A imprensa mundial anunciou nesta semana, com ares de “indignação”, a aprovação, na Dinamarca, de uma lei que permite às autoridades do país confiscar, ainda na fronteira, dinheiro e objetos de valor (de jóias e relógios a computadores e celulares) de qualquer refugiado ou imigrante que pretenda se instalar no país.

Tendo recebido o mórbido apelido de “Lei da joalheria”, o decreto estabelece que qualquer valor acima de 10 mil coroas dinamarquesas (cerca de R$ 6 mil) poderá ser “confiscado” do imigrante para custear gastos com sua própria alimentação, saúde e alojamento.

A cruel medida ainda estabelece que apenas os bens de “valor sentimental” (como alianças de casamento, porta retratos etc.) serão poupados do roubo oficializado e estatal e a justificativa parte de um princípio tão criminoso quanto: algo semelhante já acontece em relação aos desempregados do país e também, há tempos, na Suíça e em várias cidades alemãs.

Se isto não bastasse, os refugiados terão que esperar três anos, depois da aprovação do refúgio, para ter o “direito” de reunir a família (o que pode levar anos e, ainda, tem que ser custeado pelo próprio refugiado).

Comparar a lei com o confisco promovido pelo nazismo em relação a todos e todas que foram massacrados nos campos de concentração (particularmente judeus, mas, também, comunistas, LGBT’s, ciganos etc.) é inevitável. Como também é impossível não lembrar do tráfico negreiro durante a escravidão, quando homens e mulheres eram separados de suas famílias, e de toda a legislação do apartheid que vigorou na África do Sul.

Contudo, apesar do certo alarde promovido pela imprensa, governos ditos “democráticos” e entidades humanitárias, ninguém tem utilizado o verdadeiro nome que deve ser dado a este tipo de medida: um nefasto crime contra a humanidade, cometido em nome dos lucros da burguesia mundial.

O fundo de um poço cavado pelo neoliberalismo
Semelhanças com nazistas e fascistas à parte, a lei aprovada na Dinamarca (como umas tantas outras medidas Europa afora), não têm por trás regimes totalitários. Pelo contrário. Estamos falando da velha e “clássica” burguesia e seus partidos “democráticos”, cujas fronteiras entre “esquerda” e “direita” são sempre flexíveis quando se tratam de medidas contra o povo pobre.

A lei dinamarquesa, por exemplo, partiu de uma proposta do Partido Liberal que governa o país em aliança com o Partido do Povo Dinamarquês (DF, de extrema-direita), mas teve o apoio de quase toda a “oposição”, o que resultou na aprovação por 81 votos a 27, com uma abstenção e 70 ausências (ou seja, covardes que deixaram para os outros o trabalho sujo).

Numa declaração que dispensa comentários, o primeiro-ministro Lars Rasmussen chamou a medida de “a lei mais mal compreendida da história da Dinamarca” e disse que os imigrantes não estariam fazendo nada mais do que dar sua contribuição para o “generoso estado de bem-estar social” que vigora no país.

Diante da péssima repercussão da votação, a Anistia Internacional emitiu um comunicado afirmando que a lei aprovada na Dinamarca é um “deplorável salto em direção ao fundo do poço”, dado como resposta à crise de imigração. Já o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a qualificou como uma “afronta à dignidade dos refugiados”. Tom semelhante foi utilizado por “democratas” e a “imprensa livre” mundo a afora. Quase todos eles se referindo à lei como um “muro financeiro”  contra a imigração.  

Ou seja, hipocrisia em cima de hipocrisia. Pra começar, são estes mesmos senhores que, dia a após dia, aprovam, implementam e propagandeiam, com unhas e dentes, os planos neoliberais. E, segundo, se é verdade que o decreto fascista aprovado pelo parlamento dinamarquês é um obstáculo asqueroso e cruel para a entrada no país, ele está longe de ser o verdadeiro “muro” que, hoje, empareda imigrantes e refugiados na miséria, na fome, no cemitério aquático em que o Mediterrâneo foi transformado e em condições de vida subumanas. É apenas mais um “tijolo em um muro”, parafraseando a famosa música do Pink Floyd, que está sendo erguido há séculos.

