Quando o arcaísmo se encontra com a modernização conservadoraO debate sobre a reforma universitária não é de hoje. Na verdade, desde que surgiram as primeiras universidades, ainda na Idade Média, as instituições de ensino superior sofreram grandes transformações, sempre acompanhando a dinâmica da luta de classes e os interesses dos Estados vigentes.

Immanuel Kant, em sua obra O Conflito das Faculdades (1795), deu os primeiros passos em defesa da autonomia universitária ao se opor à intervenção do Estado nas universidades e denunciar a ingerência religiosa nas mesmas.

O século XIX, no calor da Revolução Industrial, as moldou para atender as demandas de uma nova sociedade nascente. A economia capitalista em rápida expansão exigia constantemente a superação das antigas técnicas e a formação de uma burocracia estatal capaz de levar a cabo o processo de modernização.

O fechamento da fase expansiva do capitalismo e a abertura da época de sua decadência a partir da I Guerra Mundial (1914-18), marcada por um conflito interimperialista em busca de mercados, impactou profundamente a produção de conhecimento e tecnologia tanto dos países centrais quanto dos periféricos. As descobertas científicas passaram a não mais significar um avanço na qualidade de vida da população mundial, e as universidades tornaram-se reféns das crises crônicas do capitalismo.

Consequentemente, importantes processos de resistência da comunidade universitária começaram a se gestar, principalmente no continente latino americano. Em 1918, na província de Córdoba, Argentina, nasceu um forte movimento de massas em defesa da autonomia universitária, pela participação dos estudantes nos conselhos superiores e por concurso para professores.

Educação em tempos de neoliberalismo
A partir da falência do “Estado do Bem Estar Social” na década de 1970, a difusão da ideologia neoliberal ganhou mais intensidade se apoiando na aceleração da inflação decorrente da grave crise econômica insurgente. Os novos inimigos eleitos foram principalmente o funcionalismo público, a previdência social e as leis trabalhistas. A pesada máquina estatal seria, então, a responsável pelo desemprego e o baixo crescimento econômico. As políticas sociais, a vilã, que usurpariam recursos destinados aos setores produtivos e os alocariam nos setores considerados improdutivos, como por exemplo, a educação.

Nesse contexto, a educação deixou de ser um direito de todos e dever do Estado, e passou a transitar no ramo de serviços, transformando-se numa mercadoria como outra qualquer. A universidade seria a prestadora de serviço, o estudante ocuparia a posição de consumidor, e o diploma ganharia o status de produto.

Durante o governo FHC, não foram poucas as tentativas de minimizar a responsabilidade do Estado para com a educação, principalmente nas questões relativas à autonomia, ao financiamento e à gratuidade da universidade pública, através da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 233 e posteriormente 370.

Frustrando a expectativa da comunidade universitária, Lula iniciou uma reformulação do ensino superior que vai ao encontro dos projetos dos governos anteriores do PSDB, aprofundando a reprodução de um padrão de educação dependente e submisso aos interesses metropolitanos.

O Projeto de Lei 7.200/06, apresentado em junho do ano passado, se debruça em um “Sistema Federal de Ensino Superior”, que coloca no mesmo patamar instituições públicas, particulares e científicas. Isso significa, por exemplo, que as faculdades particulares usufruirão de autonomia para fixar os currículos de seus cursos e programas, conferir graus e diplomas, estabelecer objetivos pedagógicos, científicos e tecnológicos e, poderão também, de acordo com o Artigo 10, inciso XIII, “receber subvenções, doações, heranças, legados e cooperação financeira resultantes de convênios com entidades públicas e privadas (…)”. Além disso, o PL regularizará que até 30% do capital votante das entidades mantenedoras poderá ser estrangeiro, não escondendo o caráter colonial da educação imposto pelos organismos financeiros internacionais, sobretudo o Banco Mundial.

