Redação

Clique nos links para assistir os filmesA explosão das Torres Gêmeas, em um 11 de setembro, há dez anos, de certa forma tem ofuscado uma tragédia de proporções ainda maiores que se abateu sob o Chile, na mesma data, mas há 38 anos: o golpe promovido pelo general Augusto Pinochet.

Esse fato e suas implicações ideológicas, evidentemente, não passaram desapercebidos para os que mantém um olhar mais atento ao mundo e um dos primeiros a resgatar a relação entre as duas datas foi o cineasta Ken Loach que, em 2002, estabeleceu uma provocativa aproximação entre os dois “11 de setembro” num curta-metragem que faz parte do filme 11’09″11, que reúne onze diretores, de países diferentes, que produziram filmes de exatos 11 minutos, em torno dos atentados de 2001.

No belíssimo curta, um homem lê uma carta para o povo americano, lamentando o ocorrido; mas pedindo a este que se lembre do outro “11 de setembro”; aquele que foi patrocinado pelo governo norte-americano e que provocou a morte de mais de 30 mil pessoas, além do exílio de milhares de outras, como o próprio leitor.

Assim, no filme, a solidariedade do chileno às 3.500 vítimas “11 de setembro” norte-americano ecoa como um grito de dor e um balanço, ao mesmo tempo, lúcido e amargo dos muitos atentados à liberdade cometidos pelos governos ianques e que, em última instância, transformaram o povo dos EUA em alvos do ódio de muitos.

O filme de Loach é um ótimo ponto de partida para resgatarmos algumas obras cinematográficas que, no decorrer das últimas 40 décadas, têm ajudado a manter na memória a luta e história dos milhares que foram torturados e mortos por uma das mais sanguinárias ditaduras da América Latina.

Filmes que merecem ser conhecidos ou revisitados, até mesmo para entender como estas duas datas continuam se “encontrando”, seja nas ruas de Santiago, atualmente sacudidas pelas mobilizações estudantis, seja em qualquer outro lugar do mundo onde ainda se lute contra a exploração e opressão imperialistas, muitas vezes levada à cabo com a ajuda de canalhas e vermes como Pinochet, Médici, Videla e tantos outros ditadores que infestaram nosso continente.

Dos filmes da “Unidade Popular” ao Cinema do Exílio
A Frente Popular encabeçada por Salvador Allende também teve uma expressão cinematográfica. Ou seja, entre o final dos anos 1960 e início dos 70, muitos dos filmes produzidos refletiam uma perspectiva antioligárquica ou anticapitalista apoiada numa visão política que tinha no horizonte a “conciliação de classes”.

Assim como em outros países da América Latina, que também atravessavam processos similares, esta situação deu origem a um movimento, conhecido como “Nuevo Cine Chileno”, que tinha entre seus principais nomes como Raúl Ruiz (Três tigres tristes) e Miguel Littin (El chacal de Nahueltoro, de 1969, sobre a marginalização dos trabalhadores do campo) e Helvio Soto (Caliche sangriento) e como principal característica a produção de curtas, documentários e longas de ficção que refletissem as contradições sociais, econômicas e políticas daquele momento e, também, se contrapor ao monopólio que a oposição burguesa detinha sobre os meios de comunicação.

Cabe destacar também que, neste momento, o aprofundamento da ditadura brasileira fez com que muitos daqui buscassem exílio (pessoal, político ou profissional) no país andino. Este foi o caso de cineastas e atores como Leon Hirszman, Lauro Escorel Filho, Luiz Alberto Sanz, Sérgio Sanz, Helvécio Ratton, Silvio Tendler, Affonso Beato, Glauber Rocha, Carlos Diegues e Norma Bengell e outros.

Com a eclosão do golpe, o setor foi literalmente devastado. Para além das prisões e mortes de centenas de profissionais, houve um massivo exílio de cineastas e técnicos, arquivos e cinematecas foram saqueados e incendiados e aqueles que se arriscaram a continuar produzindo no país foram submetidos a uma rigorosa censura.

É esta situação que dá origem ao “Cinema Chileno no Exílio”. Primeiro como uma forma de denúncia do golpe, depois, até o início da década de 1990, como única possibilidade, para os profissionais do cinema chilenos, em refletir sobre seu próprio país.

Um filme, particularmente, marca a transição entre estes dois momentos: a impressionante trilogia “A batalha do Chile”, dirigida por Patrício Gúzman e finalizada em Cuba. Dividido em três partes, o documentário foi realizado no “calor do momento”, por Guzmán (que, poucos dias depois do golpe, chegou a ser preso no famigerado Estádio Nacional, mas foi libertado sem nenhuma explicação) e seu diretor de fotografia, Jorge Müller Silva, a quem o filme é dedicado, já que não teve a mesma “sorte” de Guzmán e até hoje integra a lista dos “desaparecidos”.

