A PM foi uma das instituições mais desgastadas após os acontecimentos de junho

Os acontecimentos de junho de 2013 abriram a possibilidade para um progressivo questionamento da democracia dos ricos e brancos no Brasil. Não é por outra razão que instituições importantes da República viram seu desgaste aumentar, em alguns casos sem recuperação substancial até o momento. Um dos exemplos mais emblemáticos é o da polícia militar.

Em novembro passado, foi publicada pesquisa que apontava a desconfiança de 70% da população em relação às polícias[1], um crescimento em relação ao primeiro semestre de 2012. Ao atingir setores da sociedade normalmente alheios ao cotidiano de truculência tão comum nas periferias brasileiras, o debate da desmilitarização da polícia tomou um impulso talvez inédito no Brasil.

Em meio à ofensiva repressiva e de criminalização dos movimentos sociais do governo Dilma Rousseff, com iniciativas como a Lei da Copa e as articulações com os governos estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro, trata-se de um tema central. Este artigo busca contribuir nesta discussão, debatendo alguns dos limites que identificamos na maioria das propostas colocadas até o momento.

A repressão é a resposta dos governos às lutas populares
O aprofundamento dos ataques às liberdades democráticas e da repressão aos movimentos sociais é um fenômeno mundial, intimamente relacionado à resistência dos trabalhadores e da juventude aos efeitos da crise econômica aberta em 2008.

No Estado Espanhol, por exemplo, foi aprovada no ano passado a Lei Fernandéz, com o objetivo de cercear o direito à livre manifestação, prevendo multas milionárias aos manifestantes que “ofenderem” símbolos nacionais espanhóis e autoridades, bem como a proibição do uso de máscaras em manifestações, entre outras medidas.

No Brasil, os efeitos da crise ainda não são os da aberta tragédia social de outras partes do mundo. Mesmo assim, junho mostrou que o “decênio glorioso” do PT à frente do governo federal não reverteu – nem aponta nessa tendência – problemas elementares da população. Entre os problemas mais citados pelos manifestantes estavam a saúde (78%), a educação (52%), o transporte público (77%) e até a segurança pública (55%) [2].

Bastou o início da ofensiva das massas para os governos tomarem duras medidas repressivas. No dia 13 de junho, a PM de São Paulo atacou ferozmente milhares de jovens em ato contra o aumento da passagem de ônibus. Para além do crescimento posterior dos atos, a polícia acabou ilustrando, por assim dizer, as justas palavras de Lênin em 1902: “é a própria polícia quem, muitas vezes, começa a imprimir à luta econômica um caráter político [ou seja, mais amplo que as reivindicações imediatas e ligadas à mera reprodução da vida], e os próprios operários aprendem a compreender ao lado de quem está o governo”[3].

Mas a truculência da PM não é novidade para nenhum morador das periferias brasileiras. A repercussão do assassinato de Amarildo de Souza em julho fez surgirem mais denúncias de casos semelhantes[4]. A repressão aos rolezinhos é o exemplo mais recente e mostra novamente quem são os inimigos preferenciais de uma força policial treinada para a guerra contra os negros e pobres.

Um breve histórico da PM no Brasil
O autoritarismo está inscrito na história da PM e é motivo de orgulho para a corporação. A polícia militar paulista, por exemplo, carrega um brasão que conta com 18 estrelas representativas, entre outros momentos “memoráveis”, do golpe militar de 1964 (chamado “Revolução de Março”) e a repressão à revoltas populares como a greve de 1917 e o massacre de Canudos[5].

A história da polícia paulista, aliás, é um belo exemplo da natureza da instituição. Nascida oficialmente por um decreto regencial de 1831[6], passou por uma importante reforma em 1906, ano em que a Missão Francesa veio ao Brasil para adestrar o aparato repressivo em moldes claramente militares, o que significa forte hierarquia e disciplina como marcas da organização[7].

No entanto, a origem direta da atual PM data de 1969, quando a ditadura militar incorpora a Guarda Civil (GC) à chamada Força Pública. À GC cabia o policiamento urbano e sua dissolução fez com que o policiamento ostensivo se tornasse prerrogativa da PM, que passa a ser diretamente força de reserva do Exército. Polícia militar e população ficam, desse modo, ainda mais apartados[8]. Data dessa época, por exemplo, o surgimento do Batalhão de Choque.

