Karina Perin Ferraro, de São Paulo (SP)

Crescem relatos de subnotificação de mortes por coronavírus. Muitas pessoas estão morrendo por suspeita de coronavírus mas, no atestado de óbito, consta de forma genérica problemas respirátórios ou infecção. O número de mortes é bem superior ao oficial. Leia o relato de Karina, que acabou de perder seu tio pela doença

Karina Perin Ferraro

“Uma caneta que não escreve mais” (F, C., 2020)

Meu tio, Ediloy Antonio Carlos Ferraro, faleceu no dia 26 de março, às 20h50 na Santa Casa de São Paulo. Consta na declaração de óbito “Síndrome Respiratória Aguda Grave” como causa imediata e “morte a esclarecer, aguardando exames”, como intermediária. Mais um caso de subnotificação de coronavírus.

Decidimos não fazer velório e lacrar a urna por entendermos o perigo de transmissão comunitária devido à aglomeração. Foi uma decisão difícil, porque não tivemos chance de nos despedir, e não esperávamos ser esta somente a primeira parte da dificuldade.

Depois do reconhecimento do corpo, tivemos problemas burocráticos na funerária, porque não aceitaram a declaração de óbito enviada pelo hospital sem constar suspeita de coronavírus. Disseram que tinha uma infinidade de casos como o nosso. Retornamos ao hospital para falar com o médico e, depois de muita discussão entre ele e a agente funerária, foi aceito acrescentar outro dado como causa básica: Resolução SS-32 de 20/03/2020, que trata como possível suspeito de coronavírus os óbitos em meio à pandemia. Aí perguntei a ele se realmente haviam feito o teste e ele confirmou, mas me avisou que a análise está demorando cerca de 10 dias e é apenas realizada pelo Instituto Adolpho Lutz. Quando sair o resultado irão notificar o governo, para controle posterior das mortes que ocorrerem na pandemia. Enquanto isso, a orientação oficial é que ele pode ter ido a óbito por qualquer outra infecção não detectada.

Retornamos à funerária para oficializar o óbito, e aí descobrimos que a orientação descrita na resolução era de ensacar o corpo e lacrar a urna desde o hospital. Até então, lacrar a urna era uma medida que havíamos tomado voluntariamente pela conjuntura. Com isso, tínhamos realizado mais uma locomoção desnecessária, já que pela informação do cemitério tivemos que entrar no apartamento que meu tio residia sozinho para buscar a roupa do enterro que agora sequer seria usada. Além disso, nos informaram que teríamos que esperar o carro do cemitério no hospital para liberar o corpo e imediatamente seguir para realizar o enterro.

Não podíamos sequer agendar o horário e já eram 4h30. A previsão era de que chegaríamos ao Cemitério do Parque Jaraguá às 10h e avisamos os familiares próximos. Às 7h recebemos a notícia que o carro havia chegado ao hospital e o enterro seria às 8h. Voltamos ao hospital, mais uma vez, para seu filho reconhecer o corpo e liberar a urna. Avisamos rapidamente quem conseguimos e chegamos às 8h. Lá, descobrimos que o carro funerário passou em outro hospital para pegar uma urna como a nossa e tivemos que aguardar até às 10h15 para o enterro. Na rua do cemitério estavam dois irmãos idosos do falecido, uma nora grávida e outros, no total de 11 familiares. Quem havia conseguido comprar estava de máscara e luva, mas tentamos nos manter um pouco distantes um do outro para evitar contaminação. Foi triste não poder abraçar meu pai, que chorava pelo seu irmão. Afinal, como saber quem já estava infectado ou poderia se infectar pelo caminho?

