Em entrevista, o economista Charles-André Udry* expõe as razões da crise grega e explica o que está por trás do déficit fiscal dos estados capitalistasDurante estes últimos anos, a dívida pública aumentou em todos os chamados países desenvolvidos. Quais são as razões?
Charles-André Udry: Quando os meios de comunicação falam de dívida, geralmente promovem uma confusão. A dívida pública não é somente o endividamento bruto do conjunto das administrações públicas (Estado central, governos municipais, organismos da segurança social etc.). É o conjunto dos compromissos financeiros que estas instituições devem, em princípio, reembolsar a seus credores, pagando interesses.

Mas estas mesmas instituições têm ativos (financeiros e não financeiros). Se isso é contabilizado, dá a imagem do patrimônio líquido (ativo menos passivo) de um país. Com frequência, se faz silêncio sobre este aspecto, o que facilita a instrumentalização social e política da dívida pública com o objetivo de aplicar planos de austeridade contra os salários diretos e os salários. Desde o princípio dos anos 1970, a dívida pública acumulada se sobrecarregou em todos os países da União Europeia (UE). Sob o efeito das diferentes recessões econômicas, as finanças públicas não deixaram de se deteriorar.

A dívida pública, portanto, vincula-se estreitamente à crise estrutural do capitalismo desde 1974-1975. É necessário agregar três elementos.

Primeiro, no conjunto de países da OCDE (Organização de Cooperação de Desenvolvimento e Econômica) constata-se uma subida relativa, em longo prazo, das despesas públicas. Isso traduz a participação pública necessária para assegurar as condições da acumulação do capital (equipamentos coletivos, serviços públicos, formação etc.).

E também, a algumas necessidades sociais que as classes dominantes devem responder, de acordo com a evolução das relações sociais de forças para manter sua dominação. Esta tendência já foi estudada em 1973 por James R. O’Connor em sua obra The Fiscal Crise of the State.

Em segundo lugar, o agravamento da dívida pública não está vinculado, desde os anos 1980, a um aumento “incontrolado” das despesas públicas, mas sim a uma redução relativa dos rendimentos públicos. Isto é, a uma diminuição dos impostos aos mais ricos e as grandes empresas capitalistas; a desfiscalização das operações financeiras (bancos, seguros) e a criação de nichos fiscais, bem como a medidas favoráveis à concorrência fiscal tanto na União Européia (UE) como a nível mundial; as decisões que fazem que as empresas reduzam sua participação nas cotações sociais e a evasão fiscal dos setores da economia submergida.

O fato de que os rendimentos públicos não tenham aumentado ao ritmo das despesas públicas é, portanto, fruto de uma decisão política dos governos – sejam de direita, sejam de esquerda – ao manter as deduções por embaixo do nível necessário para um equilíbrio entre despesas e rendimentos.

Em terceiro lugar, esta política beneficia diretamente os capitalistas e permite uma operação milagrosa. Estes capitalistas convertem-se nos credores do Estado. Efetivamente, bancos e seguros, nos quais colocam sua poupança (seus ganhos), compram títulos da dívida pública (obrigações). Portanto, os impostos não pagos – basicamente uma evasão fiscal legal – se convertem em um capital financeiro que defende interesses. Os assalariados terminam pagando estes impostos não-pagos pelos capitalistas. A dívida, portanto, redistribui a riqueza social em favor dos ricos. Além disso, esta dívida pública justifica as privatizações, através de uma degradação planificada de diferentes serviços públicos, como a saúde, a educação, os transportes, correios etc. O que empobrece mais ainda aos assalariados e explorados que precisariam um acesso gratuito (ou a baixo preço) dos serviços.

Portanto, desafiar esta dívida não me parece que seja um absurdo.

Este processo de endividamento veio-se acelerando a partir de 2008
por que?

Efetivamente, a cumplicidade entre governos e investidores financeiros – que se complementam – conduziu durante o outono 2008 ao salvamento dos bancos e ao apoio a grandes empresas (setor automóvel, por exemplo).

Isso se efetuou, em grande parte, pela via do empréstimo: bônus do Tesouro emitido no mercado da dívida pública (os mercados de obrigações). Sob o efeito destes empréstimos, da redução dos rendimentos mecanicamente vinculados ao retrocesso da produção e das vendas de bens, bem como das isenções fiscais, a dívida pública aumentou em todos os países da UE.

