Um dos fatos mais marcantes em Belém é a chuva das três horas da tarde. Em 29 de janeiro, infelizmente, ela chegou mais cedo. Naquele dia, oito operários trabalhavam na construção do edifício Real Class, um prédio residencial de 34 andares num bairro central da cidade. A obra estava em fase de acabamento e contava com 115 operários da empresa Real Engenharia e mais dez operários sem vínculo formal com a construtora.
Por conta da convenção coletiva, os trabalhadores da construção civil de Belém não deveriam trabalhar aos sábados, mas, naquele dia, alguns faziam hora extra. Por volta de uma hora da tarde, a chuva já havia chegado. Dois operários preferiram esperar que ela passasse. Pouco tempo depois, o edifício desabou, matando os trabalhadores.

O desabamento soterrou ainda uma senhora que morava ao lado da obra. O impacto do desastre foi tão grande que provocou fissuras em outro edifício de 18 andares e em pelo menos mais 18 casas do entorno da obra, fazendo com que 167 pessoas permaneçam desalojadas até o momento.

O operário Z.P. (nome fictício para evitar retaliações), que saiu duas horas antes do acidente, disse ao Opinião que o engenheiro responsável pelas condições das fundações e estrutura da obra garantiu que elas “estavam bem feitas”. O engenheiro era recém-formado por uma faculdade particular e filho do dono da construtora.
Há 23 anos na construção civil, Z.P. trabalha em Jaú (andaimes suspensos na parte externa das obras) e já sofreu um grave acidente quando foi imprensado contra uma parede por um motor gerador. Recuperou-se, mas perdeu parte da sensibilidade da mão direita.

Segundo Z.P., os dois operários que morreram eram muito trabalhadores. “O Ceará dava a vida pela empresa. Era o primeiro que chegava e o último que saía. O Manoel não trabalhava no final de semana. Justamente nesse dia ele achou de ir trabalhar”, lembra.

Pressão
A razão que levou Manoel Raimundo da Paixão Monteiro, carpinteiro, a fazer hora extra, talvez tenha sido a necessidade de comprar remédios para a filha doente. Sua esposa, Castorina Santos, lembra que ele achava alta demais a área onde estava trabalhando e que o prédio balançava com ventos fortes.

Segundo Z.P., o ritmo e a pressão de trabalho dentro da obra eram muito fortes. Ele afirma que alguns dos sobreviventes ouviram estalos pouco tempo antes de a obra cair. Apesar de existirem procedimentos gerais de segurança, o operário lembra que constantemente faltavam luvas, óculos e outros equipamentos. Indagado a respeito da possibilidade de o acidente ter ocorrido num dia de semana, ele é categórico: “hoje eu não estaria dando esta entrevista aqui. Com certeza nenhum de nós [125 operários] escaparia, nem mesmo o engenheiro”.

A postura da patronal
O sindicato patronal, a associação das imobiliárias e até mesmo o Conselho Regional de Engenharia se anteciparam e publicaram uma nota se solidarizando com a Real Engenharia.

Após o desabamento o dono da empresa, Carlos Otávio Paes, o “Carlão”, afirmou em entrevista pública sobre os familiares dos mortos: “devoto a minha solidariedade, minha compaixão”. No entanto, Miro Barros, filho de José Paulo de Barros, o “Ceará”, contou ao Opinião que a empresa pagou apenas um funeral simples e um plano médico.

Dezesseis dias após o desastre, Miro disse que a empresa não havia se manifestado quanto ao pagamento da rescisão do contrato de trabalho do pai. A família contatou um advogado do sindicato dos trabalhadores para entrar com ação contra a construtora. Só restou “a saudade; a mãe toda hora chora”, lamenta Miro.

Uma das piores
Há informações, não comprovadas ainda, de que parte do dinheiro existente nas contas da empresa já tenha sido transferida para outras contas não diretamente vinculadas a ela. Com isso, a empresa já se antecipa a possíveis ações judiciais que envolvam seu patrimônio. Além disso, já iniciou a demissão dos operários que trabalhavam na obra. “O Carlão disse que ia demitir boa parte dos funcionários e ficar só com alguns”, denuncia Z.P.

“A Real é uma das piores empresas nas negociações com os trabalhadores. Gosta de dar justa causa, suspensão e burlar os direitos. Já paramos o canteiro de obras várias vezes”, disse Ailson Cunha, presidente do sindicato dos trabalhadores e militante do PSTU.

O lucro versus a vida
O Opinião fez as contas de quanto é o ganho em uma obra em Belém. Usou-se como base de cálculo o próprio edifício desabado, o Real Class. O custo do metro quadrado da obra construída na capital paraense, calculado pelo sindicato patronal, foi de R$ 817,07. Ainda que haja outros custos adicionais, esse cálculo incorpora a maioria dos custos totais da construção, incluindo a remuneração da força de trabalho, que corresponde a R$ 349,01.

O Real Class tinha 60 apartamentos com um tamanho médio de 122 m². Multiplicando essa metragem pelo custo do metro quadrado, temos um custo total de R$ 99.682,54, mas uma unidade era negociada em média por R$ 500 mil, o que gerava um lucro de R$ 400.317,46. Multiplicando isso por 60 apartamentos, chegamos a R$ 24.019.047,60 de lucro total, que seria distribuído entre construtora, imobiliária, bancos e governo (impostos).

É um valor alto demais, mas, segundo Z. P., não vale uma vida. “Não existe dinheiro no mundo que valha a vida de uma pessoa, ainda mais um trabalhador”.

Post author Gilberto Marques e Renata Mendes, de Belém (PA)
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