Neste domingo, 16 de janeiro, o Portal do PSTU esteve em São José dos Campos (SP). O propósito era acompanhar uma assembleia dos moradores do Pinheirinho e atualizar as informações sobre sua heróica resistência à ameaça de desapropriação pela prefeitura, o estado e suas forças de repressão. Uma ameaça cada vez mais concreta, que pode ser concretizada a qualquer momento deste início de semana.

Contudo, até mesmo para que se entenda a dimensão do crime que estes senhores dizem estar prestes a cometer, vale narrar algumas coisas que vimos por lá, para que o leitor conheça um pouco da vida deste local e seus moradores, que apesar de pintados pela mídia como um bando de “bárbaros” que ameaça a ordem pública, nada mais são do que a expressão da constante luta que milhões têm que travar, cotidianamente, para arrancar esperança e o mínino de dignidade das péssimas condições de vida nos quais foram jogados pelo Capital.

Arrancando vida do nada
Antes mesmo de entrarmos na comunidade, já era possível ver um símbolo do tipo de comunidade que foi formada no Pinheirinho no decorrer dos últimos oito anos: faixas de pano vermelho acompanham todo o enorme cercado que contorna o terreno e foi recentemente “reforçado” com tudo o que se tinha à mão.

E se é verdade que estas faixas e cercado revelam muito do espírito de luta e resistência que têm caracterizado a existência desta comunidade, o que chama a atenção de qualquer um que realmente tenha olhos para a realidade é aquilo que é possível se ver por trás delas.

De imediato, é impossível não notar o amontoado de casebres, barracos e casas de alvenaria em diferentes estágios de construção, cortados por dezenas de ruas, particularmente enlameadas e esburacadas em função do dia chuvoso. Uma visão que, para aqueles que, por exemplo, defendem a desapropriação da área, pode ser apenas uma “indesejável” lembrança da miséria em que milhões são obrigados a viver neste país.

Contudo, para qualquer que realmente combata esta mesma miséria e lance um olhar mais “humano” ao desengonçado desenho formado pelas fileiras de casa, rapidamente irá ver muito mais do que um amontoado de barracos miseráveis. O que se vê por todos os lados, na verdade, é uma demonstração da enorme capacidade do povo trabalhador em levantar as coisas do nada, de arrancar dignidade do pouquíssimo que a sociedade lhes reservou e, ainda, de enfrentar obstáculos tidos como “humanamente” impossíveis (principalmente por aqueles que querem lhes tirar este pouco que tem).

Transformados em “lares” pelos moradores do Pinheirinho, os casebres são provas concretas de um daqueles ensinamentos da sabedoria popular: onde faltam recursos, devem sobrar criatividade e dedicação. Foram precariamente erguidos no ritmo determinado pelos miseráveis salários ou pelo desemprego que lhes foi reservado pelos mesmos senhores que, hoje, querem lhes tirar as casas. Mas, se mantêm firmes.

No decorrer dos últimos oito anos, foram lentamente sendo reformados com todas as limitações impostas por tantas outras necessidades que precisavam ser encaradas e, ainda, sob a constante ameaça da desapropriação. E, mesmo assim, nunca param de ganhar pequenas “melhorias”: pode ser um compensado mais grosso para tapar as frestas da parede; um cercadinho construído em torno de uma pequena horta ou a troca dos madeirites por tijolos. Atividades que, diga-se de passagem, apesar do evidente clima de tensão poderiam ser vistas por todos os lados, no domingo.

“Como é possível que queiram acabar tudo isso?”
Essa foi a pergunta feita por uma estudante secundarista que acompanhava nossa comitiva e estava entrando no Pinheirinho pela primeira vez. Assim que atravessamos a primeira barricada, das muitas que, hoje, cortam as ruas da comunidade, a estudante, parada no meio da rua, olhava ao redor visivelmente impressionada pelo tamanho do lugar, refazendo para si mesma, a pergunta: “Como é possível que queiram acabar com tudo isso?”

Uma pergunta que inevitavelmente surge na mente de qualquer um que não tenha seus olhos nublados pelo Capital e consiga enxergar o que há de mais importante por trás das cercas da área ocupada: a vida de 1.843 famílias fervilha no Pinheirinho.

Tirando a tensão evidente nos olhares de todos com os quais conversamos, o “domingão” do Pinheirinho parecia com o de qualquer outro, país afora. O som das TV’s ligadas vazava pelas finas paredes das casas e misturava-se nas ruas com a voz de um pastor que pregava em alguns dos templos que surgiram no local, competindo com um “pancadão” que gritava de alguma caixa de som.

