Além de não garantir liberdade de expressão ou privacidade, lei obriga provedores a guardarem registros de acesso

A presidente Dilma Roussef sancionou nesse dia 23 de abril o tão aguardado Marco Civil da Internet, um dia após ter passado pelo Senado. De forma calculada, anúncio da sanção presidencial à Lei 12.965/2014, que pretende ser uma espécie de “Constituição da Internet”, ocorreu durante o evento NETMundial (Encontro Global Multissetorial sobre o Futuro da Governança da Internet), que reunia participantes de vários países.

Defendido por movimentos de democratização da mídia e partidos políticos como o Psol e o próprio PT, o projeto do Marco Civil é alardeado como o grande garantidor da democracia, transparência e privacidade na rede. De olho nas eleições e num amplo eleitorado jovem antenado nas redes sociais, o governo destacou o projeto e afirmou que ele, nas palavras da própria Dilma, “assegura a liberdade de expressão, a privacidade do indivíduo e o respeito aos direitos humanos“.

Um dos principais pontos do Marco Civil é o chamado princípio da neutralidade da rede. Ou seja, a proibição de que um provedor de Internet cobre serviços diferenciados de acesso à rede, dependendo do conteúdo acessado. O princípio da neutralidade impediria que as teleoperadoras oferecessem serviços diferenciados dependendo do que você acessasse como, por exemplo, um plano básico de acesso à Internet só para emails, redes sociais, etc.

Essa medida polêmica sofria resistência das grandes empresas de telecomunicações e era, por outro lado, defendida pelas chamadas empresas de conteúdo, como o Netflix (serviço que oferece vídeos onlilne) ou o próprio Google, dono do Youtube. São empresas que disponibilizam serviços de vídeo e que necessitam de um grande fluxo de dados. Uma briga, portanto, entre as empresas de infraestrutura e de conteúdo.

Limites
Em trâmite há pelo menos três anos no Congresso, o Marco Civil foi agilizado após o escândalo de espionagem dos EUA revelado pelo ex-técnico da CIA, Edward Snowden. Os movimentos que realizaram campanha em defesa do projeto alegam que ele não é do governo, mas da “sociedade civil”, formulado a partir de audiências e consultas públicas. No entanto, é difícil sustentar que esse projeto, relatado pelo deputado Alessandro Molon (PT-RJ), não seja do governo. É do governo e contou com a defesa incondicional do ministro Paulo Bernardo e o apoio de uma ampla gama de partidos, tanto da base aliada quanto da oposição de direita. Com exceção do PPS, foi aprovado por praticamente todos os partidos.

E por que o Marco Civil contou com apoio tão ecumênico, incluindo editorial a favor do jornal O Globo? Porque ele não passa de uma carta de boas intenções e, na prática, não garante o que promete. Apesar de defender a privacidade dos dados e a liberdade de expressão, num espaço dominado por grandes multinacionais como o Google, não há a menor garantia que isso de fato ocorra. Da mesma forma, não se contrapõe ao oligopólio das grandes teleoperadoras, o que poderia democratizar o acesso à Internet. Nem mesmo a tão alardeada neutralidade está garantida e as teles já anunciaram que o texto, da forma como foi aprovado, abre brecha para a cobrança de serviços diferenciados.

Em relação ao principal fato que provocou a aprovação do projeto, a espionagem norte-americana a milhões de brasileiros, incluindo a própria presidente, a lei faz pouco ou nenhum efeito. Isso só se pode combater através de medidas políticas, como a ruptura de laços diplomáticos e, tecnicamente, com pesados investimentos em infraestrutura. Algo que o governo, evidentemente, não está disposto a fazer.

Além de não garantir esses princípios, o Marco Civil ainda obriga os provedores de Internet a armazenarem os dados de conexão por no mínimo seis meses. Ou seja, durante esse período as empresas sediadas no Brasil terão o registro de acesso de todos os usuários, e serão obrigadas a fornecê-lo às autoridades se requisitadas. Num período de escalada de repressão e criminalização crescente dos movimentos sociais, quando ativistas são indiciados por apenas “curtirem” uma página no Facebook, não é difícil prever a quem servirá isso.

LEIA MAIS
Marco Civil da Internet: Comunicação como direito ou mercadoria?