Fechou-se um ciclo, mas não o processo de enfrentamento dos palestinos contra o Estado sionista, racista e terrorista de Israel. O PSTU se orgulha de se posicionar frontalmente pela destruição de um Estado gendarme cuja vocação histórica tem sido a de servir aos interesses imperialistas, ainda que à custa de uma política genocida que atinge principalmente crianças, mulheres e idosos, como vimos nos acontecimentos sangrentos de fins de dezembro último e mais da metade do primeiro mês de 2009. Assim como não havia meio termo no embate frente ao nazi-fascismo, não há possibilidade de posição contemporizadora no que toca esse problema que não é do Oriente Médio, mas diz respeito a toda humanidade.

Isso pareceria um ponto pacífico, em particular depois da última investida criminosa do Estado de Israel. O fato produziu mobilizações no mundo inteiro, inclusive com manifestações em diversas cidades do Brasil. Não é, contudo, bem assim. Vimos nas praças e ruas, militantes do PCdoB, PT, PSOL, PCB, PSTU, dentre outros, em atividades unitárias contra os massacres levados a cabo pelas tropas do exército israelense. A unidade decorrente da condenação uníssona da política de terra arrasada dos sionistas não representou, decerto, um acordo estratégico sobre questão, mas um compromisso tático, quer dizer, um acerto concreto e bem delimitado. Isso se deu assim por uma questão bem simples: há diferentes apreciações das quais decorrem programas e estratégias fundamentalmente distintos.

Um estado que surgiu expelindo sangue e lama por todos os poros
O falecido intelectual palestino, Edward Said, sempre insistiu na necessidade de se examinar a origem do Estado sionista, quando “os palestinos nativos foram expulsos à força, suas vilas destruídas, sua terra, roubada; sua sociedade, erradicada”. Nessa mesma direção, Ralph Schoenman desmontou os mitos que servem de arrimo para os ideólogos do Estado racista, em especial o primeiro desses mitos, “o de uma terra sem povo para um povo sem terra”. Havia um povo e sua terra foi expropriada.

Na raiz das disputas atuais, há um crime original: a violenta expropriação dos palestinos que foi sendo ampliada ao longo do tempo. Reconhecer o Estado de Israel é reconhecer a usurpação do território da Palestina. De fato, a população roubada nunca aceitou o saque das suas terras, casas e demais riquezas. Por isso, depois da criação do Estado de Israel, por política dos EUA e das potências européias, sob o beneplácito de Stálin, no final dos anos 1940, diversos ciclos de luta colocaram em trincheiras opostas um povo expropriado e um enclave imperialista armado até os dentes.

Esse elemento está, portanto, assentado num aspecto histórico: a formação de uma máquina estatal artificial, militarista e confessadamente racista. Imaginar que é possível solucionar a grave questão palestina ignorando esse aspecto essencial é atirar às calendas gregas uma real solução para um drama que se arrasta deixando finíssimas partículas de sangue coaguladas pelo chão.

Nunca é demasiado lembrar: os sionistas que estiveram na base do banho de sangue com que se adubou a terra roubada dos palestinos não são os herdeiros das vítimas dos fornos crematórios nazistas, mas, inversamente, não deixaram de colaborar com os carrascos hitleristas, como enfatizou Schoenman (vide A história oculta do sionismo). Nesse sentido, não nos parece de todo correta a bela expressão de Said de que os palestinos são as “vítimas das vítimas”. Assim sendo, derrotar os sionistas é a única condição para se alcançar uma solução justa e adequada para a problemática palestina. Isso é assim, inclusive, porque o programa de massacres não terminou com a formação do Estado de Israel, como nos lembra Schoenman, mas se manteve e se aprofundou como testemunham as mais de 1.300 vítimas dos recentes morticínios.

Desse modo, há probabilidade de um desfecho favorável aos expropriados de ontem e de hoje sem desbaratar o Estado militarista, racista e assassino encravado no coração do Oriente Médio? A história tem demonstrado, em última análise, que essa probabilidade é de zero para um milhão. Essa é a base para definição programática de qualquer corrente política cuja linha de ação para região se proponha a ser consequentemente revolucionária. Eis o cerne da polêmica, que não é tática, mas estratégica, programática.

Dize-me o que fazer…
O PT saiu com uma nota, assinada pelo presidente nacional e o secretário de relações internacionais, condenando o ataque do Estado judeu e se solidarizando com os palestinos. De pronto, a nota foi atacada por uma nata de dirigentes petistas, como Mercadante, Marta Suplicy, Paul Singer e outros, numa lista de 36 cardeais. O centro dos postulados do “grupo dos 36” estava num pleito que os imperialismos europeus, em especial, sempre reivindicaram: a defesa da “coexistência pacífica de um Estado Palestino viável e próspero e de um Estado de Israel definitivamente seguro”. Esse pleito é, antes de tudo, dos sionistas, que querem a sua segurança que, a preço de ontem e de hoje, significa a multiplicação de cadáveres palestinos ou a paz silenciosa de escravos natimortos. Significa igualmente o reconhecimento da expropriação palestina, isto é, admitir a legitimidade das carnificinas do passado e do presente.

