro desse contexto, o sociólogo analisava um quadro específico das eleições municipais ocorridas em 1985, em São Paulo, quando Fernando Henrique (PMDB) é derrotado por Jânio Quadros.

“o esquema político que ele [Cardoso] representava viu-se batido (…) e determinada composição de cúpulas governamentais acha-se ameaçada (…). O PMDB pode colocar-se em máscara diante do espelho e decidir se quer continuar a ser um partido da ordem, quando deveria ser um partido de ‘frente popular’. E, por sua vez, a composição das cúpulas nasceu condenada pela Nação, que abomina a ‘transição conservadora’ – com tudo que levou a ela e tudo que ela gerou. (…).
A ordem ilegal que sobreviveu à ditadura , seu sistema de partidos e a despolitização da pugna eleitoral produziram uma situação artificial, inteiramente desfavorável à manifestação, à organização e à participação dos oprimidos e dos setores radicais mais firmes e decididos. (…).
O que se destroçou ? A ilusão de que um país como o Brasil possa expungir-se de iniqüidades seculares por meios pacíficos […]. A democracia exige uma revolução social . Uma revolução social rebenta de baixo (ao contrário da contra-revolução) e vai da sociedade para o sistema do poder (e a forma política do Estado). (…).
Os caminhos pacíficos estão bloqueados e que as `esquerdas` que ‘ganharam mas não levaram’, precisam aprender a avançar revolucionariamente na direção de sua organização institucional. (…). É preciso enraizar os desenraizados em seus partidos, em suas organizações de luta, em seus meios ideológicos e políticos de atuação defensiva e ofensiva.” (1986, p.54-5).

Considerações finais
Fernandes tentou e, em certo sentido, conseguiu estabelecer a ponte com o marxismo revolucionário. É verdade que não tenha conseguido se dedicar inteiramente ao que ele considerava tornar-se um “socialista revolucionário”. No entanto, o seu pensamento e prática apontaram insistentemente para isso. Sinalizam esse caminho, embora com inúmeras contradições políticas, sua atuação como deputado federal e suas posições contrapondo-se ao campo majoritário petista (Articulação-PT).

Fernandes viveu em um circuito temporal que está demarcado entre a década de 1940 e 1990. Sua singularidade no meio intelectual, como evidenciamos, encontra-se na transição teórica e política que imprimiu em sua vida permitindo-lhe se desenvolver em meio a uma sólida sociologia, de caráter estrutural e funcionalista e – por outro lado – relocalizar o seu eixo teórico no marxismo e, mais do que isso, no marxismo revolucionário. Os marxistas acadêmicos, diga-se de passagem, ficaram no meio do caminho desse trajeto, pois ou se embrenharam nas leituras academicistas, ou então guindaram-se para a política por meio do mais descarado reformismo social-democrata. É diferente com Florestan.

A fundação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), composto por Fernando Henrique, Paul Singer, Francisco Weffort e outros, localiza-se em uma postura de enfrentamento contra a ditadura militar na qual prevalecia o posicionamento de aprofundamento da discussão da cidadania e da democracia, onde também se desenvolveu o conceito de sociedade civil (como contrapondo ao Estado autoritário e burocrático), além da proposta de distribuição de renda, entre outros temas. Não houve acordo com Florestan Fernandes. Florestan havia rompido com as ilusões reformistas (nacionalistas) mas também se recusava às novas ilusões social-democratas, travestidas de marxistas, que ganhavam audiência, público e espaço junto à intelectualidade acadêmica. Eis aí o isolamento intelectual que lhe tensionou durante vários anos a partir da década de 1970. A perspectiva marxista do sociólogo pautava-se por uma discussão que perdia espaço nos meios acadêmicos: a discussão da revolução socialista, do sujeito revolucionário (o proletariado) e da necessidade do partido revolucionário, de caráter bolchevique-leninista. O ascenso das lutas sociais, como se configurou a partir do final daquela década, era encarado por grande parcela de intelectuais acadêmicos como a ampliação dos espaços sociais, consolidação da democracia no país etc. O PT era considerado como o grande fenômeno novo que, inclusive, rejeitava as formulações partidárias marxistas e leninistas da esquerda brasileira e mundial. Florestan, por sua vez, tinha inteira desconfiança de tais posições hegemônicas e realizava o embate, no interior da tradição revolucionária: “o bom combate trava-se quando se conhece o terreno do inimigo”.

Bibliografia utilizada

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CHAVES, Adriana J.F. Florestan Fernandes: um sociólogo pensando a educação. Idéias educacionais de Florestan Fernandes – Década de 1940-1960. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 1997. Tese de doutorado. (mimeo).
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