Aqui e ali, grupos de trabalhadores exercendo seu merecido direito ao descanso, discutiam o jogo do dia ou batiam papo. Cruzando as ruas ou paradas nas portas das comadres, mulheres carregavam filhos nos colos e, como já era início da tarde, casais de namorados, de mãos dadas e roupa alinhada, atravessavam, em grupos, os portões da saída em busca de alguma diversão “lá fora”.

Com tudo, o que mais chamava atenção, e provavelmente motivou a pergunta da estudante, eram as crianças. Literalmente milhares delas: 3.500, segundo o último levantamento. Algumas, já escoladas em tirar proveito das contradições, utilizavam as poças espalhadas para criar brincadeiras com seus barquinhos de papel-jornal ou se aventurarem em enlameados jogos de pega-pega ou peladas.

A aparência de estarem completamente alheias à possível tragédia que pode se abater sobre elas a qualquer momento, contudo, é enganosa, algo que ficou evidente num pequeno episódio que diz muito sobre o que se passa no interior daquelas cercas. Quando passei por um pequeno grupo, com garotos e garotas em torno dos 10 anos, um deles se aproximou de mim não pedir algo, mas apenas para perguntar: “Vocês vieram pra ajudar a gente continuar morando aqui? A assembleia é lá no fim da rua, na praça!”

Tendo sido obrigadas a conviver praticamente durante suas vidas inteiras, mas particularmente na última semana, com a possibilidade de perderem o pouco que tem, estas crianças, inclusive, deram no dia anterior um impressionante exemplo de como sabem reconhecer seus aliados e do apego que têm à sua comunidade.

Como parte das táticas de “esvaziamento” do local, no sábado, a prefeitura montou uma “armadilha” na forma de uma série de atividades recreativas organizadas numa área bastante próxima ao Pinheirinho. A resposta foi exemplar do tipo de comunidade que eles formam: além de um total boicote à atividade, os moradores organizaram sua própria tarde de recreação e, no domingo, reuniram mais de mil crianças em torno de música, pipoca e brincadeiras.

Como disse J., uma das muitas mulheres que exercem tarefas na organização e direção da comunidade, “o que fizemos não foi apenas oferecer o merecido entretenimento para nossas crianças; também queremos mostrar para os ‘lá de fora’ que a vida de milhares delas está em risco e tudo os que elas querem é simplesmente viver”.

Mergulhados na luta, cercados de solidariedade
Ainda de forma mais clara que as crianças, os adultos sabem reconhecer seus aliados, o que ficou evidente ao caminhar ao lado de Herbert Carlos, vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de S. José, em direção à assembléia.

A todo momento éramos interrompidos por moradores que ora queriam informações sobre as negociações, oram davam informes sobre o que está acontecendo nos mais diferentes aspectos. E outras muitas vezes só queriam papear e cumprimentar, com sincera gratidão e comovente entusiasmo, aqueles da nossa comitiva que já haviam estado no local.

Algo que, como lembrou Herbert, também é típico do povo que está construindo esta comunidade: “Se a simples razão de que a luta deles, em defesa do direito de moradia, já é mais do que suficiente para lhes darmos total apoio – como tenho orgulho de dizer que o Sindicato dos Metalúrgicos e a CSP-Conlutas vêem fazendo –, este povo merece todos os esforços que possamos fazer também em retribuição a algo que eles sempre demonstraram: solidariedade e disposição de luta. Coisas que eles aprenderam na prática nestes oito anos”.

No chuvoso domingo passado, foi exatamente a solidariedade o tema central da assembleia que, semanalmente, acontece na praça central da comunidade (nomeada, em assembleia, “Praça Quilombo dos Palmares”. Marcada para as 18:30h, a reunião foi “pequena”, reunindo umas 500 pessoas, por um motivo que nos foi explicado por uma das muitas Maria que se encontrava no local: “Vocês deviam ter vindo ontem. Foi lindo! Tava lotado!”

E tava mesmo. Como lembrou o companheiro Marrom, dirigente do Pinheirinho, que abriu a assembleia, “a reunião no dia anterior, que traçou todos os planos para a dura semana que se avizinha, contou com cerca de 5 mil pessoas e, inclusive, a idéia era que a assembléia regular de domingo fosse suspensa, mas a maioria decidiu por mantê-la, por precaução”.

Marrom destacou que esta postura é típica de uma comunidade que aprendeu que só a organização pode garantir a vitória: “Aqui, o povo sabe que se reunir, discutir, se organizar é tão importante quanto tapar os buracos do telhado em dia de chuva. Desde o início é assim: todas as terças, temos reuniões por setor; os representantes das comissões e a coordenação se reúnem às quartas e, no domingo, o povo todo vêm pra assembléias”

Avisando que a reunião seria rápida e teria como principal ponto as falas dos apoiadores que estavam presentes, Marro abriu a assembléia relatando o que havia ocorrido poucas horas antes com mais uma tentativa de esvaziamento e intimidação do Pinheirinho: “A prefeitura montou um mega galpão no Santo Edwiges [bairro popular, próximo], que, segundo eles, iria servir como centro de triagem, depois da desocupação. Sabe o que os companheiros do Edwiges fizeram? Derrubaram tudo. E disseram que ao invés de um lugar para prender seus amigos do Pinheirinho, o que eles querem ali é uma creche e uma escola”.

