Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Há 30 anos, no dia 19 de janeiro de 1982, Elis Regina “virou estrela”, como ela prenunciou, meses antes, em um monólogo do show “Trem Azul”: “Agora retiram de mim a cobertura da carne (…) e aí estou pelo salão, pelas casas, pelas cidades, parecida comigo. Um rascunho. Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra. Como uma estrela. Agora eu sou uma estrela”.

De fato, três décadas depois de Elis ter sucumbido precocemente (aos 36 anos) a uma overdose de álcool e cocaína, suas apaixonadas interpretações do melhor da música popular brasileira continuam invadindo casas e embalando os desejos e frustrações, prazeres e dores, amores e decepções de milhões.

Tanto de gente que era jovem em meados dos anos 1960, quando Elis, com interpretações como a de “Arrastão”, começou a brilhar nos palcos; quanto daqueles que ainda nem tinham nascido quando, na época de sua morte, sua voz ecoava nos corações e mentes daqueles que lutavam pela liberdade ao som de canções como “O bêbado e o equilibrista”.

“Águas de março”
Apelidada de “Pimentinha” por Vinícius de Moraes (mas também conhecida como “Furação” ou “Elis-cóptero”), a cantora passou pela vida e pela história da MPB como uma intensa, complexa e vibrante enxurrada, tal qual a música de Tom Jobim que ela gravou no início dos anos 70.

Com apenas sete anos, Elis já fazia sucesso nas rádios de sua cidade natal, Porto Alegre; aos 16, gravou seu primeiro disco e, aos 20, em 1965, venceu, com “Arrastão”, o I Festival de MPB da TV Excelsior.

Pouco depois, ao lado de Jair Rodrigues, no programa de TV “O fino da bossa”, foi responsável pelo lançamento de novos talentos como Milton Nascimento e Gilberto Gil e se consolidou como uma intérprete capaz de criar versões irretocáveis para músicas já consagradas de Adorinan Barbosa (“Tiro ao Álvaro” e “Iracema”), Ângela Maria (“Vida de bailarina”), Cartola (“Basta de clamares inocência”), Dorival Caymmi (“João Valentão”), Ataulfo Alves (“Na ginga do samba”) e Lupicínio Rodrigues (“Cadeira vazia”), dentre outros.

No decorrer da década de 1970, a voz de Elis tomou o Brasil e ganhou o mundo. E o fez com a mesma intensidade com que a cantora tocava sua sempre conturbada vida, marcada por amores (que lhe renderam três filhos músicos) em que sua entrega foi proporcional às tumultuadas separações. Registre-se, ainda, sua falta de pudor ou medo de manter seu estilo de vida ou de se pronunciar sobre qualquer tema, por mais polêmico que fosse.

Sua “intensidade”, apesar de lhe ter custado um alto preço, também foi, em muito, responsável pelo sucesso de Elis. Cada uma de suas interpretações, além de marcadas por um impecável domínio vocal e técnico, parece brotar e arrancar força do rompimento entre as fronteiras da vida e da arte.

Nos palcos, isto vinha à tona com a força de um vulcão em espetáculos como “Falso Brilhante” (1975/76), “Transversal do Tempo” (77/78) e “Saudade do Brasil” (80/81), nos quais imortalizou algumas de suas obras-primas como “Fascinação”, “Como nossos pais”, “Tatuagem”, “Sinal Fechado”, “Cartomante”, “Deus lhe pague”, “Construção”, “Maria, Maria”, “O que foi feito deverá”, “Canção da América”, “Para Lennon e McCartney” e “Alô, alô, marciano”.

“Gracias a la vida”
Pequena em estatura e gigante no gesto, tímida no dia-a-dia e explosiva nos palcos, depressiva e dona de uma deliciosa gargalhada, marrenta e capaz de viver paixões avassaladoras, Elis vivia nos extremos, algo também evidente no seu repertório.
Contudo, dentre as muitas polarizações que marcaram sua vida, uma foi particularmente importante e produtiva: sua brasilidade universal. Tendo protagonizado shows memoráveis no Olympia de Paris (1968) e no Festival de Montreaux, na Suíça (1978), Elis também cumpriu papel fundamental na relação entre o Brasil e os demais povos latinos.

Em um momento em que a América Latina estava infestada por ditadores sanguinários, Elis emprestou sua voz e seu talento para canções compostas ou consagradas pela chilena Violeta Parra (“Gracias a la Vida”), a argentina Mercedes Sosa (“Los hermanos”) ou o cubano Pablo Milanés.

Algo que em muito contribuiu para que Elis se instalasse para sempre nos corações e mentes de toda a geração que lutava pela liberdade que a ditadura havia nos arrancado.

“Querelas do Brasil”
Em 1978, ao gravar a música de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, que mandava um “SOS ao Brasil”, Elis mais uma vez deu voz a todos aqueles que se levantavam contra a opressão, a exploração, as restrições à liberdade e a “caretice” que permeava a cultura, a arte e a sociedade de conjunto.

Conhecida pelo papel fundamental que cumpriu durante a luta pela derrubada da ditadura, Elis, por exemplo, também protagonizou um episódio pouco conhecido, mas de grande relevância para a luta de negras e negros deste país.

Em 1971, no VI Festival Internacional da Canção, promovido pela Globo, ela e Toni Tornado cantaram juntos a versão dos irmãos Paulo Sergio e Marcos Valle para um dos clássicos da soul music, “Black is beautiful”. Empolgado, Tornado cantou com os punhos cerrados no ar – gesto típico dos Panteras Negras – e acabou saindo algemado do estádio, o que contribuiu para que a música fosse imediatamente transformada em “hino” do movimento negro.

“Aos nossos filhos”
A versão para a música de Ivan Lins e Vitor Martins foi gravada no final dos anos 1970, quando as greves do ABC anunciavam o fim do regime militar e a voz de Elis já havia se transformado no símbolo da luta pela Anistia (a “volta do irmão do Henfil”) e para que a justiça fosse feita para as “marias, clarisses” e tantos outros que tiveram seus companheiros, amigos e parentes mortos e “desaparecidos”.

Através de “Aos nossos filhos”, toda uma geração pedia “perdão” pela falta de abraços, escolhas e espaço; pelos perigos e sufocos impostos pela ditadura. E lançava para as futuras gerações a tarefa de soltarem as amarras, lavarem as mágoas e a alma, fazendo brotar as flores e colhendo os frutos semeados por aqueles que, como a própria Elis, se rebelaram contra os ataques à liberdade e tudo mais o que nos faz “humanos”.

Hoje, 30 anos depois da morte de Elis, quando vivemos num arremedo de democracia que, livre da tutela dos generais (que seguem livres e impunes, cabe lembrar), mas ainda a serviço dos poderosos, não é de se estranhar que sua voz continue viva e embalando a vida de milhões.

Assim como foi para “nossos pais” (e demais antecessores, sejam eles companheiros e amigos do passado) seu talento e repertório ainda pulsam como trilha para os desejos, as tristezas, os amores e revoltas de todos aqueles que sonham com um mundo tão belo quanto sua voz e repertório.
E temos certeza que, quando caírem “todos os reis”, Elis brilhará ainda mais, servindo como trilha para o momento em que possamos, finalmente, “lavar os olhos” e “fazer a festa” da qual, não há dúvidas, Elis adoraria participar e será sempre convidada.

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