Elis Regina

São poucos os que merecem ter seu aniversário comemorado mesmo depois de mortos. Elis Regina certamente é uma dessas pessoas. Em 17 de março, se não tivesse morrido em decorrência de uma overdose, em 1982, ela faria 60 anos. Sua voz, no entanto, ainda briMarcado, como sempre, por uma fabulosa mescla de teatralidade e poesia, o último show de Elis, Trem Azul, realizado em fins de 1981, trazia um monólogo que, lamentavelmente, acabou servindo como seu comovente testamento: “Agora retiram de mim a cobertura da carne, escorrem todo o sangue, afinando os ossos em fios luminosos – e aí estou pelo salão, pelas casas, pelas cidades, parecida comigo. Um rascunho. Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra. Como uma estrela. Agora eu sou uma estrela”.

Pouco depois, em 19 de janeiro de 1982, com apenas 36 anos, uma mistura bombástica de álcool e cocaína pôs fim a uma vida marcada pela mesma intensidade e dramaticidade que caracterizaram suas apresentações.

Nascida em Porto Alegre, Elis começou sua carreira aos sete anos, em programas de rádio. Aos 15, gravou seu primeiro disco e, no início dos anos 60, ainda adolescente, já fazia sucesso no Beco das Garrafas, o antológico reduto carioca da Bossa Nova. A consagração nacional veio aos 20 anos, em 1965, quando venceu o I Festival de Música Popular Brasileira, interpretando “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. A projeção internacional consolidou-se em 1978, com a vibrante participação no Festival de Montreaux, na Suíça.

No decorrer de sua carreira, ainda estrelou por três anos, com Jair Rodrigues, o programa de TV “O Fino da Bossa”, na Record, responsável pelo lançamento de jovens compositores e cantores como Milton Nascimento e Gilberto Gil; gravou o memorável “Elis & Tom”, em 1974, que imortalizou a música “Águas de Março” e, até a sua morte, emprestou sua afinadíssima voz para as composições do que havia de melhor entre os compositores de MPB e para recriações maravilhosas de “clássicos” compostos por Adorinan Barbosa, Cartola, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves e Lupicínio Rodrigues, dentre vários outros.

O impacto de sua morte prematura e o enorme carinho que o público lhe dedicava transformaram seu velório em uma espécie de ato público, que reuniu dezenas de milhares de pessoas que protagonizaram um comovente “espetáculo”, marcado por cenas de paixão e drama muito próximas àquelas que Elis interpretou durante toda sua vida, dentro e fora dos palcos.

Cantando a paixão
Apelidada de “Pimentinha” ou “Furação”, em razão de sua personalidade explosiva e suas posturas polêmicas, Elis era, acima de tudo, uma mulher intensa. Seus três casamentos, algo nada comum na época, foram cercados por episódios estrondosos. Avessa a meias palavras e dotada de um ácido senso de humor (geralmente acompanhado por uma inesquecível gargalhada), a cantora não se cansava de protestar contra a “caretice” que vigorava em sua época e de exaltar a liberdade de expressão e comportamento.

Uma paixão pela vida que transparecia, acima de tudo, na escolha de seu repertório e na sua forma de interpretação. De baixa estatura, ela agigantava-se no palco, por gestos largos e uma voz jazzística, cuja sensualidade seduzia o público.

Exemplar nesse sentido foi o espetáculo Falso Brilhante, 1975-1976, um dos maiores sucessos da história da música brasileira. Dirigido pela atriz Miriam Muniz e com cenários e figurinos de Naum Alves de Souza, o espetáculo ficou em cartaz por 14 meses, lotando diariamente os 1.500 lugares do teatro.

Foi nesse show que Elis cantou “Tatuagem”, de Chico Buarque, cuja interpretação – ao lado de “Dois pra lá, dois pra cᔠ(João Bosco e Aldir Blanc), “Atrás da porta” (Chico Buarque e Francis Hime), “Me deixas louca” e algumas outras dezenas – é imbatível no que se refere às coisas do amor e suas muitas alegrias e dores.

A voz da anistia e da luta pela liberdade
No início de sua carreira, Elis foi protagonista de alguns episódios que lhe renderam duríssimas críticas. Um deles, um tanto pitoresco, foi um movimento organizado em 1967 contra a influência da música estrangeira em nosso país, conhecida como a “passeata contra a guitarra”, que lhe valeu a, breve, antipatia dos que buscavam inovar a MPB em fins dos anos 60.

Em 1972, contudo, a polêmica foi bem maior. Depois de ter dado uma entrevista na Europa afirmando que o Brasil era governado por “gorilas”, Elis foi “convocada” (como pré-condição para voltar ao país sem problemas) para cantar o Hino Nacional nas olimpíadas do exército, e, pior, pouco depois, a fazer um show, em Caxias do Sul, para o asqueroso general-ditador Médici.

A história lhe valeu um enterro simbólico no cemitério dos “mortos-vivos” do Pasquim, promovido por Henfil. Em 1979, depois de reconciliar-se com o cartunista, o “pedido de desculpas” veio na forma da gravação de “O bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc. Uma música que, ao cantar o sonho de ter “a volta do irmão do Henfil” e ao exprimir a dor das “Marias e Clarisses” que choravam seus mortos e desaparecidos, transformou-se no verdadeiro hino da luta pela anistia e pela redemocratização do país.

Aliás, mesmo que de forma indireta, Elis sempre embalou a luta pela democratização, ao emprestar sua voz para músicas que sintetizavam os sonhos e as esperanças da geração que lutou contra a ditadura e por liberdade.

Exemplo maior disso, até, deu-se depois de sua morte, no dia 7 de fevereiro de 1982, no show “Canta Brasil”, em São Paulo, com Chico Buarque, Milton Nascimento, Clara Nunes, Gonzaquinha e outros.

Transformado em um ato contra a ditadura – um dos momentos culminantes do show foi quando uma multidão de quase 100 mil acompanhou Simone cantando “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré –, o espetáculo terminou com “O bêbado e o equilibrista”, entoada por todos os cantores e a multidão, com punhos cerrados lançados ao ar.

No decorrer de sua carreira, os exemplos de músicas que serviram como metáforas musicais para repudiar a opressão ditatorial e as mazelas da elite dominante ou cantar o desejo por um mundo melhor e livre foram muitos. Alguns deles inesquecíveis, exatamente pela interpretação de Elis: “Los hermanos”, de Mercedes Soza, e “Como nossos pais”, de Belchior (Falso Brilhante, de 1976); “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola, e “Deus lhe pague”, de Chico Buarque (Transversal do Tempo, 1978); “Alô, Alô Marciano”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, “Maria Maria” e “Canção da América”, ambas de Milton Nascimento e Fernando Brant e “Aos Nossos Filhos”, de Ivan Lins e Vitor Martins (presentes no disco Saudades do Brasil, 1980).

Hoje, passados mais de 20 anos de sua morte, sua herança musical é o maior testemunho do vigor de sua breve vida. Para além dos três filhos músicos – João Marcelo Bôscoli, Pedro Camargo Mariano e Maria Rita –, Elis ainda continua embalando muita gente que, como muitos de nós e, também, “como nossos pais”, ainda encontram na voz de Elis beleza e força únicas para traduzir os cantos de nosso povo.

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