A partir dos anos 1500, para acumular capital para seu projeto de poder, a burguesia não mediu esforços para abarrotar navios negreiros, fatiar e saquear os territórios colonizados. Nos séculos seguintes, suas promessas de “igualdade, liberdade e fraternidade” foram pisoteadas pela sua própria ganância e nunca foram mais do que ilusões para o povo trabalhador, particularmente os  não-brancos.

Agora, mergulhados em uma crise descomunal e sem fim, os herdeiros dos traficantes de escravos, imperialistas e senhores de engenho, ao mesmo tempo em que são os diretamente responsáveis pelas guerras, miséria e fome que provocam o deslocamento forçado de milhões, não só dão as costas para seus sofrimentos como os expõem a tratamentos e medidas cada vez mais humilhantes e desumanas.

E vale lembrar que a crise do sistema, que tem sido utilizada como justificativa para as barbáries e atrocidades que estão acontecendo, só tem pesado sobre as costas já massacradas da população pobre, como foi destacado em uma pesquisa da ONG britânica Oxfam, publicada em janeiro de 2015.

Segundo a entidade, os recursos acumulados pelo 1% mais rico do planeta chegarão, em 2016, a 50% da riqueza mundial. Em 2014, o índice já havia subido para 48% (era de 44%, em 2009), deixando os demais 99% da humanidade com 52%das riquezas mundiais. Mas, também dentre estes, a desigualdade corria solta: 46% desta fatia estavam nas mãos de cerca de 20% da população.

Em termos concretos, isto significa que, em 2014, a gigantesca maioria da população mundial não tinha acesso a mais de 5,5% dos recursos mundiais, tendo, em média, uma renda anual individual de cerca de R$ 10.000 (o que equivale, por mês, a algo muito próximo de nosso atual salário mínimo, R$ 830). Enquanto isto, para o 1% mais rico, a renda média anual era de nada menos do que R$ 7 milhões.

É exatamente esta gentalha que vive com cerca de R$ 600 mil reais por mês (e seus comparsas e parceiros menores, que, no governos e parlamentos, se satisfazem com suas gordas migalhas) que está empurrando a humanidade para o fundo do poço. Com a mesma ferocidade com que ergue muros para garantir seus interesses.

As vergonhosas portas, cercas e muros do apartheid
Em um mundo como este e, particularmente, depois do aprofundamento crise, em 2008, não é de se estranhar que mais e mais gente esteja sendo forçada a procurar por condições de vida minimamente decentes onde quer que seja. Os deslocamentos forçados que estão por trás da “crise migratória” (a maior desde a II Guerra) são apenas mais um fruto podre que brota deste abismo social.

Hoje, segundo a agência de refugiados da ONU, existem mais de 60 milhões de pessoas que fugiram de seu locais de moradia devido a conflitos, violações dos direitos humanos, opressão (racial, LGBTfóbica, machista etc.) e perseguições políticas. A maioria é da Síria (de onde mais de 12 milhões de pessoas foram expulsas) e a quase totalidade “não-branca”, proveniente de países como Afeganistão, Iraque, Somália, Sudão, República Democrática do Congo, Senegal e vários outras mações africanas, latinas e caribenhas, com destaque para o Haiti.

Enquanto este número não para de crescer (somente em 2015, um milhão de pessoas pediram asilo na Europa), também se intensificam as medidas fascitóides adotadas pelos governos europeus. Também essa semana, o governo da cidade Middlesbrough, no noroeste da Inglaterra, foi obrigado a reverter, depois de muita pressão, outra prática que tem tudo a ver com os métodos do partido nazista: “as portas vermelhas do apartheid”, nome dado em referência à cor que estava sendo utilizada para pintar a entrada das casas em que imigrantes e refugiados foram alojados.

A medida, diga-se de passagem, tem sido (e continua sendo) adotada em outras cidades do Reino Unido e, também, não é a única que nos remete ao nazismo. Há pouco mais de uma semana o governo britânico teve que recuar na imposição de que todos imigrantes usassem uma fluorescente pulseira avermelhada como pré-requisito para ter acesso às refeições diárias.

Na cidade das “portas vermelhas” como, com certeza, já se esperava, as casas se transformaram em alvos permanentes de ataques xenófobos e racistas por parte da população, cuja discriminação, apesar de injustificável, também têm origem em uma situação criada pela burguesia neoliberal: o colapso e fechamento da maioria das empresas siderúrgicas que ofereciam empregos para os moradores da região.

