Leia a entrevista concedida ao Portal do PSTU por José Moreno Pau, ativista da Corrente Vermelha e militante do PRT-IR, seção da Liga Internacional dos Trabalhadores. Na entrevista a Roberto Barros, feita em julho deste ano, Moreno fala sobre a situação do governo de Zapatero, do PSOE, do ascenso do movimento operário, da luta dos imigrantes e do plebiscito da Constituição Européia.
Qual é a natureza da nova situação na relação de forças da Europa? Que relação há entre recentes greves operárias, movimentos antiglobalização e a própria luta antiguerra no Velho Continente?
Já há alguns anos na Europa está se produzindo um ascenso do movimento de massas que já está assumindo uma importante composição operária diferentemente de importantes mobilizações antiglobalização em Gênova, por exemplo, onde os trabalhadores tinham presença diluída , como observamos na greve dos trabalhadores estatais na França, nas mobilizações de segundas-feiras na Alemanha, em greves gerais na Itália, com a participação de milhões e, ainda, na própria greve geral de 20 de junho de 2002, na Espanha. Tudo isso desembocou no movimento internacional contra a guerra imperialista no Iraque. No Estado espanhol, tivemos as mais importantes mobilizações antiguerra em nível mundial, diga-se, em proporção. Mais de 90% da população estava contra a guerra e, no dia 15 de fevereiro de 2003, entre 6 e 7 milhões foram às ruas. Essa foi uma mobilização que superou todas as expectativas e que não pôde ser controlada nem pela burocracia sindical nem pela social-democracia.
Qual era a composição social do movimento antiguerra? Que dinâmica assumiu?
Havia realmente de tudo: operários, jovens estudantes, pequena-burguesia. Foi algo bastante heterogêneo e popular. Porém, pôde-se observar que o papel dos trabalhadores não estava de todo diluído porque, em primeiro lugar, houve uma greve geral na verdade, uma paralisação de 15 minutos convocada pela CES [Confederação Européia de Sindicatos]. Mas depois se convocou na Espanha uma greve geral, à qual Comissões Operárias [principal central sindical do país antigamente sob direção do partido comunista e agora mais próxima ao PSOE , tendo o PC como minoria crítica] negou-se a apoiar, e houve divisões no sindicato majoritário. A UGT [segunda maior central sindical, sob influência da social-democracia] convocou uma paralisação de quatro horas e, ainda assim, saíram mais de meio milhão de trabalhadores somente em Madri, para que se veja a importância desta mobilização. Portanto, a classe operária estava envolvida e não diluída , participando ativamente do processo com seus próprios métodos de combate. O fato de que não tenha participado mais intensamente deve-se fundamentalmente à traição da burocracia sindical, em especial de Comissões Operárias, que se negou a apoiar a paralisação de quatro horas ou a chamar uma greve maior.
De fato, o governo estava muito debilitado e, na questão do atentado [de Madri, em 11 de março de 2004] o que fez foi tentar utilizá-lo como salvação para se manter no poder , mentindo para toda a população e acusando o ETA [organização independentista do País Basco] como responsável. Isso fez com que o governo caísse pela via eleitoral, porque as eleições foram dois dias depois. Se atrasasse uma semana, as coisas poderiam ter sido diferentes… Houve inclusive mobilizações no período pré-eleitoral que eram ilegais e se aventou a tentativa de estabelecer um Estado de Sítio configurando uma situação próxima à crise revolucionária nestas semanas, nas quais poderia ter caído o governo.
E como evoluiu a situação? Que desfecho teve a crise?
Não digo que haja estourado uma crise de dimensão revolucionária, mas esteve colocada esta possibilidade, com a entrada do movimento operário, com a crise política que se formou depois do 11 de Março, com mobilizações espontâneas um dia antes das eleições.
O que faz o novo governo é acalmar os ânimos, tem que aceitar muito… Por ser um governo pressionado pelas massas e sua mobilização, a primeira medida que toma é retirar as tropas do Iraque. Depois das eleições, no dia 20 de março, havia uma jornada mundial de manifestações contra a guerra, com manifestações enormes na Espanha. Em Madri depois de um refluxo muito grande das mobilizações antiguerra houve uma manifestação de mais de 200 mil pessoas. Isso se repetiu em várias cidades Barcelona, Valência, etc. para recordar ao governo do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) de que tinha que retirar as tropas.