Entre os ataques desferidos ao longo de todo projeto, encontram-se pomposas bandeiras do movimento estudantil como a “democratização do acesso” e a “livre expressão da atividade intelectual, artística e científica”. Uma típica manobra de um governo oriundo dos movimentos sociais.

Nas Disposições Finais e Transitórias do PL, o Artigo 44, § 4º, permite a instituição de ensino superior “organizar seus cursos de graduação (…) incluindo um período de formação geral, em quaisquer campos do saber e com duração mínima de quatro semestres (…)”, ou seja, haverá um “ciclo básico” abrangendo os mais variados cursos independente de suas especificidades e particularidades, relegando a um segundo plano a produção científica. Em outras palavras, será permitida a abertura de um grande “cursão”.

É a partir daí que o governo divide tarefas com o reitor da UFBA, Naomar de Almeida Filho, que desenvolve o Artigo 44, § 4º, e cria o projeto Universidade Nova.

O “Universidade Nova”
O UniNova, também como é chamado, é uma simbiose dos dois principais modelos educacionais vigentes no mundo, o europeu e o norte-americano, adaptada à um país semi-colonial.

Em 1999, é assinada pelos ministros da educação dos países componentes da União Européia, a Declaração de Bolonha, cujo objetivo era padronizar e homogeneizar o ensino superior europeu até 2010, com vistas a atender as exigências do bloco econômico e do mundo globalizado.

O modelo educacional europeu se divide em:

a) Ciclo I
Estudos introdutórios de 3 anos de caráter não-profissional. O concluinte torna-se bacharel em Artes, Ciências ou Humanidades;

b) Ciclo II
Cursos de caráter profissional, destacando-se as ditas “carreiras imperiais” como Direito, Medicina e Engenharia. O segundo ciclo também inclui o mestrado profissional para profissões tecnológicas e de serviços;

c) Ciclo III
Doutorados de 3 a 4 anos.

Já o norte-americano se divide em:

a) Pré-graduação (colleges)
Cursos de caráter não-profissional com duração de 4 anos. Os concluintes ganham títulos de bacharel em Artes, Ciências e Humanidades, que são pré-requisitos para ingressar no segundo nível;

b) Graduação (graduate school)
Cursos de caráter profissional, que se dividem em graus de mestrado e doutorado.

A resultante brasileira ficou da seguinte forma:

a) Ciclo I
Cursos de caráter não-profissional debruçados em um Bacharelado Interdisciplinar (BI) com duração de 2 a 3 anos. O concluinte torna-se bacharel em Artes, Ciências, Humanidades ou Tecnologias.

O BI por sua vez se divide em:

– Curso Tronco (CT) de formação obrigatória em língua portuguesa e uma língua estrangeira tradicional;

– Formação Geral (FG), onde o estudante opta entre os eixos de Cultura Artística, Científica ou Humanística.

– Formação Específica (FE) para aqueles estudantes que concluíram a FG.

b) Ciclo II
Formação profissional em carreiras ou licenciaturas. Somente a metade dos estudantes concluintes do primeiro ciclo ingressa no segundo, sendo que podem ser selecionados para:

– Licenciaturas de 1 a 2 anos, o que habilita o concluinte a lecionar para níveis básicos da educação;

– Carreiras específicas com duração de 2 a 5 anos;

– Pós-graduação em mestrado profissionalizante.

c) Ciclo III
Pós-graduação Científica ou Artística.

Como se pode ver, apesar da adjetivação, o projeto Universidade Nova não apresenta nenhuma grande inovação no sentido progressista da palavra.

Os Bacharelados Interdisciplinares, longe de representar uma formação crítica, criativa e desalienante, está a serviço da construção de um exército de mão-de-obra para atuar num mercado de trabalho precarizado, onde o trabalhador tenha “competências genéricas” em variados campos do conhecimento.

Um trabalhador “empreendedor” seria capaz de enfrentar a incerteza, a imprevisibilidade e “novos desafios”. Estaria apto à selvageria capitalista, sem nenhuma garantia de estabilidade ou direitos trabalhistas. Desta forma, mais uma vez, a universidade se molda de acordo com os interesses do mercado.

