Cairo está, novamente, enrolada em sua bandeira nacional. Elas estão nas janelas, nas fachadas dos prédios, e sobre as tendas da praça Tahrir. Ocupam todos os espaços. Destaca-se a versão longa e fina do manto que, como uma serpentina, une as diferentes pontas dos prédios, principalmente os que cercam a praça central da revolução. No Cairo, mais uma vez, reina o nacionalismo.

Não é a primeira vez que as bandeiras nacionais tomam a cidade, mas é provável que elas ocupem hoje a paisagem de forma até mais intensa que no dia 11 de Fevereiro de 2011, quando o ditador Hosni Mubarak foi deposto por um golpe palaciano, também orquestrado pelo comando das Forças Armadas, em meio a um levante popular.

Para os comunistas convictos, a hegemonia da bandeira nacional, inevitavelmente, incomoda. Mas, assim como em qualquer lugar do mundo, o exibicionismo patriótico que mais uma vez toma conta do Egito, carrega elementos progressivos e regressivos.

A burguesia local, ao longo destes últimos dias, se enrolou em sua bandeira. A musica patriótica, de gosto duvidável, é hegemônica nos rádios e nas televisões. O Exército, obviamente, faz questão de hastear o manto nacional em todos os tanques que ocupam os pontos estratégicos da cidade. A classe dominante, como é de se esperar, se protege no símbolo da nação para impedir que as massas avancem para além dela.

Mas a quase total adesão dos egípcios ao nacionalismo, para além do sentimento patriótico inflado pela burguesia, se explica na sua instrumentalização para a batalha da vez, agora contra a Irmandade Muçulmana.

A lealdade dos irmãos, ao menos em teoria, não se dá ao Estado nacional egípcio, mas a um califado em suposto processo de construção. O movimento islamista carrega, a seu próprio modo, um internacionalismo regionalista de tipo peculiar. Sua intenção, pelo menos entre os setores mais radicalizados, é unificar os muçulmanos em um só estado dirigido pela lei islâmica. Em última instância, a bandeira egípcia não é a bandeira dos islamistas. Nas batalhas políticas, os símbolos também importam.

Para além da negação da Irmandade, há também outros elementos claramente progressistas no apelo das massas. Na pátria egípcia há espaço, pelo menos formalmente, para cristãos e muçulmanos, praticantes ou não. Na Tahrir, uma grande foto saudando o Papa copta se encontra ao lado dos símbolos do Islã. A minoria cristã, que desempenhou um papel importante no levante que derrubou Mursi, se protege detrás da bandeira nacional contra o fanatismo islamista.

Mas há também, neste choque de identidades entre ‘islâmicos’ e ‘egípcios’, muito espaço para um nacionalismo chauvinista abertamente reacionário. A ideia de que a Irmandade Muçulmana é um instrumento de manipulação estrangeiro organizado pelos palestinos, principalmente o grupo islâmico Hamas, domina o imaginário popular. Segundo a trama, os islamistas que dirigem a Faixa de Gaza querem transformar o Egito em um trampolim em sua luta contra Israel, algo que a massa egípcia, pelo menos por agora, se mostra pouco preocupada. Uma clara campanha de ódio organizada pela burguesia, dirigida contra os palestinos de Gaza, também começa a se fazer popular por aqui.

Regresso na consciência?
Dentro do espírito de louvor à nação, há também, talvez mais do que nunca, um louvor ao Exército. Mais até do que quando o Exército derrubou Mubarak e foi recebido como salvador da pátria pelas massas. Fotos do general Sisi, o Ministro da Defesa que acabou por prender o então presidente Mursi, se espalham pela praça. A venda de seu pôster está em alta. O fenômeno, porém, é novo. Nunca desde o inicio da revolução se distribuía, em massa, as imagens de um general.

Frente ao retorno triunfante do Exército, uma crise se espalha entre os ativistas. A sensação de déja vu, de uma repetição da história no forma de farsa, parece incomodar a todos na vanguarda. Depois de tanta luta contra o Exército, que até pouco tempo atrás era um aliado prioritário da Irmandade Muçulmana, há um aparente retrocesso na consciência das massas. Ela voltou às ruas com ainda maiores ilusões no Exército do que antes, com ainda mais apego aos símbolos nacionais.

O pessimismo destes jovens, que tanto se sacrificaram ao longo destes últimos dois anos na luta contra o Exército, é compreensivo, mas a avaliação de que as massas regrediram nos parece errada. Na verdade, nunca as massas avançaram tanto politicamente na história do Egito como estão fazendo hoje.

Pela primeira vez na história do Oriente Médio, e talvez do mundo, 17 milhões de pessoas tomaram as ruas! Nos dias áureos da praça Tahrir, quando a juventude e os trabalhadores derrubaram Mubarak, falava-se em quatro, cinco milhões de pessoas celebrando a vitória da revolução. No aniversário da derrubada do presidente, quando uma parte das manifestações se dirigia contra o Exército que hoje retorna a governar o Egito, falava-se em seis, sete milhões nas ruas do país. O dia 30 de junho, que culminou na derrubada de Mursi, mobilizou mais do que o dobro disto! Estamos falando de quase 40% da população adulta do país. Em termos de Brasil, estaríamos falando em mais de 40 milhões de pessoas.

É inevitável que o acúmulo político e a experiência desta massa se destoe da vanguarda. Suas experiências políticas são outras. Mas, ao tomar as ruas contra um governo capitalista e reacionário, pró-imperialista e captulador a Israel, as massas, mesmo que iludidas no Exército, cumprem um papel que avança a revolução, e não a retrocede.

A ausência de uma alternativa revolucionária da classe trabalhadora é muitas vezes angustiante. Mas o impressionismo no trato do movimento de massas tende a ter efeitos nefastos à revolução. A alienação das massas será superada por suas próprias ações, por seu próprio aprendizado nas ruas e por seus próprios erros. Será somente assim que uma verdadeira alternativa se dará. Para isto, quanto mais gente na rua, melhor. Ao contrário do que querem nos convencer os pessimistas, a primavera continua.

LEIA MAIS
LIT-QI: Morsi caiu! Grande vitória da mobilização do povo egípcio!