A presidente Dilma e o dirigente cubano Raul Castro

Desde o início do ano, jornais do mundo todo vem publicando notícias a respeito da “nova situação econômica” e das “novas medidas políticas” aplicadas por Raúl Castro em Cuba. Medidas tais como a liberação da compra e venda de imóveis e carros, o incentivo ao trabalho por conta própria, a eliminação da dualidade entre as moedas turística e local e a permissão para viagens internacionais de até dois anos sem perda da cidadania.

Na última semana, o governo Dilma vem ganhando destaque nessas notícias por ter se apresentado como um dos maiores parceiros econômicos da ilha. Durante o encontro da Comunidade de Estados Latino Americanos e do Caribe (CELAC), Dilma inaugurou o Porto de Mariel, localizado a 45 km de Havana, que está sendo construído pela Odebrecht com um investimento de US$ 957 milhões, sendo US$ 682 milhões financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a outra parcela financiada pelo próprio governo cubano. Mas algumas questões devem ser levantadas: Qual o significado das medidas que o governo cubano vem implementando? O que de fato muda na vida da população? Qual o interesse do Brasil nesse processo?

Mudanças que beneficiam apenas 1% da população…
As recentes reformas políticas, sociais e econômicas que vem ocorrendo em Cuba foram aprovadas pelo Partido Comunista em abril de 2011 e desenvolvidas nos anos seguintes pelo governo de Raúl Castro. Entre elas, algumas possuem um lado positivo, com cara de “mais liberdade”, como a flexibilização da política migratória, que permite aos cubanos viajar ao estrangeiro usando seu passaporte; compra e venda de imóveis e carros, mas na realidade só beneficiam quem tem muito dinheiro.

Outras, no entanto, retiram direitos adquiridos com a Revolução, precarizando ainda mais a vida da população, como a eliminação gradual da caderneta de racionamento, que garantia o acesso a produtos alimentícios e de higiene básicos para toda a população; o plano de demissão de 1,5 milhão de funcionários públicos e o conseqüente incentivo ao trabalho por conta própria; a aprovação de uma nova lei tributária com altas alíquotas de impostos, a criação de empresas agrícolas e de serviços mistas, dentre outras. Todas essas medidas são conseqüências do avanço do capitalismo na ilha.

Para se ter uma ideia das mudanças em curso, vamos tomar o exemplo de umas das últimas medidas aprovadas pelo governo cubano: a venda livre de automóveis novos e de segunda mão, prática que havia desaparecido do país há mais de 50 anos. Tal medida é apresentada pela grande mídia como um benefício à vida da população cubana. Poucas medidas, no entanto, provocaram mais espanto do que essa.

De acordo com um artigo do escritor e jornalista cubano Leonardo Padura, os automóveis novos (Peugeots 2013) custam entre US$ 200 mil e US$ 250 mil, enquanto os de segunda mão não custam menos de US$ 20 mil a US$ 30 mil, isto para automóveis de fabricação chinesa, com diversos anos de rodagem em frotas de locação. Considerando que um profissional de máxima qualificação em Cuba consegue ganhar no máximo US$ 45 ao mês com seu trabalho, este profissional, se poupasse todo seu salário para comprar um automóvel usado, levaria cerca de 46 anos para adquiri-lo. Algumas semanas após o anúncio, quase nenhum carro havia sido vendido.

Outras medidas abriram possibilidades antes proibidas, como a permissão para que cubanos se hospedem em hoteis para turistas, comprem linhas de telefonia móvel, adquiram equipamentos de computação ou freqüentem salas de navegação com acesso à Internet, todas “liberdades individuais” existentes em qualquer país capitalista – desde que paguem por todos esses serviços com muito dinheiro, muito mais do que qualquer cubano tem condição de pagar. O mercado de compra e venda, dessa forma, é restringido a 99% dos cubanos. Para se ter uma ideia, um trabalhador cubano médio gastaria cerca de 10% de seu salário para usar uma hora de internet. Muitos poderiam argumentar que tal situação se dá por conta do bloqueio econômico que Cuba sofre por parte do governo norte-americano, fato que também é utilizado pelo governo para justificar os altos preços encontrados na ilha. Isso, no entanto, esconde o fato de que o governo cubano está completamente subordinado a empresas estrangeiras que investem em seu território e podem retirar até 100% dos lucros que obtêm no país.