Nesse cenário, a divisão do trabalho policial confere à polícia civil o trabalho investigativo, enquanto à PM cabe o policiamento de rua. A redemocratização não mudou substancialmente essa situação pois, se retirou do controle do Exército (ao menos do ponto de vista formal) a PM pondo-o nas mãos dos governos estaduais, manteve a estrutura militar da corporação. 

O debate da desmilitarização
A discussão sobre a desmilitarização da PM não é nova. A mudança da estrutura policial foi uma posição derrotada nos debates da Constituição de 1988.

Há dois elementos muito importantes nas propostas de desmilitarização. O primeiro é a unificação das forças policiais em marcos civis e o segundo é o fim do código militar. Nesses termos, desmilitarizar acarretaria o fim da separação entre o trabalho de investigação, de um lado, e do policiamento de rua, de outro. E os policias seriam julgados na justiça comum.   

A desmilitarização, compreendida nos termos expostos acima, seria um importante passo para combater o caráter autoritário das polícias no país. Todavia, apenas desmilitarizar a polícia – mesmo com todas as implicações positivas que haveria nisso – não acabará com seu caráter de classe. Mesmo em países onde não há tão aberta barbárie do aparato policial e ele não é militarizada, a força policial permanece sendo um instrumento fundamental para que a burguesia domine a juventude e os trabalhadores.

É impossível não lembrar da repressão aos moradores de Tottenham em 2011, que se rebelaram após o assassinato de Mark Duggan, jovem negro morto pela polícia londrina. Também na democrática França a polícia e o governo de Hollande tratam as populações negras da periferia de Paris como “escória” – termo utilizado pelo antecessor do atual presidente, o conservador Nicolás Sarkozy para se referir aos imigrantes.

Assim, é utópico defender no caso do Brasil, por exemplo, que “o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a fortalecer a democracia e os direitos civis”, como fez Marcelo Freixo em artigo na Folha de São Paulo no final do ano passado[9]. A PM não tem como problema principal a “dificuldade em conviver com o regime democrático”. Ao contrário: ela é peça fundamental da manutenção de uma democracia cuja existência normal depende da perseguição aos rolezinhos, da criminalização dos movimentos sociais, do forte controle dos trabalhadores e do povo pobre.

Desmilitarização rumo ao fim da polícia
Em nossa opinião, a clareza do caráter de classe do Estado é a base mais segura para erigir um programa em relação à desmilitarização da polícia. Engels mostra o Estado como uma força que consiste antes de tudo em “destacamentos especiais de homens armados, tendo à sua disposição prisões, etc”[10]. Que jovem negro morador da periferia de uma grande cidade brasileira duvidará disso?

A polícia e as forças de repressão de modo geral estão separadas da classe trabalhadora e do povo. Esse elemento é essencial para que cumpram seu papel. Nesse sentido, a desmilitarização da polícia, na medida em que caminha no combate a essa separação é uma bandeira democrática bastante importante.

Isso significa, entre outras coisas: uma polícia civil única; que os policiais passem a ser funcionários públicos com todos os direitos, como o de formar sindicatos e fazer greve; direito à livre manifestação política, fundamentalmente para que possam expressar as demandas dos elementos mais abaixo na hierarquia militar, normalmente vindos de setores populares; fim da justiça militar, sendo toda e qualquer infração julgada por uma justiça civil. Essas bandeiras devem estar aliadas a outras como o controle pela população da polícia por meio da eleição dos delegados de cada cidade ou zona.

Mas a desmilitarização só representará um passo na transformação radical dessa polícia racista e tão antagônica aos pobres e trabalhadores, nos marcos da luta contra a democracia dos ricos e seu poder econômico, com a população nas ruas. Isso significa acabar com a polícia, reformulando profundamente o modelo de segurança pública e, necessariamente, a própria sociedade.

 


[2] BRAGA, R. Sob a sombra do precariado. In: Cidades Rebeldes. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 82

[3] LÊNIN, V. Que fazer?. São Paulo: Alfa-Omega, 1986. p. 131.

[5] http://www.viomundo.com.br/politica/gilberto-maringoni-brasao-da-pm-paulista-e-um-tapa-na-cara-do-povo-brasileiro.html

[6] http://www.policiamilitar.sp.gov.br/inicial.asp

[7] Revista Fórum, nº 125, agosto de 2013. p. 06-11.

[8] Idem.

[9] http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/12/1390874-e-preciso-desmilitarizar-a-policia-militar-sim.shtml

[10] LÊNIN, V. O Estado e a Revolução. São Paulo: Alfa-Omega, 1986. p . 228