“Não indiques apenas o fim
Mas mostra também o caminho
Pois o fim e o caminho
Tão unidos estão
Que um muda com o outro
E com ele se move
– e cada novo caminho
revela um novo fim.”[1]

Há três anos a Universidade de São Paulo foi palco da mais forte e vitoriosa luta do movimento estudantil brasileiro nos últimos anos. O método das ocupações de Reitoria foi tomado como exemplo na luta contra o Reuni de Lula, nas Universidades Federais. A luta da USP abriu uma verdadeira onda nacional. Hoje, infelizmente, a Reitoria daquela universidade avança com passos concretos e qualitativos na privatização da instituição, enquanto dirige uma ofensiva de perseguição política e criminalização a estudantes ativistas e ao sindicato dos funcionários (Sintusp).

O retrocesso na correlação de forças teve impacto, é evidente, sobre a consciência dos estudantes. Mas talvez a maior derrota do movimento estudantil daquela universidade seja o nível de burocratização e degeneração moral que seus dirigentes atingiram. As recentes eleições do DCE-USP, nos dias 23, 24 e 25 de novembro, foram o marco mais deplorável desse fenômeno. O MES, corrente interna do PSOL, é sujeito consciente da burocratização e do vale tudo das eleições que terminaram com redução do quorum de votantes em cerca de 2000 votos em relação ao ano passado, com uma agressão física gratuita contra uma dirigente do PSTU e com a principal chapa de oposição se retirando do processo.

Uma eleição do movimento ou uma gincana por votos?
O modelo de funcionamento da eleição do DCE-USP, imposto pelo regimento eleitoral sustentado pelo MES, é o mais burocrático que temos notícia no país. Toda a condução política do processo visa a termos eleições frias, em que o debate político não contamine um setor mais massivo dos estudantes. É uma eleição preparada para impedir o voto de opinião, em favor do voto dos “caudilhos”. Assim, é um mecanismo muito seguro para que o MES legitime seu controle do aparato do DCE. Contudo, para o movimento estudantil, traz a consequência de fragilizar a relação ideológica dos estudantes com sua entidade, além de impedir que a eleição se coloque a serviço da mobilização do movimento.

Em primeiro lugar, o sistema de abertura de urnas é um escândalo. Em vez de se dar ao critério da aferição da opinião política dos estudantes, se dá ao critério dos aparatos que disputam o DCE. Em vez de permanecerem abertas de maneira permanente, as urnas abrem e fecham várias vezes durante o dia – sob o controle das chapas, que apenas mantêm as urnas abertos para coletar os “seus” votos.

As atas da eleição atestam o efeito desta “pescaria” de votos. No Butantã, principal campus da USP, apenas a FFLCH (humanas) e Pedagogia tiveram suas urnas abertas durante todo o período de aulas. O curso de Veterinária, por exemplo, contou com urna aberta apenas no último dia de eleições, por apenas quatro. A urna da Poli-Mecânica é o exemplo escrachado de uma eleição “escondida” da massa dos estudantes: abriu apenas no primeiro dia de eleição, por um período de uma hora. No campus de Pinheiros, o mesmo. Os estudantes da Medicina só encontraram urnas abertas em dois dias da eleição e apenas na hora do almoço.

O interior prevaleceu a mesma regra. As urnas de Bauru sequer saíram da capital. Em Ribeirão Preto, um exemplo claro de como esse modelo aparatista não serve em nada a mobilização e ao avanço da consciência crítica dos estudantes. O curso de Música, um dos ameaçados de ser fechado pelo Reitor Rodas, abriu apenas no último dia por um período de duas horas.

A proibição dos “giros”
O regimento prevê, ainda, um limite máximo para a presença de apoiadores das chapas externos à universidade. Ao redor das urnas, o MES agitava e “denunciava” sistematicamente a presença de militantes e ativistas de outras universidades, afinal as eleições do DCE “são um assunto dos estudantes da USP”. Essa ideologia é, antes de tudo, reacionária. E também traz consequências para a capacidade de mobilização gerada pela eleição.