A “massa”, evidentemente, explodiu em aplausos e gritos de entusiasmo. Algo que só aumentou na medida em que os apoiadores foram se revezando ao microfone, como a companheira Nancy Galvão, da direção do PSOL, que lembrou que “estar aqui não simplesmente uma demonstração de solidariedade de todos estes sindicatos e movimentos, é também a retribuição do apoio que o povo do Pinheirinho não tem negado a sequer uma luta desta região; já vi vocês na porta das fábricas metalúrgicas, químicas, nos movimentos dos estudantes e de todas as categorias em luta. Agora, é nossa hora de defendê-lo. E tenham certeza: nós faremos isto até o limite de nossas forças”.

O exemplo de solidariedade ressaltado por Nancy foi exemplificado pelos dois companheiros que a sucederam. Cabral, dirigente do Sindicato dos Químicos, e também do PSOL, avisou que, “a partir de segunda, iremos parar os companheiros da Johnson e das outras fábricas do setor, na entrada dos turnos para discutir o apoio a vocês; e tenho certeza que não faltará, pois além de muitos de vocês estarem lá, todo o dia, no chão das fábricas, muitos químicos conhecem vocês de tantas outras lutas”.

Já Guilherme Rodrigues, militante do PSTU, que falou em nome do Setorial LGBT da CSP-Conlutas e da Assembléeia Nacional dos Estudantes – Livre (ANEL), lembrou que a primeira vez que teve contato com o povo do Pinheirinho “foi lá na Avenida Paulista, na Parada que comemora o orgulho de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis, em 2008. Vocês não só estavam lá, demonstrando na prática a unidade na luta entre explorados e oprimidos, como também foram os primeiros a se colocarem em os militantes LGBT e a polícia que, naquele ano, investiu contra o carro da CSP-Conlutas, agrediu e prendeu vários de nossos militantes”.

Continuando, Guilherme também lembrou que “no ano passado, quando fui agredido por homofóbicos na mesma região, vocês também me enviaram solidariedade. Por tudo isto, estar aqui não é só demonstrar que estamos solidários com a luta de vocês. Tenham certeza: estamos aqui hoje e voltaremos sempre que for necessário, até que vocês possam viver com a paz e dignidade que merecem, porque assim como vocês demonstraram quem sabem como defender nosso direito de ser o que somos, nós, LGBT, não iremos vacilar um segundo em defender seus direitos”.

Aclamado por gritos de “ocupar, resistir”, Guilherme foi sucedido por falas de Tonhão, vereador do PT local e representantes do Movimento “Quilombo Raça e Classe”, do Sindicato dos Metalúrgicos, da Organização da Juventude Estudantil (OJE) e de várias outras entidades presentes. Como também foram mencionadas as várias mensagens de apoio que vêm chegando de todos os cantos: de artistas como Emicida e Lourdes da Luz; de sindicatos estrangeiros, como o Dori-Chiba (ferroviários do Japão), e movimentos de todos os cantos do mundo.

Ao final, Toninho Ferreira, dirigente do PSTU de S. José, lembrou da comparação que a imprensa fez do “batalhão anti-choque” do Pinheirinho e o “Exército de Brancaleone”, comentando que, apesar das intenções da maioria da imprensa, que tentou ironizar o legítimo direito de autodefesa da comunidade, a analogia era bastante propícia.

“Temos, sim, um exército de “brancaleones”, formado por gente pobre, que é obrigada a improvisar tudo, mas também temos algo que gente como Naji Nahas e toda a corja que se esconde por trás dele nunca vai ter: temos consciência de que é possível transformar sonhos em realidade e que, hoje, os sonhos de vocês todos estão, aqui, neste pedaço de terra, e tudo o que vocês querem e viver em paz. Mas, se pra ter paz, é preciso preparar a guerra, tenham certeza que não lhes faltará apoio”, concluiu.

Já no meio da noite, a assembleia começou a se dispersar depois das últimas orientações dadas pelo companheiro Marrom. Pouco a pouco, os moradores começaram a se dirigir para suas casas. Nos rostos e nas rodas de conversa, o misto de apreensão e entusiasmo era mais do que nítido. Demonstrando, por um lado, a consciência de que a semana será difícil; mas, por outro, a certeza de que não estarão sozinhos nesta batalha.