De 2007 a 2010 (cálculos da Eurostat), a taxa de crescimento foi de 26,7% para a Zona do Euro; para a França foi 27,7%; Países Baixos 38,4%; Portugal 28,3%; Espanha 72,1%; Irlanda 218,8%; Itália 12,2%; Grécia 21,3%.

Pelo que se refere à dívida em percentagem do PIB, o Eurostat faz as seguintes avaliações para 2010: França: 81,5%; Países Baixos: 63,1%; Portugal: 81,5%; Espanha: 62,3%; Irlanda: 79,7%; Itália: 116,1%; Grécia 115%; e a Zona do Euro: 83,6%.

Se a Grécia é o terreno de prova das políticas de austeridade da UE e a instauração de um “Estado efetivamente neoliberal”, não é devido ao crescimento de sua dívida. Governos europeus e instituições financeiras utilizam o tipo da dívida relacionada ao ao PIB como instrumento de ataque contra os assalariados, como um balão de ensaio sócio-político, para o qual colaboram os capitalistas gregos e seu governo.

Todos sabem que os recursos fiscais atuais da Grécia, de fato, dependem de três fatores: o fretamento da frota marítima, o comércio com o Oriente Médio e o turismo. A crise econômica e a política do BCE (Banco Central Europeu) obstruem mecanicamente estes três fatores. Inclusive com um governo rigoroso, segundo os critérios da UE, o déficit teria estalado. Não são, portanto, os elevados salários dos trabalhadores gregos ou as rendas dos aposentados que são a causa da elevação do déficit.

Examinemos finalmente o papel específico dos bancos na situação atual. Estes últimos salvaram-se em 2008. Estas instituições diversificadas compraram bônus do Tesouro com o dinheiro que lhes foi outorgado pelos governos. Transferiram liquidez – já que lhes ofereceram taxas de juro muito baixas – para as filiais especulativas (hedge funds) que pretendem ganhar mais ainda sobre a dívida pública, entre outras coisas com instrumentos especulativos como os CDs (Crédito Default Swapes).

O poder do capital financeiro, então, saiu reforçado da crise e não tem sido afetado por uma pretendida “regulação” que os governantes tanto falaram. Este poder financeiro sente-se muito forte como para especular abertamente contra os próprios governos e contra o euro.

Mais concretamente, este poder faz questão de que é hora de impor aos assalariados e assalariadas uma superausteridade que garanta o pagamento do serviço do conjunto da dívida e, em parte, o reembolso do principal. E os patrões o utilizarão para restabelecer seus benefícios afetados pela crise, para enfrentar a concorrência internacional. Para conseguir estes objetivos, será necessário travar uma guerra social contra a população assalariada grega e europeia, com os governos, o que levará, por sua vez, ao aceleramento de uma nova e dura recessão na UE.

É possível que um Estado da União Europeia quebre por causa de uma crise da dívida?
Estritamente, um Estado não pode quebrar no mesmo sentido que uma empresa. O fim dos pagamentos de uma empresa significa o fim de seu registro comercial e a venda de seus ativos (máquinas, edifícios, patentes…) para pagar, mais ou menos, aos diferentes credores e o salário dos demitidos. A comparação com uma empresa não é, portanto, adequada.

Para abordar esta questão, é necessário ter em conta a natureza de classe dos credores, que engordaram seus lucros pagando muito pouco imposto, e continuam cobrando os interesses das obrigações e outros instrumentos financeiros – interesses que são pagos pelos assalariados.

Um Estado pode evitar uma situação de default aumentando seus rendimentos. Isto é, cobrando impostos sobre as camadas sociais que poupam mais, o que não diminuiria o consumo. Diferentes estudos mostram que o déficit orçamental grego poderia ser coberto por uma taxação aos ricos que, por outra por sua vez, estão entre os credores do Estado.

Um estudo do HSBC (Mathilde Lemoine) indica que 29% do último empréstimo de 5 bilhões de euros foi vinculado a uma taxa delirante de 6,25% (em relação a 3,2% apresentado pela Alemanha), mas isso não foi apresentado para os gregos, senão para os ricos e os ainda mais ricos de amanhã. Esta imposição, a partir de uma defesa dos interesses das classes dominantes, implica em um ataque multidimensional contra a maioria da população que produz a riqueza social.

