PSTU-MA

Saulo Arcangeli, do PSTU-MA

Aconteceu em 15 de abril o seminário “Base de Alcântara: Próximos Passos”, promovido pelo governo do Estado do Maranhão. O tema debatido foi o acordo de salvaguardas (que protege as tecnologias das partes) assinado entre os governos Trump e Bolsonaro que permite o lançamento, a partir da Base de Alcântara, de foguetes e satélites que contenham algum componente tecnológico dos Estados Unidos. A principal “estrela” do evento foi o astronauta e atual ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Marcos Pontes(PSL).

Podemos chamar de “seminário da Casa Grande” (governador, secretários, ministros, empresários, parlamentares etc.), sem a participação dos territórios quilombolas que poderão ser atingidos, com aproximadamente 2700 famílias. O acordo ainda precisa da ratificação do Congresso Nacional para ser concretizado. Há uma reivindicação do Governo Federal, que data de 2010, ainda no governo Lula, para expandir o CLA (Centro de Lançamento de Alcântara) em mais 12 mil hectares, contestando o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Incra (RTID), finalizado em 2008, que assegurava 78,1 mil hectares para a titulação das comunidades quilombolas e 9,8 mil hectares para o Centro de Lançamento de Alcântara.

Durante o governo Temer, esta pauta foi reforçada pelo Ministro da Defesa Raul Julgmann, que também teve posição contrária ao RTID e defendeu essa expansão do CLA em mais 12 mil hectares, afirmando, em resposta à Defensoria Pública da União, que esta área não deveria ser titulada para as comunidades quilombolas, alegando questões de risco à segurança, vida e saúde devido as operações do CLA gerarem liberação de substâncias tóxicas agressivas, emissão de radiação eletromagnética e, durante lançamentos, contaminação da água, do solo e da atmosfera, agravadas caso ocorra algum tipo de acidente nos lançamentos.

No respectivo seminário, foi lamentável a posição favorável ao acordo externada pelo governador Flávio Dino (PCdoB), sem, em nenhum momento, citar as 312 famílias pertencentes às comunidades tradicionais quilombolas de Alcântara que, na inauguração da base em 1983, foram expulsas de suas terras para 7 agrovilas, distantes mais de 10 km de acesso ao mar, em terras inférteis, causando uma verdadeira destruição de suas identidades étnicas, rompimento dos seus laços comunitários, sem garantia da manutenção de seu modo de vida extrativista e agrícola e de sua autodeterminação, além do não cumprimento de acordos, principalmente na efetivação de políticas públicas em benefício de Alcântara, agravando a pobreza no município.

O governo estadual também não convidou o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), que denunciou o caso em um recente painel da Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop), com a presença do governador.  Flávio Dino, em seu pronunciamento, defendeu a necessidade de garantir contrapartidas sociais, a partir da consolidação do acordo entre Trump e Bolsonaro.

Neste mesmo evento, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Déborah Duprat, afirmou que não se pode tomar decisões que afetam diretamente a vida e a identidades das pessoas sem que elas participem do processo, reforçando a posição das comunidades quilombolas de Alcântara presentes. Uma posição já externada anteriormente pela procuradora regional da República, Eliana Torelly, que, ao visitar Alcântara em 2017, afirmou que o governo estaria violando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que exige consulta prévia às comunidades tradicionais em caso de possível deslocamento territorial.

Vale ressaltar que uma carta datada de 10 de abril já tinha sido encaminhada pelas entidades ao governador, solicitando a participação nas discussões do ACT e criticando o apartheid governamental. “As comunidades quilombolas de Alcântara e suas organizações representativas querem e devem ser consultadas e incluídas nos debates sobre a expansão e o uso comercial do CLA […] tal como, determina a Convenção da 169 da OIT[…] Na prática, privilegiar o debate com o foco apenas na ótica comercial e tecnológica, predominante no debate hoje travado quanto ao referido Acordo de Salvaguarda Tecnológica, corrobora para assolar o cenário de invisibilidade e insegurança jurídica a que as comunidades quilombolas de Alcântara estão expostas. Essa, aliás, infelizmente, é a postura ora adotada pelo governo do Estado do Maranhão”, afirma o documento.

