O ano é 1961. Os soviéticos já puseram em órbita o Sputnik I, o primeiro satélite artificial a orbitar a Terra. Também lançaram em uma missão sem volta a cadela Laika, primeiro ser vivo terrestre a ser enviado ao cosmo. Agora estão novamente no Cosmódromo de Baikonur para mais um passo na corrida espacial: o lançamento da Vostok 1, a primeira missão espacial a levar um ser humano ao espaço.

O clima era de apreensão e os protocolos estavam minuciosamente descritos: a ordem era a contagem regressiva e a confirmação da nave com “Tripulação, decolar”. A frase, contudo, não foi ouvida naquele dia. A confirmação veio com um simpático e entusiasmado “E lá vamos nós!” (“Poyekhali!”).

Assim começava, há exatos 60 anos em um 12 de abril como hoje, a viagem de Iuri Gagarin, o primeiro ser humano a conquistar o espaço.

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Garoto propaganda

A tranquilidade de Gagarin em não seguir os protocolos demonstra bem a personalidade que tinha. Ele era comumente descrito como alguém cativante e vivaz e há algumas semanas a rainha Elizabeth II lembrou de Gagarin como uma pessoa “fascinante”, embora sequer inglês Iuri falasse.

Esse traço da personalidade de Iuri sem dúvida foi levado em consideração na sua escolha. A burocracia soviética sabia que lançaria um tenente e receberia de volta um herói nacional. Não à toa Iuri foi promovido a major assim que pousou. Gagarin se tornou uma celebridade nacional e prontamente foi posto a rodar o mundo (dessa vez em terra) para levar aos quatro cantos a mais recente conquista soviética.

Gagarin inclusive esteve no Brasil. Esteve no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde ficou hospedado próximo ao Parque do Ibirapuera poucos meses depois de sua viagem e foi recebido pelo então presidente Jânio Quadros, que o condecorou e aproveitou para anunciar o lançamento do programa espacial brasileiro.

Jânio Quadros, então presidente do Brasil, e Iuri Gagarin.

Do campo para o cosmo

Mais do que isso, Gagarin reunia uma série de qualidades que o classificavam para ser o primeiro cosmonauta soviético. Iuri nasceu em uma fazenda coletiva (kolkhoz) na aldeia Kluchino. Sua família sofreu com a invasão nazista durante a Segunda Guerra e seus irmão foram enviados a campos como prisioneiros. 

Iuri cursou ensino técnico e aos dezesseis anos começou a trabalhar em uma fundição próximo a Moscou. Seu interesse por aviação o levou a se candidatar para a Academia de Pilotos de Chkalovsky, onde foi aceito em 1955. Era a biografia perfeita para a construção do mito do novo homem soviético, transformando operários em cosmonautas.

Mas não só. Gagarin reunia também condições físicas apropriadas para a missão. Como a cápsula espacial tinha tamanho reduzido (pelos custos de lançamento e combustível), como sua modesta estatura de 1,57m e seus 69Kg, tinha o biótipo adequado.

Já formado como piloto, Iuri se candidatou em 1959 em um programa que buscava recrutar futuros cosmonautas. Ao todo, 350 pessoas se inscreveram. Após uma nada leve e brutal bateria de testes, o número foi reduzido a 20. Depois para 6. Há uma história de que Gagarin teria admitido, após um dos testes, estar completamente atordoado, o que foi interpretado como um relato realista, ao contrário dos outros candidatos. Serguei Korolev, projetista-chefe da missão, teria considerado que depois do gesto de sinceridade de Gagarin poderiam esperar um relato fidedigno do vôo.

“Nenhum Deus!” – a frase foi supostamente atribuída a Gagarin e foi usada como propaganda anti-religiosa URSS. Gagarin, contudo, nunca disse isso. Ele era membro da Igreja Ortodoxa. Além disso, o primeiro cosmonauta a caminhar pelo espaço foi Aleksei Arkhipovitch Leonov.

Terra azul

A cápsula de Gagarin foi lançada ao espaço por um foguete Vostok-K. A cápsula propriamente dita, com a qual Gagarin deu uma volta na Terra, era totalmente automatizada. Os engenheiros soviéticos temiam que uma crise de pânico poderia levar Gagarin ao descontrole e por tudo a perder. O controle manual só poderia ser ativado após a solução de um problema matemático contido em um envelope.

