Haitiano conta luta para reajustar o salário mínimo, congelado desde 2003, e a repressão aos protestosNo mês passado uma delegação de três haitianos desembarcou no Brasil para exigir a retirada das tropas de ocupação da Organização das Nações Unidas (ONU) do país caribenho. Os integrantes da delegação foram Carole Pierre Paul-Jacob, da Solidariedade das Mulheres Haitianas (SOFA); Frantz Dupuche, da Plataforma Haitiana em Defesa de um Desenvolvimento Alternativo (PAPDA); e Didier Dominique, da Central Sindical e Popular Batay Ouvrier. O trio se dividiu em dezenas de atividades realizadas em praticamente todas as regiões do país. A vinda da delegação coincide com um acirramento das lutas no Haiti. Nos últimos dias, manifestações foram violentamente reprimidas pelas forças da ONU e pela polícia. Para falar sobre isso entrevistamos Didier Dominique.

Recentemente no Haiti ocorreu uma série de mobilizações de setores estudantis em defesa do salário mínimo que foram reprimidas. Como foi este processo?
Didier Dominique –
Faz pouco mais de um ano que Batay Ouvriye propôs-se voltar a integrar o campo estudantil. Depois da queda de Duvalier teve uma mobilização forte na universidade estatal de Haiti (UEH) porque faltavam muitas coisas: não tinha instalações nem uma boa biblioteca, e seu funcionamento era totalmente antidemocrático porque Duvalier impunha o reitor e os professores. Assim, por vários anos ocorreram mobilizações que obtiveram conquistas: hoje são fitas eleições para professores, nomeiam-se por excelência e com exames etc.

Ao mesmo tempo, ocorreu todo um processo de aumento da penetração capitalista, o neoliberalismo e a privatização. Apareceram universidades privadas que pagam melhores salários aos professores. Pouco a pouco, também, na universidade estatal, os estudantes tiveram que pagar mais, o que antes era praticamente gratuito. Antes eles pagavam uns 50 dólares por ano de forma parcelada. Agora são 500 dólares. Não é tanto como na universidade privada, mas é um valor bastante substantivo. A situação dos estudantes começou a ficar mais difícil, assim como a situação do povo em geral. Não só pela ocupação, mas também pela situação econômica que afeta este setor.

Existe uma mudança na composição social dos estudantes da universidade estatal. Eles têm se proletarizado cada vez mais, diferente de 20 anos atrás. Os estudantes têm origens em setores mais empobrecidos, inclusive de famílias de trabalhadores e operários que, com muito esforço e trabalho de toda a família, inclusive nas fábricas, enviam a um de seus filhos à universidade e pagam seu estudo.

Por isso, consideramos importante dar um espaço aos estudantes universitários dentro de nossa organização. Começamos a retomar esse trabalho. Alguns companheiros voltaram a ser professores, como o eu. A partir de diversas atividades, palestras e debates. Assim pudemos estabelecer uma relação com algumas organizações, como a Associação de Estudantes Universitários Dessalines [Jacques Dessalines foi o líder da luta pela independência do país, em 1803] que esteve junto conosco no ELAC, no ano passado. Na universidade, também há círculos marxistas, trotskistas, gramscianos, etc. Estamos entrando em contato com eles.

Como está sendo a luta em defesa do reajuste do salário mínimo?
Didier Dominique –
Já faz algum tempo que a Batay Ouvriye está na luta pelo salário mínimo. É uma reivindicação permanente, que pôde ser vista nas mobilizações do 1°de Maio ou em outra mobilização de 2006. Segundo o Código do Trabalho haitiano, há um Conselho de Salário dentro do Ministério de Assuntos Sociais e do Trabalho, que todos os anos deve reajustar o salário mínimo de acordo com a inflação. Mas o último reajuste foi em 2003, quando fixaram o salário em 70 gourdes diários (1,75 dólares). Antes disso, o reajuste tinha sido realizado apenas em 1995.

Então veio uma proposta de lei do deputado Benoit de reajustar o salário mínimo para 250 gurdes diários (pouco mais de 6 dólares). O valor proposto nessa lei não respeitava a inflação real que se calculada, o valor do reajuste deveria ser entre 450 ou 500 gurdes (entre 11 e 12 dólares).

Provamos que o aumento proposto por essa lei não era suficiente em razão do aumento de preços do arroz, transporte e da cesta básica. O próprio Ministério calculava a cesta básica em 300 gurdes diários. Apesar do custo de vida continuar subindo, Benoit baixou sua proposta para 200 gurdes.