A primeira parte, A Insurreição da Burguesia, traça um panorama dos primeiros anos de governo e a organização da oposição de direita. O filme termina com uma das cenas mais impactantes da história do “cinema político”: um cinegrafista filma seu próprio assassinato, ao ser baleado por um oficial do exército, enquanto cobria uma das primeiras investidas militares.


A Batalha do Chile – Parte 1 – A Insurreição da Burguesia

A segunda parte, O Golpe de Estado (também finalizada em 1975), transmite a angustiante situação do golpe através da situação do próprio Guzmán que se encontra “preso” em um apartamento, acuado, impotente, apenas vendo na TV e ouvindo pelo rádio os últimos momentos de Allende. Já a terceira parte, O Poder Popular (de 1979), funciona mais como um apêndice, mostrando como os trabalhadores se organizaram para manter vivo o ideal do lema “criar, criar, poder popular.”

No Brasil, o DVD de “A batalha do Chile” foi lançando com um quarto disco, que traz outro importante documentário, A Resistência Final de Salvador Allende, de 1988, dirigido por Patricio Henríquez, e que reúne depoimentos de testemunhas sobreviventes do ataque ao Palácio de La Moneda. Enquanto elas contam como foi como foi o ataque, na manhã de 11 de setembro de 1973, imagens de arquivo e trechos de transmissões radiofônicas de Allende e dos oficiais das Forças Armadas reconstituem os acontecimentos que precederam o golpe.

Apesar da força, de “A batalha do Chile”, em termos internacionais o primeiro filme a realmente chamar a atenção para a situação chilena foi o excelente “Chove sobre Santiago”, (dirigido por Helvio Soto, em 1979, numa co-produção entre França e Bulgária, 1976). O título é uma referência ao nome dado à operação montada pela direita chilena, as Forças Armadas de Pinochet, a Central de Inteligência Americana (CIA) e ditadores de outros países latino-americanos (que, no decorrer dos anos 70 criaram a malfadada Operação Condor, para combater e eliminar a esquerda do continente).

De forma realmente vigorosa, o filme retrata a preparação e o momento do golpe, dando ênfase à participação norte-americana e reproduzindo vários documentos que comprovam isto, como uma carta, de 1970, do então embaixador dos Estados Unidos em Santiago, E. Korry, a Eduardo Frei: “Deve saber que não permitiremos que chegue ao Chile um parafuso, nem uma porca… Enquanto Allende permanecer no poder, faremos tudo ao nosso alcance para condenar o Chile e os chilenos às maiores privações e misérias…”. Uma promessa ratificada em outro documento do escritório central da CIA em Santiago, datado em 14 de outubro de 1970, no qual a Agência fazia “Informar a esses oficiais golpistas que o governo dos Estados Unidos lhes dará seu respaldo total no golpe”.

Outro tema recorrente desta produção foi própria situação do exílio e todas suas implicações, em termos pessoais, culturais e sociais. Neste campo, um dos melhores títulos é “Diálogos de exilados”, realizado na França, em 1975, por Raúl Ruiz (que morreu há pouco mais de um mês, aos 70 anos), que compôs um poético e belo semi-documentário com exilados chilenos vivendo em Paris.

Contudo, foi outro integrante do grupo, Miguel Littín, que imprimiu um caráter mais político e abertamente “militante” ao Cinema de Exílio, em filmes que, nas palavras do próprio diretor, são frutos de sua “consciência humanista e libertária”.

Em 1971, com cerca de 25 anos, Littín foi convidado por Allende para dirigir a estatal Chile Films, cargo que ocupou até o dia do golpe. Exilado no México, produziu alguns dos mais belos filmes da década de 1970. “Actas de Marusia” (1975) narra uma história real, de 1907, quando mineiros da província chilena de Marusia entram em greve em protesto às péssimas condições de trabalho em minas de propriedade britânica e desencadeiam um movimento de grande força, sufocado por um verdadeiro massacre.

O também belíssimo “Alsino y el cóndor”(Veja trailer) (Nicarágua/Cuba/México/Costa Rica, 1982) conta a história do garoto Alsino, que vive em país latino-americano “qualquer”, onde um grupo guerrilheiro resiste às investidas do exército local, assessorado pelos norte-americanos. Em meio a tudo isto, Alsino sonha em voar como um condor.

Dentre os seus muitos (e ótimos) filmes, o mais marcante, tanto por sua enorme ousadia e por tudo o que revelou, é o documentário “Ata Geral do Chile” (trecho), filmado em 1985, quando o cineasta retornou clandestinamente ao país, disfarçado e com uma identidade falsa, e percorreu o Chile (inclusive o Palácio de La Moneda, a poucos metros do gabinete de Pinochet) com o objetivo de registrar as muitas facetas do autoritarismo que contaminou a sociedade chilena.

