O stalinismo criou um tipo especial de “autocrítica”: aquela que os outros deveriam fazer mas ele não. Em artigo recentemente publicado na agência Carta Maior, intitulado “Uma outra esquerda é possível?”, o ex-deputado Marcos Rolim clama pela autocrítica dos demais. Não participou da fundação do PT – achava mais seguro eleger-se vereador pelo PMDB ­, mas acusa outros que participaram de parasitar movimentos sociais. Foi maoísta e defensor da revolução cultural, mas insulta defensores do “grande timoneiro”. Foi ultra-esquerdista e agora lança impropérios contra não-governistas. Fazer a acareação entre o velho e o novo seria constrangedor e deixo o desafio aos que tiverem paciência e os documentos para tal.

Uma outra esquerda é possível? Essa é a pergunta inicial do ex-deputado. O título é o que o artigo tem de melhor. Repito a pergunta de outros modos. É possível uma esquerda não-governista – ou seja, que não seja partidária de qualquer governo, seja Lula, Kirchner, Vásquez ou Chávez? É possível uma esquerda que não seja ávida por mandatos, ministérios, secretarias de estado e cargos de confiança? É possível uma esquerda que lute por idéias e programas e não por verbas orçamentárias? E por último, é possível uma esquerda que mantenha a compostura?

Só vou tentar discutir essa última questão, justamente porque é a mais insignificante de todas. Como o texto de Rolim indica, há setores da esquerda que perderam a compostura. Ele mesmo dentre outros. Perdeu a compostura quando seguiu o caminho das fórmulas fáceis do anticomunismo e somou a elas os diagnósticos psiquiátricos e os insultos que o stalinismo costumava lançar a seus adversários antes de atirá-los às masmorras. O “orador exaltado” é aplaudido por militantes que “imaginam que possuem a ‘verdade histórica’”. Os “pequenos grupos (…) metem a lâmina da agitação revolucionária no bolo que os movimentos sociais e as ONGs construíram na tentativa de levar uma fatia para casa”. Pessoas que “vivem em um mundo à parte” (ou seja, indivíduos psiquicamente alienados), consideram uma ameaça “os indivíduos concretos, com seus desejos, opiniões, afetos e aspirações por felicidade”. E os bons cidadãos têm “que agüentar abobados da enchente pichando Porto Alegre com vivas ao Maoísmo”.

É a velha redução da luta política a um confronto do bem contra mal, dos sãos contra os insanos, do normal contra o patológico. Se quisermos forçar e qualificar um pouco a discussão, subjacente aos ex-abruptos de Rolim são as velhas díades da política positivista: a ordem e a desordem, o progresso e o atraso. Não houve em Porto Alegre um confronto violento entre céu e inferno que tenha tingido de sangue as águas do Guaíba. Não houve sequer uma pequena escaramuça entre anjos e demônios. Houve só vaias e discursos “exaltados”. Mas foi o que bastou para o ex-deputado perder a compostura e dar uma demonstração pública de intolerância e de desonestidade intelectual em uma coluna que deveria tratar de Direitos Humanos.

Há uma dimensão ética na exigência de uma esquerda que mantenha a compostura. Tal dimensão é afirmada pelo bom senso como um conjunto de normas que deveriam definir o que é adequado ou não à prática de forças políticas que pretendem mudar o mundo. Não vou nem tentar apresentar essas normas aqui. A lista seria enorme e certamente conteria alguns itens referentes aos fundos que sustentam os orçamentos eleitorais. Fico nas observações mais prosaicas e para tal basta dizer que o ex-deputado violou várias: não amalgamar posições políticas diferentes (o trotskismo defendeu a revolução cultural chinesa?); não psiquiatrizar a política; não chamar os adversários de abobados; não falar em nome de uma cidade quando não recebeu mandato para tal, etc.

Mas para além do bom senso, tal exigência é ético-política no sentido que Antonio Gramsci afirmava, ou seja, ele é constitutiva de um novo projeto hegemônico. A vulgata gramsciana difundida pelo eurocomunismo tornou-se artífice de uma hegemonia restrita construída às custas da incorporação dos descontentes ao modo dominante de fazer a política. Tendo como pilares a corrupção e a fraude, tal hegemonia restrita incorpora passivamente as classes subalternas por meio do “transformismo”, da cooptação, de seus dirigentes. Ela é, por isso mesmo uma revolução passiva. Essa é a hegemonia que agrada a velha esquerda transformista, aquela que está no governo. Ela adora indivíduos inertes que preferem “escutar e tem prazer em aprender”. E perde facilmente a compostura porque teme perder o que tem. Mas não é dessa hegemonia restrita, a hegemonia dos dominantes, que faço referência.

Uma esquerda que mantenha a compostura deve ser uma esquerda capaz de construir uma hegemonia ativa, ou seja, um novo projeto político e uma nova concepção de mundo. Novo projeto na medida em que rejeita os palácios como sedes da política e afirma uma prática política extra-palaciana. É a prática política das ruas, das assembléias, das greves, das manifestações, dos movimentos. É uma prática exaltada, é verdade (eles sempre são exaltados, resmungaria Rolim). Mas ela é, fundamentalmente, uma prática que não se acomoda à ordem, que não é dependente de verbas estatais; e que prefere fazer ao invés de ouvir obedientemente como gostaria o ex-deputado. É uma prática que resiste ao Extreme Makeover, o transformismo político que converte vereadores esquerdistas em ex-deputados governistas. Para uma esquerda identificada com essa nova prática, o mundo de hoje não lhe pertence, a ordem atual não é a sua e não tem nada a perder, sequer a compostura. Por isso mesmo não apela para as formulas palacianas fáceis, aprendidas nos manuais do anticomunismo ou de seu pleonasmo, o stalinismo.