O projeto do reitor Rodas e Alckmin para a USP é o mesmo projeto aplicado no conjunto das universidades públicas do país, apenas com diferentes matizes. Orientar a universidade aos interesses do mercado também é o que desejam Lula, Haddad e os empresários do ensino superior pago. O combate a presença de militantes estudantis de outras universidades na eleição da USP contribui para isolar o movimento dessa universidade e, portanto, limitar a correlação de forças dos estudantes da USP para defender seu caráter público. Na consciência dos estudantes, reconhecer um lutador de outra universidade ou escola como alguém estranho a seus interesses é um atraso imenso.

É precisamente o atraso o que dissemina o MES com mais essa medida burocrática em torno da eleição. No caso da USP, ela se apóia no corporativismo da universidade mais elitizada do país. Na medida em que a eleição só conta com ativistas da universidade, ela envolve menos gente e, portanto, atinge menos estudantes com o debate de idéias. Mas é essa a vontade do MES. Nada na eleição do DCE deve estar no controle da opinião política dos estudantes, mas no controle do aparato que o MES move.

Essa cultura, vindo de uma organização política se torna ainda mais deplorável. Por acaso o MES considera que suas idéias já são influentes o suficiente na sociedade para serem defendidas apenas nos locais em que tem trabalho? Não gostaria de ter esse direito onde outras direções atuam no movimento? Para os jovens dirigentes do MES na USP isso pouco importa. A única finalidade da eleição do DCE é o controle do DCE.

Dois outros aspectos tornam a eleição do DCE-USP um festival burocrático. O primeiro é a cultura de que impugnar urnas é um instrumento político. Qualquer detalhe burocrático supostamente irregular em alguma urna abre um debate imediato sobre a possibilidade de ela ser impugnada. Desconhecemos outra universidade em que a palavra “impugnação” esteja tão presente no vocabulário de uma eleição.

Finalmente, resta o deprimente “teto de campanha”. Segundo o regimento defendido pelo MES, nenhuma chapa pode gastar mais de R$ 4.500 em sua campanha. Com esse orçamento nenhuma chapa é capaz de cobrir uma universidade com mais de 88 mil estudantes. A Juventude do PSTU defende que os limites orçamentários devem ser de classe. No marco da independência, as chapas devem arrecadar todas as finanças que puderem para suas campanhas, porque isso serve à mobilização do movimento de massas. O irônico é que o MES defende abertamente que nas eleições burguesas os partidos da classe trabalhadora devem aceitar financiamento de empresas, pois suas campanhas devem “ser de massas”. Mas no interior do movimento, não. Nesse caso, as campanhas devem ser franciscanas.

Quem faz, então, o jogo da direita?
E durante todo um pleito, submetido a todo esse controle burocrático, a agitação mais permanente do MES entre os estudantes era de que o “PSTU estava fazendo o jogo da direita”, porque se posicionava contra a atual gestão do DCE, quando havia chapas de direita inscritas. Um exercício teórico dos menos brilhantes, diga-se de passagem. E, sobretudo, desonesto. Esse discurso servia para omitir quem quer, na realidade, a unidade da esquerda no movimento estudantil.

Antes da inscrição de chapas, a Juventude do PSTU fez campanha por uma chapa unificada da esquerda, em base a um programa de oposição à reforma anunciada pelo reitor Rodas. Mesmo alegando não ter diferenças com esse programa, o MES vetou a presença do PSTU na chapa. Dado o veto, o partido estimulou a formação de uma chapa de oposição. Se a direção do DCE não pretende unificar o movimento contra esse projeto, então ela não será capaz de fazer frente a ele.