E concluem a carta fazendo solicitações ao governador Flávio Dino : “Não podemos repetir os mesmos erros do passado, tampouco, replicar as violações e arbitrariedades impostas às comunidades desde a década de 1980. […] requeremos, em caráter de urgência e de máxima brevidade possível, ao Governador do Estado do Maranhão o seguinte: a) Que se posicione publicamente a favor da titulação do território das comunidades quilombolas de Alcântara, conforme o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) elaborado e publicado pelo INCRA em novembro de 2008, e a decisão homologada pela 5ª Vara da Justiça Federal da Seção Judiciária do Maranhão aqui referida; b) Que se posicione publicamente a favor da realização de consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas sobre o projeto governamental de expansão do CLA para fins comerciais, após a referida titulação do território; c) Que integre ao programa do Seminário Base de Alcântara: Próximos Passos um painel sobre os direitos das comunidades quilombolas de Alcântara, ainda que, para tal, se adie a data do dia 15 de abril, convidando com antecedência as organizações representativas das mesmas a dele participarem, deixando de realizar, como já anunciado pelo governo, momentos distintos e com pautas segregadas, o que, como aqui já afirmado, enfraquece em demasia a defesa dos interesses das comunidades quilombolas; d) Que conceda audiência às comunidades quilombolas de Alcântara para tratar de suas demandas frente ao projeto de expansão comercial do CLA, em dia e hora a serem acordados. e) Por fim, solicitamos uma audiência em caráter de urgência com o Governador do Estado para discutir o Acordo de Salvaguarda Tecnológica e seus impactos na comunidade quilombola de Alcântara. Pedem e esperam deferimento”.

Esse desrespeito e violação do direito dessas famílias foi denunciada à OIT em 2008 e ratificada mais uma vez no dia 4 de abril de 2019 pelo Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara e o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar de Alcântara. Na recente denúncia culpam o Estado brasileiro pelas violações aos Direitos Humanos e pelo descumprimento à Convenção 169, exigindo a titulação de seu território (conforme o RTID de 2008 do Incra), a devolução das terras das comunidades transferidas para as agrovilas e que o Estado apresente um pedido de desculpas para as comunidades quilombolas de Alcântara e suas entidades representativas pela violação aos seus direitos humanos descritos na reclamação.

Além do racismo institucional praticado há décadas em Alcântara contra as comunidades quilombolas, o acordo proposto fere em cheio a soberania brasileira, pois no território existirão áreas restritas (onde serão manipuladas as tecnologias americanas), cujas permissões e controle de entrada de pessoas serão de exclusividade do governo dos EUA.  E ainda áreas controladas onde o governo brasileiro assegurará que pessoas autorizadas pelo governo dos Estados Unidos possam, de maneira ininterrupta, monitorar, inspecionar, acessar, acompanhar e controlar o acesso aos veículos de lançamento.

E o governador do Maranhão, em sua fala no seminário, diz que acha isso tudo normal e chegou a comparar o território a ser concedido aos EUA a um box de uma equipe da Fórmula 1, onde ninguém pode entrar para ver o que está sendo feito. Defendeu, na realidade, um território estadunidense no Maranhão, uma porteira fechada perigosa, já que não se sabe a totalidade do acordo que está sob sigilo.

Mas como o governo estadual defende um “acordo” sem, no mínimo, ter uma solução definitiva para a titulação das terras quilombolas e o passivo social com as comunidades tradicionais e o povo de Alcântara? E vamos mesmo transformar Alcântara em um pedaço do território dos EUA?

Parece que mais uma vez a possibilidade de ganhos econômicos e royalties estão acima da vida dos trabalhadores e das comunidades tradicionais e originárias da linda, lutadora, acolhedora e encantadora Alcântara.