“Você está de acordo com o esboço da Constituição iraquiana?”, é a pergunta dirigida à população do Iraque. A farsa da democratização do país consiste em diversas etapas: “a passagem de poderes”, as eleições do começo de ano, a constituição em tempos de guerra e, por fim, eleições. O próprio Direito Internacional reconhece que toda e qualquer instituição surgida como produto de uma “ocupação ilegal” – expressão usado pelo próprio Kofi Annan, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) – torna-se, subseqüentemente, ilegal, carecendo de qualquer legitimidade jurídica e política.

Projeto Constitucional: dois passos atrás
O “Texto para a República do Iraque” foi o esboço-proposta de constituição provisória submetido a referendo. O rascunho constitucional, distribuído uma semana antes, foi subvencionado pela ONU, que se encarregou da impressão (U$ 25 milhões). As mais de cinco milhões de cópias (em árabe, curdo, turcomeno e siríaco), chegaram com lentidão e escassez aos seus destinatários. Trata-se de um texto regressivo que, de maneira definitiva, impõe no Iraque uma nova forma de organização política, econômica e social baseada na fragmentação étnica e religiosa, acabando assim com o princípio da indivisibilidade iraquiana. O projeto constitucional redefine o Estado iraquiano como um Estado “islâmico” – e não mais “árabe” – e reconhece no Islã “a fonte básica de legislação” até o ponto em que “nenhuma lei que contradiga as regras estabelecidas pelo Islã poderá ser aprovada” (Art. 2.1).

“A conquista mais importante desta constituição é ter sentado as bases para o estabelecimento de uma estrutura federal no Iraque”, defende Wael Abdel Latif, um de seus redatores xiitas. “Esta fórmula política supõe a destruição do Iraque como país”, discrepa – no entanto – o sunita Samir Abdalá. O líder xiita, aiatolá Alí-Sistani, instou os iraquianos a acudirem “massivamente” a votar pelo “sim” no referendo. Inclusive os sunitas que o respaldavam – Partido Islâmico e Mutamar Ahl-al-Sunna – acreditam poder mudar pontos básicos através do mecanismo de revisão incorporado recentemente.

A nova constituição não reconhece à população sequer os direitos sociais e econômicos fundamentais. A liberdade de expressão somente será garantida “enquanto não viole a ordem pública e a moralidade”. Como saber o que entendem por moral os clérigos mais conservadores, que gozam de repercussão social nunca antes vista no país? A Constituição é uma severa restrição à liberdade, à soberania e aos direitos democráticos no Iraque enquanto que, simultaneamente, assegura os interesses econômicos, políticos e militares daqueles que apoiaram a ocupação. Junto com a ambigüidade dos artigos 110 e 111, que favorecerá a gestão local das rendas geradas pelo petróleo e gás e os desequilíbrios territoriais, o Iraque se configuraria em um Estado federal, que antecipa a fragmentação do país segundo critérios étnicos, sectários e confessionais, detrás dos quais estão os interesses imperialistas que – como bem se sabe – “cheiram a petróleo”. Além do Curdistão, outras províncias poderão constituir-se como “regiões autônomas”, com sua própria legislação e deveres, inclusive em matéria de impostos e controle das rendas geradas pela extração de petróleo (Art. 108).

Descentralização
Esse modelo de federação satisfaz a postura xiita, que pretende controlar até sete províncias do centro e do sul do Iraque e seus recursos petrolíferos. É por isso que esse projeto afeta diretamente os interesses da comunidade árabe sunita, que defende a campanha pelo “não”, considerando que o texto é o primeiro passo para o desmembramento físico do país. Na verdade, longe estabelecer o direito à autodeterminação dos curdos, a divisão atende a interesses imperialistas.

No fim de semana passado, após uma reunião na mesquita Umm al-Qora, 21 organizações sunitas encabeçadas pelo poderoso Conselho de Ulemás, o partido Islâmico do Iraque e pelo Conselho de Diálogo Nacional, emitiram um comunicado que estabelece que “Essa constituição tem no seu bojo os germes para a divisão do Iraque, para a perda de sua identidade árabe e para a expoliação de suas riquezas nacionais”. Os sunitas esperam que pelo menos 51% do eleitorado se expresse negativamente ao rascunho constitucional e esperam também obter o apoio de cinco milhões de pessoas das quatro regiões em que são maioria – Nínive, Anbar, Salaadim e Bagdá – juntas, elas têm 25% da população do país.

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