Otávio Calegari Jorge é estudante da Unicamp e militante do PSTU. Estava no Haiti no momento do terremoto que devastou a capital, Porto Príncipe. Pôde testemunhar a destruição do desastre, como também a incrível solidariedade do povo haitiano e o verdadeiEstive no Haiti junto a um grupo de estudantes, uma fotógrafa e um professor da Universidade Estadual de Campinas, desde o dia 3 de janeiro. O projeto de pesquisa que visávamos desenvolver englobaria diversos aspectos da realidade haitiana, dentre eles, as percepções da população acerca da ocupação militar da Minustah, liderada pelo Brasil.

Infelizmente, fomos surpreendidos pelo terremoto do dia 12, o que nos fez reavaliar nossa permanência no país, bem como o próprio papel que poderíamos cumprir através da denúncia sistemática dos recentes acontecimentos.

Ocupação e a solidariedade popular
O terremoto, mais do que uma catástrofe natural, foi a explicitação mais brutal de uma catástrofe social já em andamento no Haiti. A situação pela qual passamos após o dia 12 nos revelou, sem qualquer máscara, diversos aspectos do momento pelo qual passa o Haiti hoje.

A ocupação da ONU se mostrou totalmente fracassada. O já frágil Estado haitiano literalmente desmoronou. Com ele foram os maiores prédios das Nações Unidas, tanto civis quanto militares.

O que pudemos presenciar nos quatro dias após o terremoto, antes de deixarmos o Haiti, foi uma solidariedade invejável do povo haitiano e uma ausência completa dos militares e civis da Minustah.

Caminhar pela Champ de Mars, principal praça de Porto Príncipe, nos dias posteriores ao terremoto, nos mostrou a realidade nua e crua. Enquanto víamos na mídia internacional que milhões de dólares seriam doados para ajudar os haitianos, o que pudemos presenciar foi uma cidade extremamente destruída, mas extremamente viva.

As praças que cercam o Palácio Central se transformaram em imensos campos de refugiados. Milhares de pessoas se aglomeravam, e ainda se aglomeram, em todos os lugares onde não haja prédios ou casas por perto. O mais incrível, no entanto, foi a organização popular. O “chien jambe” – comércio informal de comida nas ruas – se mostrou o único meio de acesso dos haitianos que haviam perdido suas casas, bem como seus parentes e amigos, à comida.

Os únicos caminhões que matavam a sede das pessoas eram caminhões da iniciativa privada, provavelmente liderados pelos próprios motoristas, que distribuíam água a filas imensas. Também a organização para retirar escombros e resgatar pessoas se deu de maneira muito rápida, apesar da precariedade dos instrumentos. Pudemos ver, em várias horas de caminhada durante os dias seguintes ao terremoto, apenas algumas poucas retro-escavadeiras e alguns caminhões para remover os corpos que se acumulavam pelas ruas de Porto Príncipe. A ONU simplesmente desapareceu.

Na verdade, não desapareceu. A Minustah estava totalmente empenhada em resgatar seus próprios militares e civis, bem como remover os escombros do Hotel Montana, onde se hospedavam ricos hóspedes estrangeiros. Os haitianos ajudam os haitianos, a ONU ajuda a ONU, esta tem sido a regra.

Descaso da “comunidade internacional”
A ajuda internacional, tão propagandeada por todos os lados, não chega. Como disse um haitiano ao jornal El País, da República Dominicana, a ajuda “não se vê, não se come e não se bebe, só se escuta”.

Os problemas físicos de Porto Príncipe, que até agora servem de argumento para a demora na chegada de ajuda, escondem o verdadeiro aspecto do problema. Infelizmente, não se tratam de problemas de logística, como querem propagandear os organismos internacionais, mas de um total descaso com a população haitiana. Em nenhum momento foram consultados os próprios haitianos, que colocam a cidade em movimento, sobre a maneira como deveria ser organizada a chegada de alimentos, remédios ou água.

O que se vê é justamente o contrário. Não só os alimentos estão encarcerados no aeroporto e as dezenas de carros e caminhões da Minustah estão parados nos batalhões, como há uma predisposição clara em priorizar o envio de militares para “garantir a segurança” da distribuição.

Os casos de saques e violência, até o momento em que permanecemos em Porto Príncipe, eram extremamente localizados. E mais, eram pais e mães de família que estavam tentando resgatar o que fosse possível dos supermercados destruídos. A Polícia Nacional Haitiana, frágil e pequena, tem cumprido bem o seu papel – resguardar as lojas e supermercados, mesmo os destruídos, do povo faminto.

A violência, como se daria em qualquer país do mundo, tende a aumentar. A causa desse aumento, no entanto, se dá pela falta rápida de socorro. Quanto mais tempo demorar, mais o povo se rebelará. Os Estados Unidos já perceberam isso, assim como a ONU e o Brasil. Milhares de mortos a mais, para a “comunidade internacional”, não são importantes, afinal, são negros, pobres e rebeldes. O importante é decidir quem controlará, através do maior e mais potente efetivo militar, o futuro dos haitianos que sobrarão.

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