Cena do protesto desse dia 4
Luiz Gustavo

Leia o relato do correspondente do PSTU no Cairo sobre o Dia da PartidaO imperialismo norte-americano orgulha-se de seu Dia D na II Guerra Mundial, em geral omitindo que só tomou a decisão de antecipar o ataque junto ao aliado inglês quando viu que as tropas russas começavam a avançar em território centro-europeu. Hoje o dia também tem uma letra, mas é outra, e traduz outros tempos. É o Dia da Partida. E não se deu em um canal gelado de águas turbulentas, mas às beiras tranquilas do Nilo.

Dia santo no calendário muçulmano, a sexta é um dia tradicional de protestos depois das rezas próximas ao meio-dia. Isso porque uma parte importante da identidade do islamismo é a Ummah, o sentimento de união da comunidade muçulmana. Dessa forma, se os muçulmanos sentem sua comunidade ameaçada, o dia da semana preferido para denunciá-lo é sempre a sexta.

Na de hoje, o sentimento de união não era apenas muçulmano, mas cristão. Toda a gente conheceu as imagens em que cristãos protegiam os muçulmanos na hora do salat, a reza. Mas poucos divulgaram a palavra de ordem “Muçulmano, cristão, uma só mão!”, que simboliza melhor ainda o sentido dessa união: a disposição unida para a resistência.

No Dia da Partida, havia uma única mão, mas no mínimo dois milhões de braços na praça Tahrir – organizadores chegaram a contar 3 milhões de pessoas, o que é possível se considerarmos a intensa movimentação ao longo do dia. Tinham todas as caras, todas as formas: alguns com turbantes surrados, outros com chapéu, alguns com capacete de operário e ainda os com taqiyahs, os quipás muçulmanos, limpíssimos; uns com barbas longas, malfeitas, raspadas; usando suéteres, macacões, casacos ou abayads, uma espécie de robe masculino; portando hijabs, o véu, niqabs, faixas de lã e seda, e cabeleiras à Amy. Mas o único propósito de virar a história do Egito. E do mundo árabe. Por que não, do mundo todo! Era isso que se lia por trás de todos os olhos quando afoitos me perguntavam a nacionalidade, logo antes da inescapável referência ao Ronaldo.

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Moaz, um jovem metaleiro responsável por receber os estrangeiros na barricada de uma das entradas e cuja mão enfaixada eu apertei com força esquecendo que estava entre resistentes acidentados, me explica como funciona a organização da praça. Compreendo logo a necessidade de pedir RG e revistar as pessoas que entram (com extremo zelo e repetidas vezes nos vários cordões de controle), um aprendizado tomado após hordas de cavaleiros e cameleiros darem cargas de cavalaria sobre a multidão na quarta-feira passada – as primeiras cenas da barbárie de Mubarak que chocaram o mundo. Pergunto ao fã de Led Zepellin se o aprendizado continuará depois de Mubarak, e ele me ensina que “a organização vai continuar, o povo é que tem que governar”. Algumas horas depois de eu entrar, um grupo de duzentos apoiadores de Mubarak tentou se aproximar daquela via para arremessar pedras nos manifestantes, e a comissão liderada por Moaz os empurrou de volta três quadras para trás, e dessa vez foi formando barricadas e piquetes de homens em cada linha de defesa.

O destacamento de Moaz engolfava um tanque do exército com quatro soldados que balançavam os pés, acenavam aos seguranças e fumavam despachados. Portanto, já não se podia dizer que esse tanque, especificamente, guardava a entrada contra as gangues, mas bem o contrário: eram os manifestantes democráticos que guarneciam a guarnição. Mais tarde, vi um círculo de homens de meia idade ensinando sabedorias da vida úteis na política para soldados que não conseguiam disfarçar o interesse. Intrigado, perguntei a Abdul Rahman, funcionário antigo da Egyptian Air e manifestante treinado em línguas latinas, o que o exército ganharia com a queda de Mubarak: “quando ele cair, todos ficaremos felizes. Todas as famílias, incluindo a do militares, têm um ou dois desempregados”. Mas logo enfatiza, sobre o novo poder: “No más militares”. Já Mohammed, um engenheiro civil desempregado de 30 anos, chega à mesma conclusão por outros caminhos: “Eles não vão ajudar o povo, mas estão esperando o povo derrubar Mubarak”. Um boneco pendurado pelo pescoço no alto de um poste da praça Tahrir, no entanto, mostra que o povo não quer derrubar Mubarak, mas içá-lo.

O exército é o elemento-chave da situação, enquanto a mobilização continuar forte e seu ímpeto destroçar a vã alternativa hooligan de Mubarak e seus policiais. Com a crise aberta, os altos oficiais sabem que não podem obedecer um governante em descrédito ensandecido, pois afogar os manifestantes em banho de sangue mancharia a imagem da instituição em nome de um ditador com dias contados – embora um passado nasserista tenha incluído repressão violenta a protestos comunistas. E, mais ainda, sabem que não devem exigir de seus oficiais de baixa patente e soldados que se voltem contra a massa que os acolheu, requisitou e agradeceu na autodefesa contra uma polícia sanguinária e corrupta.

Afinal, na cabeça dos jovens soldados deve estar bem marcada a principal palavra de ordem de hoje: “Erhal”. Significando em árabe algo como “Fora”, percorria em ondas as massas agrupadas em Tahrir. Espalhados em vários pontos de concentração para discursos ou atarefados nas várias comissões (segurança, provisões alimentícias, atendimento médico), ao ouvir a onda Erhal todos erguem os braços, gritam, agitam os ânimos e relembram, afinal, por que estão ali.

Estão ali, no dia P, para dar adeus ao déspota e boas-vindas ao espírito revolucionário.

Thawra hatta an-nasr! (revolução até a vitoria!)

Luiz Gustavo é historiador, pesquisa a causa palestina e a luta do povo árabe, e viveu no Líbano e outros países da região. Luiz é militante do PSTU e da LIT-QI e está no Egito desde o dia 2, como enviado especial do jornal Opinião Socialista. A cobertura será feita através de textos e conversas por telefone, disponíveis no portal do PSTU e no blog http://umbrasileironoegito.wordpress.com. Além disso, pequenos informes serão enviados pelo twitter, na conta @diretodoEgito.
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