“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso;
viver não é preciso’.

Quero para mim o espírito desta frase (…): Viver não é necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso
tenha de a perder como minha.”

Fernando Pessoa -“Palavras de pórtico”

Fernando Pessoa, que nasceu há 120 anos, em 13 de junho de 1888, não poderia ter vindo ao mundo com um sobrenome mais apropriado.

É verdade que “ser pessoa” é aquilo que nos faz indivíduos únicos. Mas também é um fato que, naquilo que pode nos fazer, de fato, parte da humanidade, “ser pessoa” nos obriga a nos fazermos múltiplos, multifacetados.

Afinal, para “ser pessoa”, gente de verdade, é preciso ver o mundo não de forma “plana”, mas, sim, através de suas contradições. Para não ser apenas alguém que “vive” e ser tornar uma “pessoa” digna de fazer parte da grandeza da humanidade, é preciso negar e fugir de tudo que seja “comum”: do senso aos gostos “comuns”; daquilo que “comumente” se espera do comportamento e do que a maioria dos seres humanos, hoje, pensa e quer do mundo.

“Ser pessoa”, como lembra o poeta português é muito mais que simplesmente viver. É preciso navegar. Navegar pela complexidade do mundo, criando novas rotas, fugindo dos atalhos, driblando as facilidades. Navegar com tal intensidade e paixão pela própria vida ao ponto de que não se tenha medo de perder a própria humanidade naquilo que ela tem de mais “passageira”: a vida.

Fernando Pessoa foi exatamente assim. Um escritor e poeta, cujo desejo de ver o mundo a partir de seus múltiplos ângulos e explorar ao máximo as possibilidades de criação, se fez múltiplo ao ponto de “abrir mão” de sua própria “pessoa”, dando origem a seus impressionantes “heterônimos”. Outras “pessoas” criadas pelo próprio escritor e sob o nome das quais assinou parte significativa de sua obra.
Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Vicente Guedes, Bernardo Soares, Antônio Mora, José Pacheco e tantos outros não expressam simples pseudônimos sob os quais Fernando Pessoa quisesse se esconder. Eles foram algo muito diferente. Eram, literalmente, outras pessoas. Com biografias, obras e concepções artísticas próprias e distintas.

Uma poesia contraditória, como a vida
A obra de Pessoa, em todos os seus aspectos, foi profundamente marcada pela sua vivência. Nascido em Lisboa, numa família de classe média, que depois de passar por dificuldades financeiras teve que se mudar para a África do Sul, o poeta, desde sua infância sentiu-se “fora do lugar”.

Sua resposta a isto, mais tarde, transformou-se num dos seus temas favoritos: o exílio. Tanto aquele “físico”, que nos distancia de um lugar real, até o exílio ou auto-exílio como metáfora para a imposição de um distanciamento de algo ou alguém que amamos.

Exemplos disso são a recorrente referência que o poeta faz à palavra “pátria” e, principalmente, o sentido que geralmente ela tem na sua poesia. Pátria não tem nada a ver com fronteiras, nem mesmo com limites raciais e sociais. Como ele próprio escreveu, sua pátria é sua língua. E os limites, formas, estilos que um língua pode assumir são infinitos. Como também são ilimitadas as possibilidades e os mundos que podem ser criados quando se transforma língua em poesia.

Sua obra, evidentemente, também só poderia brotar de uma personalidade complexa. Extremamente reservado na sua intimidade, com aspecto físico de burocrático funcionário público, Pessoa também navegava pela boêmia lisboeta e era dotado de um afiado e irônico senso de humor.

Pessoa não foi um mero espectador do mundo, mas de um observador atento, sempre discreto. Empregado de horas irregulares, figura solitária, mas também freqüentador assíduo dos restaurantes baratos, botecos modestos e recantos boêmios, ele transformava tudo o que via e ouvia em prosa e poesia.

Contradições em um tempo tumultuado
Pessoa e suas demais “personas” foram também fruto de seu tempo. Contemporâneo de outros “gênios” como o pintor Pablo Picasso, o músico Stravinsky, escritores como James Joyce, Kafka, Maiacovski, Oswald e Mário de Andrade, Fernando Pessoa e sua obra são reflexos dos tumultuados anos que serviram como campo fértil para a explosão do Modernismo brotar nas artes plásticas, no teatro, no cinema e na literatura.

Sua obra e seus escritos, principalmente aqueles que navegam pelo campo da teoria, estão sempre, direta ou indiretamente, impregnados pelos ares respirados por um mundo que havia acabado de assistir aos horrores da I Guerra Mundial e ainda estava atordoado pelo tremendo impacto da Revolução Russa de 1917.

Para muitos, as profundas mudanças que estavam ocorrendo e que podiam ser sentidas em todos os aspectos da vida (do comportamento e moda à sexualidade, da economia às concepções de mundo), provocaram tamanho impacto que fez com que alguns se sentissem exilados de si mesmos e do mundo.

Foi exatamente esta sensação que fez que Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e outros amigos se juntassem, em 1915, para fundar a revista “Orpheu”, marco inicial do Modernismo, em Portugal.

Politicamente, contudo, é preciso lembrar, Pessoa mergulhou a si próprio num poço de contradições. Traduzindo o mundo ao seu redor como símbolo de uma desordem desencantadora, o poeta só pode ser considerado um “conservador”. Mas nunca um reacionário.

Fingidor de si próprio e da nossa dor
Essa tendência ao conservadorismo não só deixou marcas no pessimismo e angústia existencial que impregnam vários poemas de Pessoa. Ele também deve se encontrar por trás da complicadíssima relação que o poeta tinha com sua sexualidade. Cercada de mistérios, sua vida amorosa, além de uma tumultuada relação com uma mulher chamada Ophélia, não deixou muitos indícios sobre qualquer relação amorosa definitiva, homo ou heterossexual.

O fato, contudo, é que pelo menos um de seus heterônimos é “abertamente” gay. Álvaro de Campos, o engenheiro futurista, não só declarou sua admiração incondicional a outro poeta homossexual, o norte-americano Walt Whitman, como escreveu sobre o amor entre homens em diversos poemas, como “Ode marítima”, “Soneto já antigo”, “Poema em linha reta” e “Passagem das horas”.

Criador de mundo, fingidor, destruidor e reconstrutor de si próprio, o que sabe ao certo sobre Pessoa, é que ele foi um dos maiores poetas da humanidade. Um poeta que rompeu não só as barreiras da identidade, perfurou as fronteiras ideológicas e transformou a literatura. Conseguir algo ainda mais raro: rompeu com a barreira do tempo e do espaço, ainda presente, apesar de seu precoce falecimento, aos 47 anos.

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