A experiência resultou em filme de quatro horas, para a TV, e num documentário, com duas horas, que percorreu o mundo. Anos depois, Gabriel García Márquez, depois de entrevistar o diretor, produziu um belo livro-reportagem, (As aventuras de Miguel Littin clandestino no Chile) recontando a experiência de Littín, na primeira pessoa.

Cena de Isla 10
Uma das últimas incursões de Littin na história de seu povo foi “Dawson, Isla 10” (trailer) (making-of) (co-produção de Chile, Brasil e Venezuela) título que faz referência à gélida ilha no extremo sul do país, transformada em campo de concentração, tortura e morte, para o qual foram levados centenas de chilenos, inclusive vários ministros do gabinete de Allende, dentre eles o então ministro das Minas e Energia Sérgio Bitar, autor do livro “Islã 10”, que também serviu no ministério de Michele Bachelet. O filme ainda resgata várias cenas da época, principalmente as que mostram o bombardeio do Palácio de La Moneda e os momentos finais de Salvador Allende, já de arma na mão, antes do suicídio.

Acerto de contas com os EUA
Apesar de não se possível enquadrá-lo na categoria “cinema de exílio”, o filme Desaparecido (Missing, 1982)
(ver trecho), do cineasta Greco Costa-Gavras – que dirigiu outros clássicos sobre ditaduras, como “Z” (1968), sobre seu próprio país, e “Estádio de Sítio” (1972), sobre o Uruguai – é, em grande medida, resultado de um olhar “de fora pra dentro”. Primeiro, por refletir a perspectiva política e militante de seu diretor europeu; segundo, e mais importante, por promover um vigoroso e fundamental debate sobre a participação norte-americana, tanto no golpe quanto na feroz repressão que se seguiu.

Baseado em fatos mais do que reais, o filme acompanha, em um tom que transita entre o documental e o ficcional, a saga de um pai norte-americano que viaja ao Chile, pouco depois do golpe, a procura de seu filho, um jovem jornalista, correspondente para o The New York Time e The Washigton Post, que colabora com jornais “subversivos” chilenos.

Grande parte do impacto do filme na própria sociedade norte-americana se deve ao fato de que o roteiro foi baseado no livro “A execução de Charles Horman: um sacrifício americano”, lançado em 1978, por Thomas Hauser, contando a história do jovem que foi sacrificado no Estádio Nacional. Isto, juntamente com o crescente protesto contra as ditaduras que começam a ruir na América Latina, fez, inclusive, com que a Academia de Hollywood, num de seus raros momentos de questionamento do sistema, premiasse a produção com o Oscar de melhor roteiro adaptado.

Revisitando a tragédia
Com o fim do regime ditatorial, em 1990, cineastas que tiveram sua carreira interrompida ou desenvolvida no exílio começaram gradativamente a retornar ao país. Dentre eles, um dos primeiros a estrear em solo chileno foi
“La luna en el espejo” (1990), de Silvio Caiozzi. Baseado em um roteiro escrito em 1983, com o escritor José Donoso, o filme acompanha a história de um homem de 40 anos, oprimido e infantilizado pelo pai autoritário, uma clara e evidente referência ao ditador.

Belíssimo em sua construção, o filme de certa forma une dois pontos na carreira de Caiozzi, já que também é também dele (e igualmente metafórico) um dos poucos filmes que conseguiu estrear no Chile, após o golpe de 1973. Para burlar a censura, em “Julio comienza en Julio”, de 1977, Caiozzi localizou sua história no início do séculos e utilizou-se da história da iniciação afetiva e sexual de um adolescente, filho de um rico e autoritário latifundiário, para discutir os mecanismos de poder, o patriarcalismo e os preconceitos de classe arraigados na sociedade chilena.

Mergulhando também no tom metafórico e poético, “A fronteira” (1991)(ver trechos) de Ricardo Larraín, narra a história de um professor que, em função da repressão no Chile, é obrigado a se exilar num lugar remoto e desolador. O fato de o local ter sido marcado pela colonização espanhola, os maremotos constantes e a presença da figura autoritária de um pai que se coloca entre o professor e a mulher pelo qual ele se apaixona compõem um intricada metáfora para a ditadura chilena.

Os momentos finais de Allende e seu suicídio (que, segundo legistas que reinvestigaram o caso, de fato ocorreu) é o também o tema de “Héroes Frágiles” (trailer + ficha), um documentário do chileno Emilio Pacull fez em torno da história de seu próprio padrasto, o jornalista Augusto Olivares, um dos mais próximos assistentes de Allende e diretor do canal de Televisão Nacional (TVN) em 1973, que se suicidou minutos antes do presidente.