Desta forma não tinha como encontrar outra solução do tipo: esperemos ou confiemos na ONU. O governo não teve outro remédio fruto da vitória das massas, sua primeira vitória antiimperialista do que aceitar a derrota de ter de retirar as tropas espanholas. E isto começou a criar uma crise para os EUA, já que vários outros governos seguiram retirando tropas. Então o governo espanhol do PSOE está frágil, teve que acatar as reivindicações operárias e juvenis, e daí portanto tem que se apoiar na Esquerda Unida (coalizão político-eleitoral dirigida pelo Partido Comunista). Pela primeira vez na história do Partido Comunista Espanhol, a Esquerda Unida aprovou o orçamento estatal, ou seja, como e em que medida será privatizado o patrimônio público, a determinação do fechamento de empresas, para onde irá se desviar este dinheiro etc. Ou seja, Esquerda Unida faz parte do bloco de poder. Há uma situação parecida com a do Brasil, de Frente Popular, atualmente no Estado espanhol.
Como é a postura desse governo em relação aos imigrantes?
Há pouco foi aprovada uma lei a Lei de Estrangeirismo [Ley de Estrangería] que o PSOE havia votado favoravelmente durante o governo Aznar, feita entre o PSOE e o PP [Partido Popular, de Aznar]. Trata-se de uma lei muito restritiva para os trabalhadores imigrantes, que praticamente impede que cheguem à legalização na Espanha. É uma lei muito complicada, que exige anos de ilegalidade. Não se permite aos trabalhadores sem-papéis [sin-papeles] o direito à associação, ao estudo etc. Os menores ficam numa situação bastante estranha, porque podem estudar, mas não têm direito a diplomas enquanto não tiverem documentos. O governo do PSOE não se dispôs a mudar a lei, senão a regulamentá-la como se isso produzisse qualquer abertura com um prazo de três meses para regularizar a situação dos sem-papéis, antes que a lei entrasse em vigor. Mas essa regularização se fez sob a condição de que os imigrantes tivessem um contrato de trabalho, que estivessem registrados junto ao município em que vivem [empadronados] e uma permanência comprovadamente anterior ao 1º de agosto. Ou seja, num prazo de três meses tinham que apresentar alguém que lhes assinasse um contrato de trabalho não um pré-contrato, mas um contrato formal , comprovar recenseamento municipal anterior ao 1º de agosto e comprovante de ausência de antecedentes criminais (um verdadeiro problema, porque muitos países não possuem este documento tardando muito em chegar).
Portanto, todo o problema residia em que se deixava nas mãos dos empresários a legalização dos trabalhadores. O que acontece? Há todo um setor submerso da economia espanhola baseado exclusivamente na exploração de imigrantes sem-papéis. Um setor da burguesia espanhola simplesmente não pode sobreviver sem esta exploração, em função da concorrência intercapitalista. Os imigrantes, ao final, não conseguem contratos e à beira do desespero compram seus próprios contratos e a previdência social. Muitos imigrantes pagam fortunas entre 3 a 6 mil euros penhorando bens e fazendo dívidas. Isto significa que, no melhor dos casos, irão trabalhar ganhando 50 ou 100 euros por mês durante 6 meses ou até mesmo um ano. Sua opção oscila entre a escravidão ou a ajuda familiar, para tratar de legalizar sua situação de trabalho. Trata-se de uma situação horrenda, que está produzindo uma nova espécie de escravidão no Estado espanhol. Ademais, se durante o primeiro ano de contrato o empresário demite este imigrante, outra vez transforma-se num trabalhador ilegal, sem-papéis. Um trabalhador assim é uma maravilha!… tem que suportar qualquer classe de jornada e abuso do empresário que lhe couber explorar. Na Espanha, o governo diz que cerca de 700 mil trabalhadores recorreram a este expediente, mas ainda não há dados oficiais sobre quantos foram admitidos. Com contratos pagos pelos próprios trabalhadores, municípios que os rechaçavam ou admitiam-nos para logo depois rechaçar enfim, irá haver muitos trabalhadores ilegais ao final do processo. Cifras não-oficiais falam em cerca de 1 milhão e meio de sem-papéis. O problema é que os próprios sindicatos CCOO e UGT assinaram estes acordos. São verdadeiros traidores da classe operária, por dividi-la entre trabalhadores imigrantes e espanhóis, legais e ilegais, apoiando este política que produz a semi-escravidão institucionalizada no país.
Neste marco, como foram as mobilizações de imigrantes contra a nova legislação laboral? Qual foi o papel do PRT-IR e da Corrente Vermelha neste processo?
Voltou-se fundamentalmente contra a Lei de Estrangeirismo e contra este processo restritivo de regularização. Houve diversas formas de manifestações e protestos. Na Catalunha (capital Barcelona) produziram-se diversas ocupações [encierros] e houve a tentativa de conquistar um maior apoio social. Não foi possível desenvolver maiores alianças por causa da posição dos sindicatos majoritários que em outros governos apoiaram ou permitiram as manifestações de imigrantes , limitando desta forma o campo de ação.
