Para a revista Veja, o que aconteceu foi um golpe militar. Aqui existe um claro desejo dos representantes do capital financeiro de fazer desaparecer o papel das massas egípcias.

Mas existe outro questionamento mais importante, vindo de setores da esquerda. Como é possível ter havido uma revolução, se segue havendo o capitalismo? Essa discussão leva a um debate teórico, feito por Trotsky no prólogo de seu livro “História da Revolução Russa”.

“O traço característico mais indiscutível das revoluções é a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos. Em tempos normais o Estado, seja monárquico ou democrático, está por cima da nação; a história corre nas mãos dos especialistas deste ofício (…). Mas, nos momentos decisivos, quando a ordem estabelecida se faz insuportável para as massas, estas rompem as barreiras que as separam da política, derrubam seus representantes tradicionais e, com sua intervenção, criam um ponto de partida para o novo regime (…). A história das revoluções é para nós, por cima de tudo, a história da irrupção violenta das massas no governo de seus próprios destinos”.

Quem pode ter dúvidas de que no Egito as massas “irromperam violentamente” para “intervir nos acontecimentos históricos”? A vanguarda foi sem dúvida a juventude, a que foram se somando diferentes camadas populares para formar uma mobilização massiva que pôs em xeque o regime e obrigou Mubarak a renunciar.

Revolução democrática em Moreno
Já Nahuel Moreno explicava por que a derrubada das ditaduras militares na Argentina, na Bolívia e no Peru tinham sido revoluções: “Alguns sustentam que só há revolução quando o movimento de massas destrói as Forças Armadas de um Estado ou regime, como ocorreu na Nicarágua. Outros definem que há revolução quando muda o caráter do Estado, ou seja, quando o poder passa às mãos de outra classe, como aconteceu na Rússia de 1917. Finalmente, outros ainda asseguram que a revolução se produz quando se expropria a classe dominante, como se deu, por exemplo, em Cuba, mais de um ano depois do triunfo castrista (…).

Reforma e revoluções se produzem em tudo o que existe, pelo menos em tudo o que é vivo. ‘Reforma’, como o nome indica, significa melhorar, adaptar alguma coisa, para que continue existindo. Já ‘revolução’ é o fim do velho, e o surgimento de algo completamente novo, diferente (…).

Tomando como exemplo o desenvolvimento da aeronáutica, podemos ver que passou por três revoluções. A primeira foi quando o homem começou a voar com aparelhos mais leves que o ar, como balões. A segunda foi quando inventou aparelhos mais pesados que o ar, os aviões com motor a explosão. A terceira revolução são os motores a jato (…).

Por que chamamos de revoluções esses três grandes avanços? Porque cada um deles é substancialmente distinto do anterior, e liquida com o anterior. Os aviões com motor a explosão acabam com os balões. Os aviões a jato acabam com os aviões a explosão (…).

Porém, entre essas revoluções, ocorrem progressos, melhoramentos, ou seja, reformas. Como toda definição marxista ou científica, revolução e reforma são termos relativos ao segmento da realidade que estamos estudando (…). Para usá-los corretamente, não devemos esquecer seu caráter relativo. Revolução em relação a quê? Reforma em relação a quê? (…).

Se nos referimos à estrutura da sociedade, às classes sociais, a única revolução possível é a expropriação da velha classe dominante pela classe revolucionária (…). Se nos referimos ao Estado, a única revolução possível é que uma classe destrua o Estado da outra; que a expulse e o tome nas mãos, construindo um Estado distinto (…). Sustentamos que a mesma lei se aplica em relação aos regimes políticos.”

Moreno segue explicando que existem mudanças revolucionárias e reformistas nos regimes. As revoluções se dão quando ocorrem duas condições. A primeira é o surgimento de crises revolucionárias, ou seja, quando as instituições do regime ficam completamente paralisadas. Quando o processo é de reformas não existe isso, portanto, ocorrem mudanças graduais, planejadas. A segunda condição é que o regime anterior desaparece, e o que aparece posteriormente é “absolutamente distinto”.

O que aconteceu no Egito?
No Egito, durante 18 dias, as massas ocuparam a Praça Tahrir, transformando-a não só no centro das lutas contra Mubarak, mas também em um poder alternativo ao do governo. Ali se centralizava a luta, se enviavam manifestantes para outros lugares, se organizava a defesa contra a polícia, se cuidava dos feridos. Um início de duplo poder.

O governo não controlava mais o país. Os toques de recolher foram ignorados. Para tentar reprimir os protestos, recorreu a policiais disfarçados que não impediram a continuidade das manifestações. Para quebrar a rebelião seria necessário um banho de sangue, como o ocorrido na China de 1989. E seria preciso ter um exército unificado sob as ordens de Mubarak. Isso não existia. As Forças Armadas estavam paradas pela crise.

Por último, o governo tentou um acordo com a oposição burguesa, uma transição (uma reforma) mantendo Mubarak até setembro. As mobilizações se intensificaram, repudiando a proposta. Greves explodiram, ampliando a força dos manifestantes. Existiu uma crise revolucionária no Egito, que possibilitou a queda deo ditador.
O regime atual é completamente distinto da ditadura de Mubarak. Não se trata da forma, que mantém certa continuidade. A instituição principal continua sendo o exército, o governo de transição inclui figuras do governo anterior. Mas o conteúdo é completamente distinto da ditadura que assassinou e impediu por trinta anos qualquer oposição.

A diferença é que houve uma brusca mudança na relação de forças, com as massas se sentindo vitoriosas e querendo seguir com suas reivindicações. O regime atual, em crise, busca recompor suas forças para uma transição mais ou menos ordenada. Mas não tem a força da ditadura de Mubarak. Terá de negociar com a oposição uma saída política.

Assim, as duas características definidas por Moreno existiram no Egito. Por isso, ocorreu uma revolução democrática, que derrubou o regime ditatorial.

Agora falta… tudo
Essa definição de uma revolução democrática vitoriosa serve para localizar o momento atual do Egito, segundo a teoria da revolução permanente. Foi cumprida apenas uma tarefa democrática, mas ainda falta todo o resto.

Na concepção da revolução permanente, o processo pode começar por tarefas democráticas (como no Egito), mas deve ser parte de uma revolução socialista para derrubar o Estado, libertar o país do imperialismo e expropriar a propriedade capitalista.

No caso do Egito, a revolução vitoriosa agora terá de se enfrentar no terreno democrático com a conquista de eleições para uma assembleia constituinte e a necessária destruição do aparato repressivo, que segue existindo, apesar da crise. Terá de se enfrentar com a dominação do imperialismo e de Israel, com a ruptura dos pactos que submetem o país. Precisará responder às necessidades mínimas dos trabalhadores, com suas reivindicações salariais, e apontar para a expropriação da burguesia. No terreno internacional, terá que levar a revolução democrática aos outros países da região.

Ou seja, a definição do que ocorreu no Egito como uma revolução democrática, não significa que terminou um processo vitorioso. Abre-se uma nova realidade no processo da revolução socialista, muito mais difícil no enfrentamento com a contrarrevolução.
A definição da vitória da revolução democrática serve também para definir o programa. Antes, nosso programa de transição girava ao redor da palavra de ordem “fora Mubarak” (ou abaixo a ditadura). Agora, tem de indicar novas tarefas democráticas, anti-imperialistas e de transição, que surgem com mais força.

Essas lutas questionam o capitalismo e o imperialismo, e só a classe operária poderá dar-lhe perspectiva. Por isso, terão que colocar uma nova perspectiva no centro, um governo operário capaz de impor essas reivindicações, apoiado na mobilização das massas.
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