Ediloy tinha 62 anos, era diabético, mas não tinha problemas respiratórios nem renais e apresentou os sintomas cerca de 15 dias antes do óbito. Procurou atendimento médico e mandaram ele de volta para casa com remédios para gripe, mesmo sendo parte do grupo de risco. Sete dias depois foi encontrado praticamente inconsciente pelo seu amigo e vizinho que chamou a emergência. Já chegou no hospital com pneumonia grave e ficou internado na UTI por 7 dias, entubado e sedado. Apenas nos últimos dias foi transferido para a ala separada de casos suspeitos de coronavírus. Nos últimos dias, meu primo assinou um termo de responsabilidade para aplicarem tratamento experimental, procedimento comum aos casos como o dele, mas nunca viu o resultado de confirmação do vírus.

Eu fui visitá-lo 12 dias antes do óbito, logo depois que foi ao hospital pela primeira vez, porque a família estava preocupada e ele não atendia o telefone. Ele não atendeu e chamei o vizinho para abrir a porta principal do prédio. Quando bati na porta do apartamento, ele estava com aparência febril, dificuldade respiratória, praticamente não conseguia ficar em pé e falava com imensa dificuldade. Cobrindo a boca, só me disse para me afastar e não deixar nenhum familiar voltar lá, porque havia feito o teste de coronavírus e estava aguardando o resultado. Disse que tinha os remédios para gripe e comida e tentaria usar mais o celular.

Eu fiquei em choque, voltei à minha casa rapidamente e lavei as mãos e nariz. Avisei a família. No dia seguinte acordei com sintomas de resfriado, tosse e coriza e uma imensa dor no corpo e cansaço. Resolvi fazer isolamento voluntário até receber o resultado do teste. Porém, no dia 18 de março decidi procurar a UBS para fazer o teste, já que o resultado do meu tio não saía. Fiquei mais de 2h lá. A médica me disse que só poderia fazer o teste caso se confirmasse o caso do tio, já que não sou do grupo de risco. Passou 3 remédios para gripe, um atestado de 5 dias, me orientou a me isolar e, se caso a medicação não resultasse em 5 dias, para eu retornar para pedir o teste. Ela saiu do consultório e insisti com a outra que pareceu ser enfermeira. Ela me respondeu que tinham apenas o último teste e que quando acabasse não iriam mais testar, porque iriam declarar contágio comunitário e tratar os casos graves na UTI.

Meu relato não é pessoal e individual, mas político e coletivo, do que possivelmente está ocorrendo com a maioria dos trabalhadores, que ilustra como o governo está tendo um completo descaso pela nossa vida. Nossa família não responsabiliza o corpo médico, porque sabemos que fizeram o possível dentro das condições precárias do SUS, com falta de equipe, medicamentos e estrutura, que vem ocorrendo nos últimos anos, devido ao corte de verbas e teto dos gastos, além de cumprirem procedimentos administrativos que foram elaborados pelo Ministério da Saúde. Defendemos o SUS, e por causa disso meu tio teve a oportunidade de tratamento e leito na UTI. Afinal, qual seria a chance de sobrevivência se não houvesse? Mas fica a questão, como o Presidente alega ter o resultado de dois testes e nós não conseguimos realizar nenhum? Como Ediloy se contagiou se ainda não haviam declarado contágio comunitário e ele não teve contato sequer com suspeito do vírus? Quantos casos suspeitos e mortes reais temos no país? Quantos precisam morrer para a economia não parar?

Meu tio era formado em Direito, mas trabalhou como bancário no Banespa. Foi representante sindical na CUT e lutou incansavelmente contra a privatização. Sempre me disse que o governo estadual sucateou propositalmente o Banespa para vender por 1/5 do que valia ao Santander. Atuou na construção do PT, mas se afastou diretamente da política partidária há anos, se mantendo na disputa política nas redes sociais e no discurso. Se dedicou a escrever contos, poesias e crônicas, sendo membro emérito da Editora Câmara Brasileira de jovens escritores desde 2009. Teve premiações e diversos textos literários publicados. Mantinha um blog pessoal com seus escritos, na qual tem uma introdução que encerro com o mesmo sentimento.

Morta… Serei árvore
Serei tronco, serei fronde
(…)

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos

(Cora Coralina)