As mulheres cubanas são as mais afetadas…
Uma das conquistas da Revolução Cubana foi impulsionar a entrada da mulher no mercado de trabalho. Um dos fatores que possibilitou isso foi a criação de círculos infantis (creches) e restaurantes públicos a partir da década de 1960, que liberavam as mulheres de parte do trabalho doméstico. Apesar de relativos avanços, a entrada da mulher no mercado de trabalho se deu de maneira contraditória, já que elas desde sempre ocuparam postos de trabalho com menor remuneração, com funções de áreas administrativas ou educacionais, por exemplo.

Nos últimos anos, com a maior penetração do capitalismo em Cuba, muitas mulheres foram demitidas do Estado ou optaram por deixar seus empregos, abrindo pequenos negócios em suas casas, tornando-se cabeleireiras, manicures, massagistas, etc. Com o fechamento de creches e restaurantes, muitas mulheres tiveram de voltar ao lar e combinar atividades domésticas com pequenos empreendimentos. Assim, abriram pequenos restaurantes e salões em suas próprias cozinhas ou quintais. O governo nada mais fez do que incentivar esse processo.

A partir do momento que o governo cubano “legaliza” os estabelecimentos com trabalho por conta-própria, ele mascara os dados sobre o emprego na ilha, pois considera que essas pessoas também contam como empregadas quando, na verdade, muitas mulheres tiveram que deixar seu emprego no setor formal para poderem sustentar suas famílias com pequenos empreendimentos, que as possibilitam comprar os produtos básicos no mercado, já não garantidos pelo governo.

Investimentos do governo Dilma para beneficiar empresários brasileirosAo lado de Raúl Castro, a presidente Dilma Rousseff anunciou nessa semana um investimento adicional de US$ 290 milhões na continuidade da construção do Porto Mariel. Cerca de 85% desse dinheiro virá de créditos do BNDES brasileiro. De acordo com o jornal Folha de S. Paulo em artigo publicado em 27 de janeiro, o Brasil já forneceu cerca de US$ 802 milhões para a construção do porto. Desse montante, US$ 692 milhões foram entregues à Odebrecht, que lidera as obras e outros US$ 120 milhões a outras empresas brasileiras. Mais de 300 empresas brasileiras têm negócios em Cuba ou se fixaram na ilha. Grande parte usa recursos do Banco do Brasil ou do BNDES e muitas são fornecedoras do Porto. “O Brasil quer se tornar parceiro econômico de primeira ordem de Cuba” disse Dilma.

Um dos investimentos mais antigos do Brasil no mercado cubano é Brascuba, uma associação da empresa Souza Cruz com a cubana Tabacuba, desde 1995. A Brascuba é responsável pela exportação de cerca de 99% de todos cigarros e charutos que saem de Cuba, como os Cohiba, Lucky Strike, Hollywood entre outros. Outra empresa é a negociadora Surimpex, também veterana, que está em Cuba desde 1992, e é sócia da estatal cubana Alimport, que importa a maioria dos alimentos consumidos na ilha.

Todos esses dados nos levam a entender qual o interesse do Brasil em investir em Cuba hoje. Desde o final da União Soviética, com uma crise econômica profunda, Cuba se sustenta com a entrada do capital estrangeiro em sua economia. Esse capital, aproveitando-se da difícil condição de vida e dos cortes de direitos da população trabalhadora, aproveita o momento para explorar ainda mais a mão-de-obra do país, levando para fora da ilha todo seu lucro. O Brasil hoje também se aproveita dessa situação. A presidente Dilma utiliza dinheiro público brasileiro em prol de grandes empresas como a Odebrecht, atuando como uma verdadeira gerente dos negócios das multinacionais brasileiras.

A chamada “parceria” do governo brasileiro com o governo cubano nada mais significa do que a entrada de grandes multinacionais brasileiras em um mercado pouco explorado e com ótimas possibilidades de retorno para seus acionistas.

Até quando?
O povo cubano está insatisfeito, mas ainda não vemos grandes revoltas sociais. Por quanto tempo a volta do desemprego, os salários miseráveis e a retirada de direitos serão suportáveis? É preciso lutar contra as demissões do setor público; por um aumento geral dos salários; pela reconstrução das creches e restaurantes públicos para libertar as mulheres do trabalho doméstico. É preciso taxar progressivamente as remessas de lucro das multinacionais e reestatizar as empresas privatizadas. Por uma nova revolução socialista em Cuba.

Para maiores informações sobre a restauração capitalista na ilha leia o artigo ‘As consequências do volta do capitalismo’