Ao todo a viagem durou 108 minutos. Tempo suficiente para que Gagarin olhasse pela janela e dissesse em tom de exclamação que “A Terra é azul!”. A frase tornou-se símbolo da missão e engana pela simplicidade. Pela primeira vez na história o homem olhava para seu planeta. Gagarin tinha apenas 27 anos. Foi um momento sublime, daqueles para os quais faltam as palavras.

Menos romântico mas talvez mais heróico ainda foi seu retorno para a Terra. Apesar do sucesso em trazer de volta as cadelas Belka e Strelka em 1960, não se tinha total clareza de como a nave com um humano se comportaria. No processo de reentrada, os módulos de serviço equipado com retrofoguetes deveriam se separar do módulo de comando, onde estava Gagarin. Um problema técnico, contudo, os manteve conectados por um feixe cabos. Gagarin passou por fortes oscilações e fortes giros no espaço antes da reentrada. Por sorte, os cabos se romperam na reentrada e a cápsula conseguiu se estabilizar a tempo. Mas não para por aí. Gagarin deveria ser ejetado do módulo e chegar à terra de paraquedas. Mas a liberação de oxigênio em seu escafandro não foi imediata e ele chegou a ficar um tempo sem respirar.

Por um erro de cálculo e por todos os outros, Gagarin acabou pisando em terra a quilômetros de distância do previsto, sem que houvesse alguém para o socorrer. Apenas um fazendeiro e sua filha assistiram aquele homem, em seu roupão laranja, caindo do espaço e pedindo para ligar para Moscou. E uma curiosidade: Gagarin estava armado com uma pistola. Os soviéticos já haviam considerado a possibilidade do pouso em um lugar distante.

Vostok-1, a nava com que Gagarin deu a volta ao mundo em órbita.
O módulo de comando há em terra.

O acidente suspeito

De volta à Terra, Gagarin se tornou a maior celebridade internacional sem passar pelo esporte ou cinema. Rodou o mundo recebendo honrarias pelo seu feito e usado como garoto propaganda da União Soviética. A vida de estrela, entretanto, não é fácil. Gagarin foi afastado e proibido de fazer novos voos espaciais. A burocracia temia perder seu herói. Sua imagem foi usada à exaustão. Problemas com bebidas e casos extra-conjugais apareceram no radar.

Gagarin morreu em 1968, aos 34 anos, de uma forma até hoje não muito bem explicada. A preocupação soviética em manter tudo em sigilo só ajudou a corroborar os boatos. Em 27 de março daquele ano, Garagin sofreu um acidente aéreo enquanto realizava um vôo padrão com um MiG-15UTI. Uma outra aeronave que estava sendo testada no dia violando o plano de vôo, acabou passando muito perto da aeronave de Gagarin o que a fez entrar em espiral e perder o controle.

Antes de ser lançado em órbita, em 1961, por procedimento padrão Gagarin escreveu uma carta de despedida para sua esposa que, por motivos óbvios não a recebe naquele momento. Essa carta foi entregue a ela após o acidente fatal de Gagarin.

Da Terra azul ao pálido ponto

Mesmo o bloco soviético tendo se dissolvido e não deixado nenhum país atual como herdeiro do pioneirismo cósmico que um dia teve a URSS, o mito construído ao redor de Gagarin permanece intacto na cultura popular. Muita coisa mudou desde, então, é verdade. A começar pela tecnologia. Mas mudou também nossa percepção sobre nosso lugar no universo. Trinta anos depois da sublime contemplação de Gagarin, passamos a considerar que talvez essa enorme “Terra azul” talvez não passe de um “pálido ponto azul”, como disse Carl Sagan comentando a foto feita pela Voyager 1 ao passar por Saturno. 60 anos depois, a humanidade começa a explorar Marte com imagens ao vivo.

Ironicamente, no aniversário de 60 anos de nossa primeira ida ao espaço e atolada em uma crise do capitalismo, a humanidade passa por um momento de terraplanismo, negacionismo científico, um anti-globalismo xenófobo e toda por toda sorte de ideologia reacionária e covarde. Já estivemos melhor, é certo. Explorar o cosmo, por outro lado, nos exige coragem para admitir nossa pequenez diante disso tudo. Não à toa coube a uma vira-lata e um jovem fundidor a tarefa de abrir o caminho. A coragem para a humildade é uma virtude dos simples. E os covardes que se escondam pois o caminho aberto por Laika e confirmado por Gagarin é um caminho sem volta.