Cartas do Haiti – 3º diaHoje fomos falar com o presidente do Haiti, René Préval. Na chegada, todas as aparências e formalidades do poder. Um palácio luxuoso, todo branco, decorado com bustos em bronze dos heróis da libertação do Haiti. Duas revistas em cada um de nós, com detector de metais e policiais minuciosos. Tudo só aparência: o presidente é um fantoche, sustentado pela força das tropas da ONU, dirigido pela embaixada brasileira.

Sentamos numa mesa longa de madeira, e logo entrou Préval, atencioso e gentil. A tradução foi um caos, improvisada entre três pessoas.

Toninho apresenta a Carta que trouxemos do Brasil exigindo a volta imediata das tropas. Préval responde agradecendo a solidariedade. Disse que está de acordo, que as tropas têm de ir embora, mas não agora. Cita Mao, dizendo que é preciso entender qual é a contradição principal e a secundária em cada momento. E que as gangues do narcotráfico ainda estão fortes, e o Estado haitiano não tem sequer uma polícia. Esta seria, então, a contradição principal e não as tropas estrangeiras. Assim que for possível, as tropas irão embora.

Eu respondo a ele que lamentamos que ele defenda a ocupação, que a ocupação militar não é o problema fundamental e sim um pedaço de seu país. Que a polarização não se dá entre as tropas e as gangues do narcotráfico, mas entre as tropas e as lutas dos trabalhadores do Haiti. Disse-lhe que não estávamos aqui para prestar solidariedade a ele e sim ao povo haitiano que estava lutando contra as tropas e contra ele.

A gentileza acabou de imediato. Nos atacou como “esquerdistas”, ficou nervoso, mas não respondeu nada. Aderson, o representante da OAB, falou que estava ali para preparar um relatório para a Ordem sobre a situação dos direitos humanos no Haiti e que estava vendo abusos das tropas.

Nesse momento, algo inusitado, estranho, digno de ser passado no You Tube. Préval, de repente, se meteu embaixo da mesa, na nossa frente. Uns pensaram que ele tinha desmaiado. Outros, que havia algum problema de segurança. Passados uns trinta segundos, ele surgiu de novo, sorrindo. Pelo que entendemos, era uma brincadeira, para fingir que não podia ouvir o que Aderson falava. Ficou entre o ridículo e o patético. Um presidente agachado embaixo da mesa…

A reunião seguiu por mais quase uma hora, com toda a delegação questionando a ocupação, perguntando sobre sua relação atual com Aristides, qual a data da saída das tropas, etc., etc., etc. Não respondeu a nada, tentou escapar de tudo com generalidades. Um indício da fragilidade do governo: passa uma hora sendo duramente questionado por nós, sem responder a nada, mas sem nos mandar embora.

Outra parte da delegação foi falar com o ministro do trabalho e a responsável pelas zonas francas. Estas reuniões eram importantes para que Batay Ouvriére apresentasse ao governo uma lista de exigências, mas serviu também para mostrar a atitude deste governo. Um dos funcionários do governo argumentou defendendo a repressão que os haitianos era preguiçosos e sem disciplina.

Outra funcionária disse que não se podia ser “sentimental” com as grávidas se não respondessem às regras do trabalho. Ela disse isso para responder a um fato vergonhoso: uma trabalhadora grávida foi espancada e jogada na lama por estar participando de uma mobilização. A justiça reconheceu o acontecimento como um crime, mas não decidiu nenhuma punição para não “prejudicar os investimentos”. Este é o governo sustentado pelas tropas brasileiras.

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