Diante de seu veto, não considerar legítima a opção por montar uma chapa própria é, da parte do MES, um gesto de arrogância. Mais: dizer que a chapa “A USP que queremos”, que denunciou sistematicamente os projetos da reitoria e do governo, fez o jogo da direita é uma calúnia, em meio ao “vale tudo” pelo aparato. Com esse discurso, o MES lutou por forjar uma polarização eleitoral entre sua chapa e as chapas da direita que não existia na realidade (vide o resultado eleitoral). Ao mesmo tempo, fez de tudo para desmoralizar um setor que, por sua presença na universidade, será obviamente importante para derrotar Rodas no próximo ano. Nesse sentido, e na medida em que conduziu uma eleição que em nada serviu para avançar na consciência crítica do conjunto dos estudantes, não temos dúvida que não foi o PSTU quem fez o jogo da direita. O aparato continua com a esquerda. Mas e a consciência dos estudantes?

O MES derrotou a direita?
O balanço contido na agitação de “derrotamos a direita”, entoado durante a apuração é risível. O tamanho do peso social da direita na universidade não pode ser reduzido à sua expressão eleitoral em uma eleição do movimento. No ano passado, a invasão da polícia no campus para reprimir a greve em curso criou uma polarização evidente na universidade, que transportou uma parte maior do peso da direita para dentro das eleições. Acontece que se trata de um fato atípico, porque o movimento estudantil é o terreno da esquerda, e não da direita.

Neste ano, quando coexistem uma sensação de estabilidade e uma ofensiva grande de Rodas e Alckmin, a expressão eleitoral das chapas de direita voltou a ser marginal. A opinião política de direita não se expressou em votos, mas em apatia e abstenção. Mas se a direção do DCE tiver a ilusão de que, por isso, derrotou a direita, vai armar a derrota do movimento e nada mais. O movimento precisa saber que é a direita quem está na ofensiva e, por isso, é necessária a unidade para lutar.

Agressão física: não toleraremos!
Por fim, a apuração foi o desfecho mais coerente com a festa burocrática dessas eleições. Uma integrante da chapa Todas as Vozes, em que o MES tem hegemonia, agrediu uma dirigente do PSTU com um tapa no rosto de forma gratuita. Carolina Peters é uma ativista no curso de Letras que aprendeu com a cartilha do MES. Ela acha que vale tudo nas eleições do movimento. Não tem noção do que representa dar um tapa na dirigente de uma organização política de trabalhadores. Carolina foi, aliás, bastante inconsequente. Não é sensato convidar individualmente um coletivo organizado e centralizado à luta física.

Frente à agressão, a Juventude do PSTU exigiu dos dirigentes do MES que Carolina fosse retirada da apuração, o que foi entendido como uma “exigência inaceitável”. Ao mesmo tempo, outra dirigente do MES “consolava” a agressora. Diante da conivência com o método da agressão e um exemplo de educação da vanguarda com a moral de chiqueiro, o que mais poderia ser a gota d’água?

Quando até agressão física passou a valer nas eleições do MES, a Juventude do PSTU se retirou da apuração e rompeu com o processo eleitoral. Com a conivência do MES, o resultado da agressão é que a agredida teve que se retirar, enquanto a agressora permaneceu na atividade do movimento. Não jogaremos nunca mais nas regras desse jogo sujo. O movimento estudantil da USP precisa de uma nova direção. Precisa de uma nova prática e uma nova moral. Todas as organizações que atuam naquela universidade devem se posicionar. Sobretudo, as que reivindicam defender outra “cultura” de movimento e que se reivindicam “anti-burocráticas”.

A luta por uma nova sociedade não será nunca separada por nós pela luta por uma outra moral, que não a que o mundo nos ensina. Lamentamos muito que jovens gerações de quadros que militam na USP tenham tão pouca clareza sobre isso. Iniciaremos uma campanha política nacional contra o método da agressão física no movimento estudantil. A tarefa do movimento estudantil da USP é derrotar Rodas e seus projetos. No curso dessa luta, deve combater sistematicamente a burocratização de sua entidade máxima.

[1] Citado por Trotsky em A moral deles e a nossa

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