A morte de Terri Schiavo, nos Estados Unidos, e dois filmes que estão em cartaz – Menina de Ouro e Mar Adentro – reacedem a polêmica sobre a eutanásia. No caso de Terri, o uso político de sua tragédia pelos setores mais conservadores da sociedade também eEm 31 de março, teve fim a agonia de Terri Schiavo, que estava sendo mantida vida, em estado vegetativo irreversível, há 15 anos, desde que teve uma parada cardíaca que danificou parte de seu cérebro.

Desde 1998, Michael Schiavo, marido e guardião legal de Terri, estava lutando na Justiça para desligar os aparelhos que a mantinham viva, afirmando que este era o desejo expresso pela própria Terri, quando ainda estava consciente.

A batalha judicial foi provocada pela resistência dos pais de Terri que, apoiados por grupos religiosos e políticos conservadores, tentavam impedir ou reverter as ordens judiciais favoráveis ao desligamento da sonda, alegando que Terri demonstrava vontade de viver e poderia se recuperar. Um diagnóstico que foi negado pela maioria das equipes médicas que a examinaram, que diziam que Terri não poderia sentir absolutamente nada.

A polêmica ganhou dimensão nacional, envolvendo desde o presidente George Bush até o Congresso norte-americano, passando por uma infinidade de organizações ultraconservadoras que transformaram a triste história de Terri em uma bandeira política.

Manobras políticas
A sonda de Terri foi desligada no dia 18 de março, com a autorização de um juiz da Flórida. No dia 28, o presidente Bush encurtou suas férias apenas para sancionar uma resolução do Congresso contra essa decisão e que, também, transferia a decisão sobre o caso para o âmbito federal.
Os congressistas aprovaram a medida em caráter emergencial (um fato inédito na história dos EUA), em plena madrugada, de olho nas eleições que ocorrerão em 2006, já que os pais de Terri são apoiados por cristãos fundamentalistas, associações contra o aborto e conservadores em geral, que formaram a coluna dorsal da reeleição de Bush.

O tiro, contudo, saiu pela culatra. Declarada inconstitucional, a tentativa de intervenção ainda foi rejeitada por 70% dos norte-americanos, que viram o uso político do caso. Além disso, a maioria dos americanos (63%) defendia a retirada da sonda.

Antes disso, o irmão do presidente, o governador da Flórida, Jeb Bush (em 2003, ele criou uma lei especial, posteriormente declarada inconstitucional, que permitiu, na época, o religamento de aparelhos), chegou a defender que a Guarda Nacional deveria invadir o hospital, “libertar” Terri e alimentá-la.

Transformada em questão política, com manifestações diárias na frente do hospital, a tragédia de Terri levantou, mais uma vez, a polêmica sobre a eutanásia – “boa morte”, em grego –, uma prática cujo direito é proibido em quase todos os países, geralmente se baseando em valores morais.

Hipocrisia e eutanásia social
Dois elementos fundamentais nesta polêmica são relativos ao direito de qualquer indivíduo de interromper deliberadamente sua própria vida e, particularmente, em relação a uma outra pessoa tomar essa decisão, diante da incapacidade do doente.
Grupos religiosos e conservadores, utilizando argumentos muito semelhantes aos que condenam o aborto, insistem em afirmar que nenhum ser humano tem o direito sobre seu próprio corpo e, em última instância, sua própria vida.

No caso da eutanásia, negar esse direito democrático, contudo, significa impor um sofrimento totalmente desumano a pessoas que são mantidas vivas às custas da dor, da total perda da consciência ou contra sua própria vontade, tendo em vista que já não podem sequer se movimentar.

Além disso, o episódio envolvendo Terri e, particularmente, o circo político armado em torno do caso evidenciaram o quanto há de hipocrisia nessa “defesa da vida” pregada por Bush e seus seguidores.

São esses mesmos setores os mais ardorosos defensores de práticas de extermínio, como a pena de morte e a “guerra preventiva”. Além disso, são eles também que conduzem e apóiam políticas que resultam na mistanásia, esta, sim, uma prática cruel que leva milhões de vidas a serem abreviadas em todo o mundo.

Também conhecida por eutanásia social, a mistanásia foi definida pelo professor Leonard Martin como a morte miserável, fora e antes da hora, causada por três circunstâncias: “primeiro, a grande massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; segundo, os doentes que conseguem ser pacientes para, em seguida, se tornar vítimas de erro médico e; terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas da má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos”.

Amplamente praticada pelo capitalismo, a mistanásia aproxima-se muito de um outro tipo de prática, comumente citada nos argumentos de quem condena a eutanásia: a eliminação de pessoas, por determinação do Estado, por meio da eugenia, a chamada “higienização social”.

Em diferentes momentos da história, governos e Estados defenderam e praticaram a eliminação de pessoas consideradas inadequadas para a sociedade: de deficientes físicos e mentais a portadores de doenças contagiosas, passando por gente tida como “inadequada” em relação ao racismo e a todo tipo de preconceito. Isso ocorreu em ampla escala na Alemanha de Hitler, mas também nos EUA e, até mesmo, no Brasil, nos anos 1930.

Histórias como a de Terri ou Ramon Sampedro (veja ao lado) não têm relação com isso. Em seus casos, a opção pela morte é uma forma de exigir o direito à dignidade, até na morte.

A eutanásia no cinema

Dois filmes atualmente em cartaz e premiados pelo Oscar têm a eutanásia no centro de suas histórias. Em Menina de Ouro – que ganhou os prêmios de melhor filme, melhor direção (Clint Eastwood), melhor atriz (Hilary Swank) e melhor ator coadjuvante (Morgan Freeman) –, a questão vem à tona quando uma figura apaixonada pela vida e pelo boxe vê-se tetraplégica, presa a uma cama.

O espanhol Mar Adentro, dirigido por Alejandro Amenábar e vencedor do prêmio de melhor filme estrangeiro, conta a história real de Ramón Sampedro, tetraplégico por 29 anos, desde um acidente no mar, e que solicitou à Justiça, durante cinco anos, o direito de morrer dignamente. Incapacitado de praticar o suicídio, por só ter mobilidade na cabeça, e totalmente lúcido, ele recorreu a amigos para ingerir cianureto, em 1998.

O caso ganhou repercussão mundial, principalmente quando uma amiga de Ramón foi incriminada pela polícia e milhares de pessoas de todo o mundo enviaram cartas para a Espanha “confessando o crime“.

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