Um dos filmes recentes que atingiu grande popularidade foi Machuca (2004), de Andrés Wood, que revê o ano de 1973 a partir do olhar de Gonzalo, um garoto da elite, que estuda no melhor colégio de Santiago, o Saint Patrick, onde, por iniciativa de uma padre simpático ao regime de Allende, é implementado um programa de admissão de garotos pobres (a história baseia-se no livro autobiográfico “Três anos para nascer”, de Eledín Parraguez, que viveu esta experiência de “integração social”, num colégio católico para meninos, durante os anos da Unidad Popular). Um deles é Pedro Machuca. A amizade que se forma entre os dois serve, ao mesmo tempo, como metáfora e como pano de fundo para a situação social que foi sufocada pelo golpe de Pinochet.

Dentre os filmes mais recentes, um dos mais inusitados e contundentes é “Post mortem” (2010),(ver trailer), de Pablo Larraín. Inovador na linguagem e ousado na abordagem, o filme tem como protagonista Mário Cornejo, um trabalhador do Instituto Médico Legal, responsável por datilografar os relatórios das autópsias feitas pelos legistas. Não é difícil imaginar que, nos dias do golpe, o trabalho de Mário se transformar num pesadelo, cujo horror e a sanidade muitas vezes ganham ares de completo de um absurdo que beira o grotesco. Em sua cena mais emblemática, vemos o corpo Allende, com a cabeça estourada, estendido sobre uma maca do necrotério de Santiago, cercado por militares. E a metáfora é evidente: a autópsia deste corpo é uma referência a verdadeira “autópsia” que o povo chileno (como o brasileiro, o argentino, o paraguaio, etc) precisa fazer sobre sua própria história, para poder “dissecar” as muitas marcas que a ditadura deixou em nossos “corpos sociais”.

Nascido três anos após o golpe, Larraín tem se destacado pela capacidade de, através de seus filmes, lançar um novo olhar sobre a tragédia de seu povo. Um olhar bastante crítico, mas nunca distante do poético. Assim, enquanto em “Post Mortem”, o terror político se entrelaça com a história de “amor impossível” entre o funcionário do necrotério e uma dançarina de cabaré (numa interessante referência aos dois “opostos” que convivem na escuridão da noite), seu filme anterior, “Tony Manero”, de 2008, toma como ponto de partida a obsessão, em 1978 (ou seja, no auge da repressão), de um homem de 50 anos pelo famoso personagem de John Travolta em “Os embalos de sábado à noite”.

Resgatando histórias
Com o objetivo de ganhar um concurso de imitação do personagem, Raúl mergulha no mundo do crime, enquanto vários de seus amigos e parceiros de dança são perseguidos pela polícia secreta do governo. Uma situação que serve ao diretor para discutir questões como a perda de identidade e o crime obsessivo reinantes no Chile.

Dentre as produções mais recentes, merece destaque “Diário de uma Busca” (2010) (trailer), o documentário de estreia da diretora gaúcha Flávia Castro. Esta co-produção entre Brasil e França tem como fio condutor a busca da própria cineasta por seu pai, o ex-jornalista e militante político Celso Afonso Gay de Castro (1943-1984), cujo assassinato nunca explicado leva a diretora a vasculhar os porões das ditaduras do Brasil, Chile e Argentina, entre as décadas de 1960 e 1970.

Outra produção em que um filho se utiliza do cinema para resgatar a história e memória de seu pai é o documentário “Mi Vida con Carlos” (Chile/Espanha, 2009)(trailer) no qual o chileno German Berger resgata com fotos, imagens e entrevistas a memória de seu pai Carlos Berger, que morreu esquartejado pela ditadura na chamada “Caravana da Morte” (a sinistra operação do governo encarregada de eliminar oposicionistas presos e desfazer-se dos corpos). Na época, German tinha apenas um ano de idade e grande parte do filme se baseia nos depoimentos de seus tios e companheiros de militância de Carlos, particularmente Carmen, mãe de German, que dedicou sua vida em batalha judicial e pública pela condenação de Pinochet. É de Carmen, a frase que sintetiza a relevância deste e outros filmes que compõem este coletânea: “Quem subjuga seu passado não consegue modelar seu futuro”, comentou.

A morte do ditador
Para acabar, nada melhor do que uma produção que celebra a muito aguardada morte do canalha que comandou o assassinato e promoveu o sofrimento de tantos milhares. Um “gostinho” disto é oferecido por “La muerte de Pinochet”
(parte 1)(parte 2), dirigido por Bettina Perut, Iván Osnovikoff. Realizado a partir de imagens gravadas no dia 10 de setembro de 2006, quando o ditador morreu, lamentavelmente já na avançada idade de 91 anos, sem ter pago por seus muitos crimes. As câmeras registram as diferentes reações do povo (pró e contra o ditador) que esperava pelo anúncio da morte em frente ao Hospital Militar de Santiago.