O Opinião entrevistou Henrique Carneiro, professor de História da Universidade de São Paulo e militante do PSTU. Henrique é ativista da campanha pela legalização das drogas e defende que só a legalização, com estatização da produção e venda, pode impedir Como você vê a “guerra contra as drogas” no contexto internacional?
Henrique Carneiro – A guerra às drogas completou 40 anos nessa fase, desde que foi lançada pelo presidente norte-americano Richard Nixon. Tornou-se, assim, a guerra mais cara, mais longa e com mais prisioneiros da história da humanidade. É um mecanismo de, em primeiro lugar, controle social das populações pobres, pois permite à polícia devassar a privacidade dos indivíduos em qualquer circunstância, sob o pretexto de busca de drogas. Em segundo, permite um controle de matérias-primas que são fundamentais na indústria farmacêutica, garantindo a hegemonia dos remédios desta indústria contra o uso de plantas tradicionais. Ainda, garante um mecanismo de aumento da rentabilidade do capital, em um sistema financeiro em grande crise, pois gira, por lavagem de dinheiro, um montante de US$ 400 bilhões, mais da metade de todo o mercado farmacêutico oficial. Esse dinheiro garante, em momentos de crise, a liquidez necessária ao mercado financeiro, como aconteceu em 2008. Só o banco norte-americano Wachovia lavou, reconhecidamente, mais de US$ 400 bilhões no México, mais de um terço do PIB desse país.

O imperialismo, portanto, também se utiliza dos lucros do tráfico?
Henrique Carneiro – Sim, de uma forma sistemática. O maior promotor do tráfico no mundo provavelmente foi a própria CIA, pois desde o conflito do Vietnã, onde havia a área de produção de ópio do Triângulo Dourado, até a atual guerra do Afeganistão, uma das questões centrais em jogo é o controle do mercado dos opiáceos e do seu principal derivado, a heroína. Esse mercado permite aferir lucros muito superiores ao mercado normal: tem um custo de produção muito abaixo do preço do produto, por causa da política proibicionista. É ela, portanto, que garante uma rentabilidade extraordinária para os grupos desse mercado. Não são grupos clandestinos, mas os próprios Estados. Alain Labrousse, no livro “Geopolítica das Drogas”, mostra que todos os conflitos, após a queda do muro de Berlim, foram financiados por caixa-dois do dinheiro do tráfico. Tanto na guerra do Afeganistão, quanto na de Kosovo, as da América Central, na Colômbia, no Peru, México, em todos os países onde houve conflito o dinheiro do narcotráfico foi uma divisa, uma moeda franca.

Quais outros efeitos sociais são atribuíveis à guerra contra as drogas?
Henrique – Há, sim, uma guerra desencadeada às pessoas que consomem certas drogas ou que as produzem, como os camponeses. A própria expressão é capciosa: a guerra não é contra as drogas, é contra as pessoas que as consomem, os milhões. É uma espécie de guerra social e cultural, que não reconhece o direito de cidadania de uma minoria dos cidadãos que tem um estilo de vida que não diz respeito a ninguém, mais além deles mesmos.

Agora, a classe trabalhadora vem sendo um dos alvos mais importantes dessa guerra, porque ela serve também de pretexto para a criminalização mais geral da pobreza. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, onde há conflitos entre grupos de traficantes, a gente vê que um dos efeitos nefastos é que o mercado é tomado pelo seu pólo varejista. Isto é, os grandes traficantes são setores financeiros que lavam dinheiro, mas os únicos reprimidos são os que revendem.

Você defende que só uma política de legalização pode combater o tráfico e o monopólio, por um lado, e o uso abusivo, por outro. Com quais medidas isso seria possível?

Henrique – Deve haver uma política que garanta o acesso às pessoas que optarem de forma bem informada, mas deve haver uma completa ausência de mecanismos de incitação ao consumo, dos quais os mais importantes são os publicitários. Então deve haver uma estatização da grande produção de todas as drogas, incluindo as farmacêuticas, incluindo álcool e tabaco, para que os lucros fossem utilizados totalmente para fins de interesse público, como, inclusive, dar apoio com verbas públicas para programas de tratamento daqueles que tiverem consumo compulsivo. No âmbito varejista e no âmbito do microcomércio, da autoprodução, das cooperativas, deveria haver um grande espaço para um mercado de iniciativa individual, mas não de monopólios nem de grandes empresas. Outra coisa é o monopólio da grande produção que, se ficar nas mãos privadas, sempre vai tentar aumentar o consumo. Eu acho que isso ajuda a explicar o argumento da legalização, pois você vai dizer para as pessoas que não vão ser empresas que vão lá tomar o controle da cocaína e tentar ficar drogando pessoas menores de idade ou vulneráveis etc., mas vai ser o Estado, que vai estabelecer critérios extremamente severos – como tem a venda de remédios controlados, por exemplo -, vai ter uma fiscalização que impeça usos irresponsáveis, como o uso ao volante, que teria que ser também severamente punido – coisa que no Brasil não é, sequer com o álcool -, e teria que haver a total proibição da publicidade.

O ex-presidente FHC também vem realizando uma campanha pela descriminalização. Qual é a sua opinião?

Henrique – FHC tem defendido a descrimininalização, mas não tem falado da legalização. Isso não resolve o problema, porque continua deixando a produção e a circulação dessa mercadoria numa esfera completamente sombria, de ilegalidade. A legalização, por outro lado, obriga a uma definição sobre qual regime de propriedade que deve reger esse comércio e qual deve ser a destinação dos enormes lucros que ele possibilita.

No entanto, ela é defendida por um setor significativo da burguesia mundial, que se deu conta de que a proibição está trazendo uma série de consequências muito perigosas, inclusive de conteúdo sistêmico, quer dizer, do funcionamento adequado do capitalismo. Esse setor é capitaneado por grupos lobistas financiados por George Soros, que estão, agora, reunidos numa comissão internacional que reúne, além de FHC, figuras como Paul Volcker, ex-presidente do Fed [Banco Central dos EUA], ou George Schultz, ex-secretário de Estado norte-americano. Isso tudo mostra que há um interesse muito grande em tornar esse mercado clandestino “uma commodity” de circulação como outra qualquer: pagando impostos para o Estado e dando lucros para grandes empresas, e não mais para um setor de uma burguesia lúmpen [marginal, gângster] ou para o setor financeiro que lava o dinheiro.

Post author Por Luis Gustavo Porfírio, de São Paulo
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