Negros, pobres e idosos foram abandonados à própria sorte por BushNa terça-feira, 30 de agosto, a imprensa mundial, com base em informações divulgadas pelo governo dos Estados Unidos, informava que o furacão Katrina havia perdido sua força antes de tocar a costa do Golfo do México, no extremo sul do país, poupando cidades como Nova Orleans, no estado da Louisiana, de uma catástrofe.
De lá para cá, o que se viu, contudo, foram histórias e cenas totalmente diferentes: cidades inteiras debaixo d’água, corpos boiando pelas ruas, gente brigando por comida, água ou uma vaga em ônibus que pudessem tirá-la daquele caos.

Cenas de barbárie que vão ficar na memória dos norte-americanos como as dos atentados do 11 de Setembro.

A tragédia não só desmentiu o governo norte-americano como também expôs ao mundo que outras “forças”, tão nefastas quanto os ventos e águas, contribuíram para a destruição da região, o desespero e a morte de um número ainda não definido de pessoas (o prefeito de Nova Orleans fala em 10 mil vítimas): o descaso de Bush em relação aos mais pobres, que, não por coincidência, na região, são majoritariamente negros e negras.

Bush: descaso assassino
Há muito se sabia que a região não resistiria a um furacão mais violento e que a tragédia era eminente, particularmente em Nova Orleans, berço do jazz e do blues.
Diante da eminência da chegada do furacão, a única providência adotada por Bush e a maioria dos governos locais foi a orientação de que as pessoas deveriam abandonar a área e procurar refúgio em cidades vizinhas, algo que foi feito por 80% da população das áreas atingidas.

Uma “orientação” que, além de livrar o Estado de qualquer responsabilidade sobre uma situação desse tipo (deixando nas mãos dos próprios habitantes as providências para se salvar), de imediato, selou o destino e as características da maioria das vítimas do Katrina, ou seja, dos 20% que não tiveram como sair: gente que não tinha carro, dinheiro para comprar passagens ou para pagar hotéis fora; negros, idosos e miseráveis, em sua enorme maioria.

É preciso lembrar que há muito discute-se a necessidade um reforço no sistema de diques que protege a cidade. Contudo, há cerca de três anos, as verbas federais destinadas a modernizar o sistema foram desviadas por ordem de Bush, como lembra Walter Maestri, chefe dos serviços de emergência de um dos distritos: “Parece que o dinheiro foi realocado no orçamento do presidente para segurança interna e a guerra no Iraque”. O país que gasta US$ 5,6 bilhões ao mês para invadir o Iraque e vende US$ 12,4 bilhões em armas ficou sem recursos para resistir ao furacão.

Se, “antes” da tragédia, a lógica neoliberal do “cada um por si” imperou, depois o que se viu foi o desprezo assassino de Bush.

Apesar das evidentes proporções da tragédia, durante os primeiros dias, o governo federal deixou praticamente toda a operação de resgate e ajuda aos desabrigados nas mãos dos estados e municípios atingidos.

As conseqüências não poderiam ser outras: no dia seguinte à passagem do Katrina, cidades inteiras mergulharam no caos.

O estádio do terror
Aos poucos, multidões foram sendo formadas nos locais que estavam sendo transformados em improvisados centros de refugiados.

No decorrer da semana, um deles, organizado pelas autoridades locais, ganhou uma lamentável fama: o estádio Superdome, que chegou a abrigar mais de 20 mil pessoas.
Sem contar com a menor infra-estrutura, o estádio transformou-se em um verdadeiro palco de horrores. Houve de tudo. Mortos jogados pelos cantos enquanto gente doente agonizava, e sobreviventes, a maioria negros, velhos e crianças, disputavam o pouco de comida e água que chegava. Em meio a tamanha degradação, começaram a surgir casos de violência, estupros e roubos.

O horror era tanto que foram registrados casos de suicídio e tentativas desesperadas de fuga.

Somente a partir do dia 31 de agosto, quando as cenas de horror e as criticas a Bush já haviam se espalhado pelo mundo, as pessoas começaram a ser removidas do local.

O número de ônibus e aviões colocados à disposição todavia foram insuficientes e as pessoas tiveram que ficar horas a espera de sua vez.

Atirar para matar
Como não poderia deixar de ser, não demorou muito para que a situação saísse completamente do controle. Historicamente marginalizados, miseráveis em sua grande maioria, abandonados a sua própria sorte em meio ao caos e à fome, depois de ter perdido absolutamente tudo do muito pouco que conseguiram acumular, os moradores da região, compreensivelmente, entraram em desespero.

A resposta das autoridades locais foi imediata. O prefeito negro de Nova Orleans, Ray Nagin, por exemplo, apesar de ser um dos mais violentos críticos de Bush, colocou a cidade sob Lei Marcial. A governadora do estado, Kathlen Blanco, também deu apoio incondicional à repressão.

Contudo, desta vez, foi Bush que tomou as principais iniciativas. O presidente norte-americano declarou: “Implementaremos a política de tolerância zero para as pessoas que violam a lei durante uma emergência como esta”.
No domingo, 4 de setembro, o número de soldados na região já chegava a 30 mil, boa parte deles envolvidos em ações repressivas.

Aos corpos dos mortos, vitimados por afogamento, começaram a surgir por toda parte, outros, perfurados por balas. Uma situação tão absurda que, segundo o prefeito de Nova Orleans, já havia levado vários policiais locais à deserção e ao suicídio.

Uma questão de raça e classe

Algo impossível de se esconder nessa história é o caráter racista e social do abandono das vítimas. As cenas da tragédia lembravam o Haiti com blindados repletos de policiais fortemente armados (todos brancos) patrulhando ruas destruídas em meio à população negra. O líder negro Calvin O. Butts, pastor da Igreja Batista no Harlem, declarou: “Penso que muito disto tem a ver com raça e classe. As pessoas afetadas eram na maioria pobres e negras”. Mesmo republicanos e colunistas conservadores da grande imprensa falam em um desleixo proposital de Bush.
Da população de Nova Orleans, 66% é negra, e mais de um quarto da população vive abaixo do nível da pobreza.

O desabafo de Larry Clawford, morador negro da região, dá a dimensão do problema: “Se era uma emergência, eles poderiam ter mandado ônibus para retirar as pessoas, negros e brancos, o que até ajudaria a diminuir o congestionamento (…) Mas, para os negros como eu, não havia emergência, e sim um plano. E parte do plano foi abrir comportas (do sistema de controle de enchentes) depois do furacão e inundar os bairros pobres para aliviar a pressão das águas nos bairros ricos. Depois nos acusam de roubar. Sim, eu roubei comida porque estava com fome”.

Clawford ainda completa: “esse governo é capaz de mandar tropas, tanques, comida e água para lutar no Iraque, que, aliás, não fez nada contra nós, mas não tem soldados para acudir gente com sede e fome no próprio país”.

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