O plano de austeridade grego atual já equivale, segundo a OFCE (Escritório francês das conjunturas econômicas, Xavier Timbeau), a uma duplicação do imposto sobre a renda na França! Esta percentagem de 6,25% é aceita para obedecer à disciplina dos mercados, isto é, os investidores. Mas isso não foi a causa fundamental da crise de 2008.

Quando os mercados se tranquilizam, os assalariados se assustam. Tal política consegue destruir as capacidades produtivas de um Estado em benefício do pagamento dos interesses privados da dívida.

Uma solução elementar, no marco mesmo de uma política burguesa semikeynesiana, poderia ser a seguinte: na medida em que os títulos da dívida grega (ou de outros) expiram, os bancos da UE deveriam ser obrigados a subscrever os novos títulos emitidos a uma taxa de juro limitada. E se estes bancos devem se financiar de novo, poderiam sempre depositar estes títulos para o BCE, o que já é realizado. Só o apetite insaciável dos investidores e de seus cúmplices governamentais, bem como uma política de “tolerância social e política” de enquadramento da classe trabalhadora pelos aparelhos burocráticos, sindicais e políticos, explicam a rejeição de tal opção; sem mencionar o peso dos dogmas monetaristas e a defesa dos interesses específicos dominantes dos países do Norte da UE.

Qual deveria ser a resposta da esquerda e do movimento operário a situação atual?
Na medida em que uma opção tão moderada, como a indicada anteriormente, é recusada, o repudio à dívida aparece – do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores gregos e europeus e não somente os de Portugal, Espanha ou Itália – como uma via razoável que deve se utilizar.

Deve basear na amplitude da mobilização social e política, e na imposição de uma relação de forças e sua extensão a escala européia. Eles, os credores, que se orgulham de tomar riscos, deveriam pagar pelos estragos! Sobretudo, tendo em conta que os especuladores do tipo Soros, que utilizam os CDs (isto é, um seguro de incêndio de uma casa que não possuem, mas que esperam que se incendeie, fazendo deles mesmo os incendiários) não duvidam em estrangular povo trabalhador.

Um Estado segue sendo um Estado inclusive se decide desfazer do ônus – ou de uma parte importante – de sua dívida. Pode suspender durante alguns semestres o pagamento dos interesses, indicando que não terá pagamentos retroativos. Pode reduzir o custo nominal de títulos da dívida quando expiram. Mas terá que estar atento, já que o contra-ataque dos “mercados” contra “os maus pagadores” será também forte.

É necessário que o repúdio proporcione recursos que estejam, ao menos, a
altura do déficit corrente para dar um oxigênio à economia. Efetivamente,
os credores (que têm saqueado as riquezas dos países graças à compra de partes da dívida pública) deverão pagar uma soma que não é nada em relação aos impostos que não pagaram durante estes 25 últimos anos. Este saque não só tem ocorrido em muitos

“países desenvolvidos”, como também (e sobretudo), nos “países do Sul”, na América Latina, África e Ásia. Paralelamente com a degradação dos serviços públicos, austeridade salarial, desemprego e pobreza de massas.

Eles, os credores, como já o explicamos, preferem governos que se endividem antes que os governos hipotequem seus ganhos. Os credores preferiram (e preferem) governos dóceis (de direita ou “progressistas”, dá no mesmo), que se inclinam ante o mercado e aos “investidores” estrangeiros. Então, é preciso repudiar a “ética” dos partidários do Capital. Eles têm que pagar. Ou como dizem os milhões de trabalhadores gregos que foram à greve geral: “nós não pagaremos”.

Certamente, este repúdio da dívida deve acompanhar um conjunto de medidas que vão desde a nacionalização dos bancos, um novo sistema tributário, e a uma reorganização da segurança social, dos serviços públicos etc.

Não vou aqui propor um plano como tal, já que isso deveria se discutido e ser esboçado entre os setores sociais mobilizados, junto com uma extensa investigação sobre as necessidades sociais não satisfeitas.

É o desafio dos assalariados e assalariados da Grécia, da Europa, dos Estados Unidos, dos “países do Sul”, enfim, dos trabalhadores imigrantes. Já que a crise capitalista é de uma gravidade sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial.

*Charles-André Udry é economista, militante do Movimento Pelo Socialismo (MPS-Suíça), também é diretor do Cahiers livres (Editions Page deux) e redator da revista A Breche (www.alencontre.org)