Por isso, manifestamos nossa rejeição a esta lei no último 1° de maio, junto com outras forças que integram o Coletivo para outro 1° de Maio. Neste coletivo estão organizações de trabalhadores públicos e organizações estudantis, e os temas centrais foram as reivindicações por salário mínimo e a exigência do fim da ocupação militar pela ONU.

Como seguiu a luta?
Didier –
Como a Câmara de Deputados votou a favor do salário mínimo de 200 gurdes e o presidente (René) Préval vetou o aumento. Começamos uma mobilização junto com os estudantes, as organizações de bairros, os trabalhadores do serviço público e setores das coordenações camponesas.

O Haiti tem o salário mais baixo das Américas e um dos mais baixos do mundo. E isso é algo consciente, cuja função é para atrair investimentos das fábricas têxteis nas zonas francas. É uma exploração sem limites da classe operária mais barata das Américas. Não é uma coisa casual, isso foi pensado desde a época de Reagan (ex-presidente dos EUA nos anos 80).

E a participação dos estudantes?
Didier –
Os estudantes entraram em cheio nesta luta. Teve uma mobilização forte no dia 4 de junho que foi reprimida. Isto teve muita repercussão na imprensa. Nós levamos nosso mais firme apoio aos estudantes.

Essa é a repressão que foi denunciada aqui no Brasil?
Didier –
Sim. Uma semana depois, nos dia 10 e 11 de junho. Depois da mobilização do dia 4 de junho, nós e os membros do coletivo somamos forças para unir a todos os setores. Sofremos uma repressão realmente selvagem. Nossas marchas começavam numa faculdade que percorreriam outras e terminava no Parlamento. Mas, dessa vez, nem o primeiro passo pudemos dar. Mal se saía de uma faculdade e já começava a repressão, que continuava dentro dos edifícios das faculdades e, inclusive, no hospital universitário. O gás lacrimogêneo invadiu a maternidade, intoxicando crianças e mulheres. Recolhemos mais de 300 cápsulas de bombas. Dois estudantes foram mortos e mais dois foram hospitalizados (um idoso e um menino), que morreram intoxicados.

Depois, outra pessoa foi morta pelos soldados, durante o funeral de um sacerdote no Haiti, Gerard Jean-Juste.

Qual é a força que reprime?
Didier –
As duas: a polícia haitiana e as forças da Minustah. Isso se vê nas fotos. Há uma ação conjunta delas. Além dos polícias, se vê soldados brasileiro, jordanianos, senegaleses e paquistaneses reprimindo. Claro, que o comando está nas mãos do Brasil que, nesse sentido, é o responsável principal. Reprimem para defender o salário mais baixo das Américas. Para as empresas têxteis da zona franca. É essa a razão real, a natureza da ocupação.

Como se expressa tudo isto na consciência do povo haitiano?
Didier –
Desde 2005 e 2006 começou uma mudança. Foi quando supostamente estavam atacando os “bandos armados”, mas semearam o terror nos bairros populares para garantir o domínio da polícia e da Minustah. Já existe uma relação com a Minustah totalmente diferente daquela de aplaudir a seleção brasileira de futebol. Em 2008, durante o “levante dos famintos”, a repressão da Minustah provocou muitos mortos em Porto Príncipe e em outras cidades. Eles continuaram reprimindo várias semanas após o levante. Por isso, nas paredes de todas as cidades do país já se vê pintado: “Abaixo a Minustah” e “Fora a ocupação”.

E a relação da população com Préval?
Didier –
Préval sobrevive no poder unicamente pela presença da Minustah. É um presidente que se acabou quando apoiou a repressão da Minustah em 2008, felicitando e agradecendo. Aí teve uma mudança radical da relação de Préval com o povo, que cairia se não fosse o respaldo da ocupação. Como foi ele que vetou a lei dos já miseráveis 200 gourdes para o salário, começa a aparecer em Porto Príncipe pichações de “Abaixo Préval”. Hoje começa a existir uma maior unidade dos diferentes sectores populares ao redor disto.

Faça um curto balanço de sua visita…
Didier –
Esta visita foi muito ampla e estivemos em várias cidades. Chegamos a mais setores sociais: estivemos nas universidades, em escolas, em sindicatos e nos bairros. Inclusive Estivemos no Senado e em Câmaras de Vereadores para denunciar a ocupação e a repressão. O interessante é que, em alguns pontos específicos, também teve uma unidade de ação e posição com setores que são do governo. Por exemplo, em Campinas teve uma mesa que incluía colegas do PT e a CUT, além, obviamente, de companheiros do PSTU, PSOL, Conlutas e da Intersindical, que se manifestaram claramente contra a ocupação e pela saída das tropas. Isto é uma diferença de outras visitas que fiz no Brasil. É algo que precisa dar projeção e continuidade.