Em Madri decidimos ir à mobilização, tratando de ampliar o apoio social. Conseguimos o apoio de diversos pequenos sindicatos e partidos políticos e, em algumas marchas, alcançamos cerca de 1.800 manifestantes, entre imigrantes e demais setores. Porém era um apoio reduzido.
Depois, houve a recusa da direção do movimento de imigrantes de outras localidades em unificar a luta. A única forma e condição mínima de conquistar a vitória, derrubar a lei, e chegar a todos os trabalhadores seria a unidade e confluência de todos os setores numa Coordenação Estatal de Imigrantes, com mobilizações unitárias e jornadas conjuntas em nível de toda a Espanha. Mas as direções negaram-se a fazê-lo. A Associação de Trabalhadores Imigrantes na Espanha (ATRAIE) da qual formamos parte muitos militantes do PRT-IR e da Corrente Vermelha [Corriente Roja] impulsionamos estas mobilizações de todas as formas possíveis, fazendo-as sempre o mais amplas possíveis, baseadas em assembléias reais de imigrantes as quais não cabiam no interior das sedes, sendo trasladadas às ruas, sempre com mais de 500 pessoas com a idéia de estender, democratizar e unificar em nível estatal as mobilizações, com o apoio dos trabalhadores espanhóis.
Explique-nos o que é e como foi o processo de formação da Corrente Vermelha
A Corrente Vermelha (CR, em espanhol) era um setor interno da Esquerda Unida (IU, em espanhol) da qual formava parte o PRT-IR, um setor do PCE e independentes ao redor da corrente. Conformou-se há aproximadamente dois anos a partir de um projeto anterior, a Plataforma de Esquerda e durante um tempo foi uma corrente que só era voltada para dentro de IU, mas conseguimos que começasse a sair: levando a luta para fora do entorno de IU. Desta forma, participou ativamente e inclusive foi uma das forças motrizes que iniciou as manifestações antiguerra. Há um ano, depois das eleições gerais e vendo que IU formava parte do bloco de governo, reivindicamos o avanço da discussão no sentido da ruptura e do processo de fundação. Porque não é o mesmo estar dentro de IU quando, por mais social-democrata que seja, encontra-se em oposição ao governo burguês e, por outro lado, formar parte diretamente deste governo burguês.
Então, para nós, era uma questão fundamental convencer o maior número de companheiros da CR a romper e tratar de formar um agrupamento anticapitalista, antiimperialista, que lutasse pela III República (o regime político na Espanha traz os resquícios da ditadura franquista, em forma de Monarquia Parlamentar) e pela autodeterminação dos povos (galego, basco, catalão etc.), seguindo adiante com as lutas operárias, como fazíamos dentro da IU. Aí conseguimos que um núcleo importante de ativistas, jovens e sindicalistas se unisse a este processo, assim como a direção do COBAS (sindicato alternativo que rompeu recentemente com a CCOO). A CR começa a se transformar em referencial que aglutina setores oriundos do maoísmo, do anarquismo etc. Ou seja, é um projeto cada dia mais amplo que principalmente em Madri, mas alastrando-se em nível estatal transformou-se em referência para a esquerda. Hoje em dia, a CR é a corrente que promove manifestações antiguerra, em apoio ao Iraque e à Palestina. É quem promove a luta pela III República. É quem está sempre ao lado dos trabalhadores, como aconteceu na luta dos portuários da empresa Izar. É também parte importante da luta dos imigrantes, apoiando-a a partir de suas sedes, publicação de panfletos, e na militância para estendê-la a outros setores de Madri e garantindo uma campanha de fato estatal a partir da CR.
E as mobilizações pela III República? Como ocorreu sua formação e desenvolvimento?