Além disso, os BIs reduzem o tempo dos estudantes na universidade que hoje é de 4 a 5 anos, para 2 a 3 anos, com o intuito de poupar recursos destinados a educação e distribuir massivamente um diploma sem nenhum valor profissional e científico. A velocidade, palavra tão em voga no mundo globalizado, penetra também no universo acadêmico e na arquitetura curricular, e dá origem a um ensino fast-food de péssima qualidade.

A farsa da expansão e da democratização
Diante da brutal desigualdade social e do acesso quase insignificativo às universidades, Lula e seus aliados não têm medido esforços para maquiar essa realidade e implementar programas e adotar medidas que em nada democratizam o acesso ao ensino superior.

Ainda em 2006, Lula anunciou entusiasticamente a criação de novas universidades federais. No entanto, esqueceu de mencionar, que grande parte delas eram desmembramentos de universidades já existentes ou a transformação de faculdades em universidades. Da UFBA, originou-se a Universidade Federal do Recôncavo Baiano; da UFMS, surgiu a Universidade Federal de Grande Dourados; a Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro virou a UFTM; a Escola Superior de Agricultura de Mossoró, deu origem a Universidade Federal do Semi-Árido; entre outros exemplos.

O outro passe de mágica se deu através do Ensino à Distância (EaD). A relação professor-aluno e o convívio com a comunidade universitária seriam substituídos pela frieza do EaD e uma avalanche digital desprovida de qualquer conteúdo aprofundado. É muito difícil de imaginar uma aula de Educação Física à distância, ou um cirurgião formado nesses moldes. O EaD além de abrir um lucrativo mercado para cyber-rentistas, que já movimenta hoje cerca de R$ 18 bilhões por ano no país, também incide no sentido sufocar qualquer espírito de coletividade da comunidade e enfraquecer o movimento organizado da educação.

O vestibular, apesar de ser criticado no projeto do reitor da UFBA, não será abolido como apregoam os defensores do UniNova. Pelo contrário. Uma das possibilidades é reformulação do inadequado Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), sem contar com a continuidade da competição entre os estudantes dentro da própria universidade. Os estudantes concluintes do Bacharelado Interdisciplinar que pontuassem o suficiente para continuar seus estudos, seriam ranqueados por critérios puramente meritocráticos através do Coeficiente de Rendimento (CR) e ingressariam nas licenciaturas, cursos profissionais e apenas uma ínfima minoria na pós-graduação.

A superexploração dos funcionários e salas de aula lotadas também fazem parte do arsenal de maldades do UniNova. Hoje a proporção aluno/professor obedece a uma média de 11,3 estudantes para cada docente. A proposta do projeto é aumentar em 100% o número de vagas na graduação. Para isso, ao invés de investir massivamente em infra-estrutura e abrir concurso público para professores e técnico-administrativos, a solução encontrada foi passar de 11,3 para 40 ou 50 a proporção aluno/professor.

Arregaçar as mangas e ir à luta
Ao que tudo indica o governo segue com a estratégia de aprovar o PL 7.200 ainda esse ano, e corre em paralelo com um projeto de decreto intitulado de “Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais”, que nada mais é do que a versão legal do UniNova.

O prazo limite apresentado pelo governo no início de seu primeiro mandato para aprovar a reforma Universitária era em meados de 2005. Com certeza a mobilização da comunidade universitária ao longo desses anos foi fundamental para que o governo não conseguisse aprová-la na íntegra. De lá para cá foram inúmeros debates nas universidades públicas e particulares, seminários, marchas a Brasília, plenárias e tantas outras iniciativas muito valorosas.

É preciso segurar com punhos firmes as bandeiras históricas do movimento da educação e arrancá-las das mãos oportunistas do governo. É preciso lutar e é possível vencer. A Conlute não medirá esforços no fortalecimento da Frente de Luta Contra a Reforma Universitária, porque não existe outro caminho para vitória.