Há alguns dias, cineastas de renome cobraram do governo a retirada de toda exigência para que as estatais dessem dinheiro para projetos culturais. E conseguiram! O governo recuou. Mas isso não vai resolver o problema do dirigismo culturalAlém do dinheiro do patrocínio sair do bolso da população trabalhadora, porque gera isenção fiscal, o processo de transferência do financiamento da arte das mãos do Estado para a iniciativa privada está colocando a cultura brasileira nas mãos das multinacionais que dominam a economia. Frente ao acelerado processo de recolonização, as grandes corporações têm financiado uma parte importante dos projetos culturais, usando a cultura brasileira para atentar contra os interesses da própria população.

Por isso, quando se fala em toda liberdade em arte, é preciso perguntar: mas qual liberdade? A liberdade do capital financeiro internacional de pôr e dispor de nossa arte? Ainda se pode falar em uma “cultura brasileira”? Hoje ela está totalmente à mercê de um sistema imperialista de dominação, contra o qual os trabalhadores, em especial, os artistas, têm pouco poder de fogo.

Em Marketing Cultural e Financiamento da Cultura, Ana Carla Reis cita casos de multinacionais que já ocuparam a nossa cultura. A IBM lançou em 1983 o projeto Encontro Marcado com a Arte, que levava escritores às universidades para falar aos alunos. Ao mesmo tempo, começou a patrocinar projetos em teatro, dança e música, como o Balé Bolshoi, Jazz de Montreal e All Star Gala. Em 1997, montou um estúdio para transmitir Gilberto Gil cantando ao vivo pela internet. Em 1999 implementou o Novo Canto, no qual artistas renomados cantavam com um novo talento, associando a marca à inovação.
O BankBoston promove turnês de orquestras internacionais pelas praças de interesse do banco. A Fiat desde 1997 mantém o programa Fiat para os Jovens, reforçando a imagem de jovialidade da empresa e de seus produtos. Investe sobretudo em sessões de cinema nas escolas, com o sugestivo nome de Retratos do Brasil.

A Fundação Ford patrocina as artes e projetos educacionais, visando “identificar-se com a comunidade”. A Shell está no país há 78 anos e há 50 atua na área cultural. “Esse casamento com a atividade artística produz resultados incontestáveis. Não que a Shell dependa desse tipo de iniciativa para vender seus produtos, mas, como qualquer empresa, ela precisa ser bem vista, ter uma imagem simpática”. (João Madeira, Gerente de Comunicação da Shell, in op.cit.).

A Philips adota o marketing cultural para construir sua imagem e evitar que a concorrência o faça. Já nos anos 70, diante da pressão das indústrias japonesas no mercado de eletrônicos, começou a investir pesado no consumidor mais jovem. Em 1985, começou a patrocinar o grupo Dire Straits, de grande popularidade entre os adolescentes, e lançou o CD-player. No Brasil, patrocina artistas como Antonio Nóbrega e eventos como a Paixão de Cristo, de Nova Jerusalém (PE).

A privatização da telefonia trouxe a Telefonica, que só em 1999 investiu R$ 5 milhões em projetos culturais e em pouco tempo se tornou conhecida, patrocinando exposições de grande potencial de mídia, como Picasso e Barceló. Foi o caso também do Santander, que comprou o Banco Geral do Comércio, o Banco do Nordeste, o Meridional e 60% das ações do Banespa e em 2001 fundou o Santander Cultural.
Aí a cultura ajudou a viabilizar a apropriação de empresas estatais brasileiras, que deixou milhares de trabalhadores na rua e outros com salários miseráveis. Por ironia, essas mazelas advindas da privatização são as que impedem ainda mais o acesso da população trabalhadora à arte.

O idioma, os valores, as crenças, os comportamentos, tudo o que forma a essência distintiva de uma cultura, oferece margem de manobra à diferenciação dos produtos. Em seu livro, Ana Carla Fonseca cita o caso do restaurante brasileiro Favela Chic, em Paris, que causa furor com uma ambientação rica em contrastes brasileiros, mesclando representações religiosas e sociais com música ao vivo e pratos típicos.

O fator de diferenciação mais eficiente entre marcas é a emoção que cada produto gera no consumidor. E a cultura é inesgotável fonte geradora de emoção, empatia, identificação. “Ao patrocinar apresentações folclóricas, editar exposições e catálogo de fotos ou associar seus valores aos da música, as empresas transpõem fronteiras de resistências, porque não lidam com a dimensão racional do consumidor e sim com sua experimentação e vivência de uma sintonia emocional”, diz Carla Fonseca.

O diretor de Comunicação da Odebrecht confirma: “Temos absoluta consciência de que há um fenômeno de transferência de valores que o projeto cultural carrega para o seu patrocinador. Para as pessoas que vão assistir a um belo espetáculo ou que recebem um bonito livro aquilo significa prazer, cultura, uma certa alegria de fruir aquela beleza. Essa pessoa tende a transferir esse sentimento positivo para quem patrocinou e isso é imagem institucional que se constrói”.

Como quem põe o dinheiro, manda, não é difícil ver gerentes de empresas opinando e decidindo sobre arte, rejeitando temas controversos ou interferindo em cenas de peças, forrando o espaço de uma exposição com logotipos e veiculando longos comerciais antes de uma peça teatral ou filme.

Post author Cecília Toledo,
de São Paulo (SP)
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