Cartas do Haiti – 8º diaO carro anda pelas ruas de Porto Príncipe em direção ao aeroporto. Dentro de pouco tempo, viajamos de volta ao Brasil. Olho mais uma vez as pessoas nas ruas, já com uma ponta de saudade. A miséria nas ruas superlotadas em contradição com os palacetes em cima dos morros. Em Porto Príncipe, ao contrário do Rio de Janeiro, a burguesia mora nos morros.

Em uma semana, a delegação fez muito. Falamos com as principais instituições do país, incluindo o presidente, o embaixador brasileiro e o comandante da Minustah.

Tivemos um contato estreito com o movimento operário, incluindo as lutas da Codevi de Houanaminthe e CD Aparell de Porto Príncipe, além de falar com os sindicatos de Le Cap. Conversamos com organizações camponesas como a Cabeças Juntas e o sindicato de Le Cap, onde ocorreu o assassinato de dois camponeses. Falamos com setores muito importantes do movimento popular como em Cité Soleil. Estivemos em duas universidades, conversamos com estudantes e organismos de direitos humanos. E, além de tudo, ainda tivemos o contato estreito e revelador com a cultura haitiana, com a arquitetura da Cidadela e com a cultura do vudu.

Cerca de 1.200 pessoas estiveram em reuniões conosco. Tendo em conta a diferença da população do Haiti com a brasileira, é como se reuníssemos 25 mil pessoas por aí.

Parece que incomodamos bastante, e a reação já começou. O embaixador brasileiro ficou muito irritado com as repercussões no Brasil e informou a Batay Ouvriére que não nos receberia mais, suspendendo a reunião que haveria ontem com os embaixadores da América Latina. O embaixador chileno, que disputa o comando da Minustah, manteve assim mesmo o encontro conosco. Hoje pela manhã, quando falávamos com ele, o brasileiro chegou de surpresa. Veio aparentemente para “controlar” a conversa.

Na verdade, isso não nos incomoda. Mas existem outras reações. Na mesma noite em que deixamos Le Cap, um grupo de quinze homens armados tentou invadir a sede da Batay Ouvriére. Foram barrados pela reação dos trabalhadores da região e fugiram. Ontem, desde cedo, um tanque da Minustah e um carro menor pararam ostensivamente em frente à sede da Batay Ouvriére em que estivemos no dia anterior. Permaneceram lá durante todo o dia, numa clara postura de intimidação.

Na entrevista coletiva de imprensa, que encerrou nossa visita ao Haiti, denunciamos estas manobras repressivas. Responsabilizamos pessoalmente o embaixador brasileiro e o presidente Préval por qualquer repressão contra Batay Ouvriére.

São essas coisas que me passam pela cabeça enquanto o carro roda pelas ruas em direção ao aeroporto.

A imagem que levamos dos haitianos desmente a ideologia colonial dos ocupantes. Sim, porque a ocupação tem uma estratégia econômica (as zonas francas e o biodiesel), uma face militar (com a Minustah), e uma ideologia: é preciso que as tropas permaneçam aqui porque este povo não tem condições de se governar.

Na verdade, isso não tem nada de novo. É só a atualização da ideologia colonial que embelezava a escravidão, porque os negros não tinham condições de fazer outra coisa que não fosse se submeterem aos brancos. Na verdade, o que a elite haitiana e as multinacionais temem não são as gangues. É a possibilidade de uma nova rebelião, agora sob a forma de uma revolução. A história desse povo já mostrou que isso é possível, e pode se repetir.

A despedida no aeroporto é emotiva. Aqui não só conhecemos um povo, aqui fizemos amigos. A volta já traz o Brasil para nossas preocupações. O pessoal de Batay Ouvriére vai fazer uma declaração de solidariedade ao povo do Morro do Alemão do Rio, em que a polícia matou, ao menos, 19 pessoas. Aliás, a polícia daí fala que estão usando o que as tropas brasileiras aprendem aqui. Afinal, o Haiti é aqui… e aí.