Valter Pomar, o secretário de relações internacionais do PT, responde ao grupo reacionário petista por meio de uma nova nota intitulada A nota certa. No texto, ele assinala que a nota de repúdio aos massacres de Gaza não implicava na negação do programa petista que, não custa lembrar, parte do pressuposto da política de dois Estados, política que, queiram ou não, leva água ao moinho da declaração de legitimidade da expropriação palestina.

Já o PCdoB adotou uma retórica de entono mais radical em relação ao aniquilamento da população civil de Gaza. Mas no sítio Vermelho, uma das suas principais lideranças, José Reinaldo Carvalho, secretário de relações internacionais do partido, se recusa a defender como centro do programa a luta pela destruição do Estado sionista, embora admita que este surgiu da usurpação do território Palestino. Toca no fundamento principal do problema, mas renuncia a retirar daí às conclusões fundamentais, notadamente à necessidade de restituir aos palestinos aquilo que lhes foi confiscado, objetivo que não será alcançado sem ações revolucionárias que levem à demolição da máquina de sacrifícios humanos do sionismo.

Por fim, o PSOL. Em discursos e textos, os militantes do partido de Heloísa Helena levantaram a bandeira de uma Palestina Laica, Democrática e Não Racista, fato que saudamos e com o qual comungamos ardorosamente. Chamou-nos atenção, todavia, um pequeno, mas decisivo detalhe. Novamente, a origem do deslize vem de um secretário de relações exteriores, no caso, Pedro Fuentes. Para ele, o “massacre sionista questionou globalmente a política de Israel. Mostrou o papel ineficaz e cúmplice da ONU. Atualizou a demanda da retirada de Israel dos territórios ocupados em 1967 e, estrategicamente, a consigna de uma Palestina laica, livre e democrática, sobretudo no território palestino”.

Toda formulação parece-nos, em princípio, lapidarmente justa, salvo por um pormenor: qual o significado essencial do termo “sobretudo no território palestino”? Tem o sentido de acolher a possibilidade de dois Estados, com uma Palestina “laica, livre e democrática” em Gaza e Cisjordânia, mantendo-se o Estado de Israel no “território histórico” usurpado aos palestinos no pós-guerra? Ou seja, uma Palestina circunscrita aos territórios arrebentados por Israel na Guerra dos Seis Dias, uma espécie de “miniestado”? Seria isso ou tudo não passaria, afinal, de um mal-entendido? Se tudo se resume a um mal-entendido, é hora, então, de elucidá-lo!

Que fazer?
A esquerda majoritária está frente uma encruzilhada: ou supera as suas cartas programáticas ou ignora a realidade. A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) surgiu sem reconhecer o Estado de Israel. No seu ato de criação, a OLP adotou uma Carta em que proclamava a luta armada contra o Estado judaico, não reconhecido por Arafat e seus correligionários. A capitulação dos anos 1990 marcou a crise da direção histórica dos palestinos, especialmente de Iasser Arafat. À época, Said se manifestou profeticamente: “A dificuldade adicional é que todos os seus possíveis sucessores são figuras menores, que provavelmente tornarão as coisas piores”. Sem dúvida, o papel nefasto e cúmplice cumprido por Mahmoud Abbas, líder do Fatah, herdeiro político de Arafat, ratifica o prognóstico do intelectual palestino.

Na base dessa capitulação, encontra-se exatamente a adoção pelas lideranças históricas do povo expropriado de um programa cujo eixo ordenador é a política dos dois Estados, ou seja, a consideração ou legitimação do Estado racista, militarista e teocrático de Israel. O caráter progressista do Hamas decorre da sua validação do ideário programático que serviu de suporte ao surgimento e fortalecimento da antiga OLP. Nada que implique em convalidar o seu projeto estratégico de permutar um Estado teocrático por outro. Mais do que nunca, é preciso levantar o velho e insubstituível programa fundado na defesa de um Estado Palestino laico, democrático e não-racista.

Isso tem um sentido: não corroborar com a expropriação histórica, com a invasão e a conquista sangrenta levada a termo pelos sionistas contra os palestinenses. Tem, no entanto, outra acepção: a convivência de diversos povos, independente das suas crenças e origens énticas. Obviamente, isso não está separado anos-luz da estratégia socialista, mas é parte dela, uma parte indissociável.

Assim, para a pergunta “o que fazer com o Estado colonial sionista”, só há uma resposta: a sua destruição. Os atalhos apenas nos levam a um ponto mais longínquo de uma sociedade definitivamente pós-sionista, portanto, laica, democrática e não-racista.

Isso não seria somente miragem? Ilusão? A matança em Gaza não é prova da impossibilidade de pensarmos estrategicamente a questão, exceto integrando a existência de Israel ao projeto do Estado Palestino? Pensamos precisamente o oposto. Apesar da máquina bélica israelense, a resistência palestina se revelou heróica, capaz de se projetar ainda que sob o cerco de um dos mais poderosos exércitos do planeta.

Num primeiro balanço, é possível rememorar Schoenman: “Apesar da repressão brutal, a moral palestina nunca esteve tão alta”. Quer dizer, a história ainda não deu a sua última palavra. Preparemo-nos para os próximos ciclos, afinados na tática, no programa e na estratégia. Essa é a base para uma política principista ao redor da Questão Palestina.