Exatamente para conter mobilizações e rebeliões, que também tem pipocado continente afora, a burguesia tem apostado, como sempre, na divisão da juventude e dos trabalhadores através de práticas e ideologias discriminatórias, como a xenofobia (o ódio aos estrangeiros), o racismo, o machismo, a LGBTfobia etc. Muitas delas semelhantes ou (se é possível dizer) piores do que as votadas na Dinamarca.

Os muros da vergonha que caracterizam países com práticas de apartheid (que quer dizer, literalmente, separação), como as que existiram na África e sobrevivem em Israel, tem se proliferado pela Europa. Não faltam exemplos. 

Desde 2012, a fronteira da Grécia com a Turquia está fechada por uma cerca de arame farpado de 11 quilômetros de extensão e quatro metros de altura (construída em parceria com a União Européia, ao custo de US$ 6 milhões). Desde então, barreiras semelhantes foram erguidas por toda Europa, como, por exemplo, na Bulgária (32 Km, na fronteira da Turquia), na Macedônia (4Km, na divisa com a Grécia) e na Hungria (175Km, ao longo da fronteira da Sérvia, e outros 40Km, na divisa com a Croácia).

Em menor ou maior escala, restrições legais, verdadeiros campos de concentração, postos de controle e forte presença militar têm proliferado por todo o continente, questionando, de forma nada irônica, a tão alardeada “globalização” defendida pelos neoliberais. Medidas que em muito servem para alimentar  xenofobia que, com freqüência cada vez mais lamentável, tem explodido na forma de assassinatos, espaçamentos, estupros e ataques generalizados a imigrantes e refugiados.

Ninguém é ilegal! Pelo fim dos muros e fronteiras!
Contudo, para além da indignação ensaiada de governantes, autoridades mundiais e da mídia que os representam, a lei aprovada na Dinamarca provocou um forte repúdio por parte de trabalhadores e jovens mundo afora. Um repúdio que pode (e deve) ser transformado em ações que barrem estes absurdos. Algo que já ocorreu em situações anteriores e tem que se intensificar. Essa é a única saída possível diante do aumento dos ataques.

Em outubro de 2014, por exemplo, diante da convocação de um ato fascista anti-imigrantes (que reuniu 20 mil pessoas), os trabalhadores e a juventude de Dresden, na Alemanha, colocaram um número semelhante de pessoas na rua. Em agosto passado, cerca de 30 mil austríacos marcharam pelas ruas de Viena em protesto contra a descoberta dos corpos de 71 refugiados que foram abandonados para morrer dentro de um caminhão. Europa afora, atos, protestos e ações de solidariedade também se multiplicam.

É verdade que, como no caso da Dinamarca, também cresce o apoio popular às medidas xenófobas. Algo que, inegavelmente, se intensificou depois do atentado em Paris e outras ações do Estado Islâmico e organizações semelhantes. Pressionados pelos efeitos da crise, alimentados pelo medo e manipulados pela ideologia xenófoba, são muitos os que não veem outra alternativa senão se voltar contra os refugiados e imigrantes.

E este é um dos principais desafios que tem que ser encarado. A divisão dos trabalhadores e da juventude só joga a favor daqueles que lucram com o sofrimento dos refugiados e imigrantes ao mesmo tempo em que facilita a superexploração de todo mundo, intensificando ainda mais a xenofobia.

Um círculo vicioso que jamais poderá ser interrompido por muros e restrições. Muito menos por partidos como o Syriza que, ao mesmo tempo em que semeia ilusões em reformas, também levanta muros, físicos e políticos, para barrar aqueles e aquelas que procuram refúgio e condições decentes de vida.

Como já foi escrito por Frantz Fanon (psiquiatra e escritor marxista e militante da Revolução Argelina), em “Os condenados da Terra” (1961), “O racismo burguês ocidental com relação ao negro e ao árabe é um racismo de desprezo; é um racismo que minimiza (…). O racismo da jovem burguesia nacional é um racismo de defesa, um racismo baseado no medo”.

Um racismo que, desdobrado em xenofobia, só pode deixar de existir quando esta mesma burguesia for arrancada do poder. Um desprezo em relação à própria humanidade que só terá fim quando construirmos um mundo socialista que varra as fronteiras juntamente com a exploração e a opressão que elas ajudam a garantir.