Este processo remonta a muitos anos, quando se produziam regularmente manifestações a favor da III República. Até pouco tempo atrás se converteram [as manifestações] em atos cada vez menores, reduzidas a velhos nostálgicos do PCE, que limitavam-se a reivindicar a II República tal como era. Era uma questão de regressar ao passado. Nossa participação e a de um setor que se integrou à CR promoveu outro tipo de manifestação: reivindicando a luta pela III República como algo vigente e atual. Uma luta que desde nosso ponto de vista envolve a reivindicação dos trabalhadores, no sentido da transição a uma futura república socialista. Não somente porque não vamos com a cara do rei. E há que explicar que a maioria da população vai com sua cara e de fato simpatiza com o rei. E isso faz parte de uma explicação mais ampla, sobre o papel que cumpre o rei. O regime sempre buscou salvaguardar sua figura, apresentando-a como algo acima do bem e do mal, que o rei é de todos, que não se mete em política… e nós sempre tratamos de explicar paciente e sistematicamente a função bonapartista que cumpre o rei arbitrando entre as principais frações burguesas, as centrais (de Madri) e as periféricas (basca e catalã) , de ser o chefe máximo das forças armadas, enfim, de mediar a dominação diante do conflito social. E, evidentemente, é um rei capitalista. Não é feudal, tem suas propriedades, seus negócios e defende a Ordem do Capital contra os trabalhadores. Aqui na América Latina penso que seja possível vislumbrar isto com mais clareza. Quando ocorrem as Cúpulas Ibero-Americanas quem as encabeça é o rei da Espanha, tendo detrás de si toda a corte não só de ministros mas sim de empresários interessados em discutir as formas de espólio da América Latina. Em suma, é o chefe de Estado. E pior, eleito por um ditador fascista, Francisco Franco. Ainda por cima trata-se de uma questão democrática, já que não pudemos escolher nosso chefe de Estado. Portanto como ia dizendo levamos as mobilizações a se transformarem em algo distinto. Por exemplo, reivindicando os direitos da juventude por uma educação laica, democrática, não-sexista, pública e gratuita, sobretudo. Trata-se de um verdadeiro embate contra metade do setor da educação na Espanha, que está nas mãos da Igreja Católica. E é subvencionada pelo Estado não é que seja privada simplesmente , são instituições e colégios pactados, que vivem dos fundos do Estado. Desta forma se desviam verbas do ensino público que piora cada vez mais para a educação religiosa manuseada pela ultra-direita, pela direita e pelos setores mais reacionários da sociedade. Estas mobilizações pela III República com jovens, trabalhadores e com este caráter atual fizeram com que se transformassem em algo já não mais de meia dúzia de gatos-pingados, mas de alguns milhares de pessoas. A última teve 7 mil em Madri. Inclusive passamos a fazer duas ao ano, não só uma. Fazíamos no 14 de abril dia da proclamação da II República e agora fazemos também no 6 de abril, dia da implementação da constituição monárquica que temos hoje. É algo contra a constituição, numa configuração intensamente anti-regime e, ainda por cima, cheia de jovens. Noventa por cento de sua composição é de jovens, que gritam Chamam isto de democracia, mas não é! e Esta monarquia é uma porcaria!.
Como e por que se deu a enorme diferença entre a Campanha contra a Constituição Européia na Espanha e na França?
De início pode-se dizer que, fundamentalmente, a votação na Espanha foi muito pequena. Houve uma participação muito baixa e, neste marco abstencionista, venceu o sim à Constituição Européia mas por uma questão essencial. A população acreditava sobretudo após o trunfo do PSOE nas eleições que votar sim, junto ao partido socialista, era uma posição progressista. Assim, aqueles que poderiam fazer chegar a mensagem de que o sim era absolutamente contrário aos interesses dos trabalhadores e da juventude que eram IU ou ERC fizeram uma campanha, como dizemos nós, à boca pequena. Estavam contra, mas não diziam nada. Desde a pequena corrente na qual estamos inseridos, fizemos um tremendo esforço para chegar à população mas num ambiente absolutamente refratário , e foi muito difícil fazer a campanha. Nos deparamos com um desconhecimento total, a população não sabia sequer o que se estava propondo a partir do referendo, e sempre houve o senso comum de que a União Européia é boa. Isto remonta há muitos anos, porque o Partido Comunista junto ao PSOE sempre reivindicou a UE como algo positivo, progressista e que seria importante fortalecê-la em oposição aos EUA, o que é uma mentira! A União Européia é uma ordenação de capitalistas-imperialistas sócios dos EUA. Sócios menores, mas sócios. São parte do mesmo bloco imperialista que explora todo o planeta. Realmente o ambiente nos dificultava muito o trabalho. Mas ainda que o governo tenha ganhado o referendo, a participação foi tão baixa que resultou num verdadeiro fracasso, levando em conta que não houve uma verdadeira campanha estatal pelo não à exceção daquela encabeçada por CR , e que apesar da campanha de medo, setores operários e juvenis votaram não, alcançando quase 19% dos votantes.
Na França, afortunadamente, houve setores sindicais e uma esquerda algo mais organizada que tiveram condições de ir à batalha e a população chegou a compreender o que realmente representava a Constituição Européia: a Europa do Capital e da Guerra. Formaram-se centenas de comitês pelo não, a população organizou-se pela base, e foi uma campanha muito ativa. Inclusive houve uma greve geral que se converteu num ato contra a Constituição Européia. Portanto, a vitória do não na França foi uma vitória dos trabalhadores e da juventude e fez entrar em crise toda a União Européia. De fato, depois do referendo francês não foi possível chegar a nenhum acordo econômico, e os governos já não sabem como seguir com esta questão.