Na quinta-feira passada (14), a Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC, em inglês) votou novas regras que podem flexibilizar o controle sobre a neutralidade da rede de internet naquele país. A decisão é controvérsia e pode gerar impactos sobre a internet em outros países.

Ajit Pai, presidente da FCC e indicado por Donald Trump, argumenta que a rigidez do princípio da neutralidade dificulta o lucro das empresas. Com isso, estaria impedindo que as provedoras do serviço façam investimentos em infraestrutura. No entanto, os defensores do princípio da neutralidade argumentam que é justamente pelo interesse exclusivo no lucro que as empresas não estariam investindo.

Neutralidade: o que é?
A neutralidade da rede é uma decisão política. Ela se baseia em um princípio democrático de que o acesso deve ser igualitário para qualquer tipo de conteúdo legal independentemente da fonte. Isso significa, na prática, que nenhum conteúdo terá privilégios em relação a outros, como maior velocidade de acesso. Ou seja, não importa se você quer acessar um blog pessoal, o site do PSTU, o G1 ou o New York Times. A rede deve garantir de forma igual o acesso a qualquer conteúdo.

No Brasil, a neutralidade da rede é garantida por lei desde 2014, quando se aprovou o Marco Civil da Internet. Após longos sete anos de debate, a lei aprovada funciona como uma espécie de “constituição da internet” no Brasil e garante, pelo menos em tese, a neutralidade.

Ajit Pai, indicado por Donald Trump para presidir a Comissão Federal de Comunicações.

O que pode acontecer com o fim da neutralidade?
Caso o princípio da neutralidade seja descartado, as empresas provedoras do serviço de internet poderão discriminar os conteúdos. Isso significa, na prática, que nosso acesso a determinadas coisas podem depender de acordos comeciais com a empresa.

Por exemplo, um provedor de internet pode privilegiar o acesso a um determinado site, de seu interesse, e dificultar o acesso a outro. Isso fica mais explícito quando imaginamos os possíveis acordos que podem ser feitos entre empresas. Um acordo entre uma operadora e o WhatsApp pode prejudicar usuários do Telegram. Um acordo entre a operadora e a Uber pode prejudicar o acesso a aplicativos similares como o 99 Táxi, Cabify etc. Um acordo entre a operadora e o Facebook pode prejudicar usuários do Snapchat e por aí vai.

É claro que usuários podem passar a pagar menos por conta desses acordos. O risco, na verdade, recai justamente sobre os meios alternativos, já que é de se esperar que os acordos sejam fechados com as grandes empresas em detrimento das menores. E esse é mais do que um problema de consumo. Isso faria avançar o domínio das grandes empresas de comunicação sobre a circulação da informação, ameaçando ainda mais qualquer espaço democrático.

O que está por trás da decisão
Como é possível perceber, o princípio da neutralidade diz diretamente sobre possíveis relações econômicas das grandes empresas de comunicação. Não é de se espantar que sejam elas as grandes defensoras de seu fim. Nem que por detrás da decisão do FCC deve estar muito lobby e compra de voto por parte dessas empresas.

Os empresários do ramo nos Estados Unidos alegam que essa é uma interferência indevida do Estado no livre-comércio. Entretanto, é preciso considerar também que a internet, como qualquer outro serviço de comunicação, deve ser tratado como bem público e direito do cidadão. Um debate muito parecido com o que se fez aqui no Brasil durante a aprovação desse ponto no Marco Civil. Tal como lá, por aqui também foram as grandes empresas que lutavam contra o princípio da neutralidade.

O argumento sobre a infraestrutura, defendido por Ajit Pai, é um pouco mais complexo. É verdade que é preciso investir em infraestrutura. Ao contrário do que se sugere, a internet não é algo completamente digital. É preciso infraestrutura logística de servidores, satélites lançados ao espaço, rede de energia elétrica, torres de comunicação, cabeamento terrestre e até cabos submarinos gigantescos ligando continentes (como o que foi concluindo recentemente ligando Brasil aos EUA).

Com o fim da neutralidade, alguns conteúdos deixariam de circular e não ocupariam mais essa infraestrutura. Ou seja, as empresas poderiam aumentar seus lucros, vendendo mais pacotes de internet, sem precisar investir nesse setor. Para dar um exemplo, é como se para acabar com a superlotação nos ônibus e metrôs impedíssemos algumas pessoas de entrar, ao invés de investir em transporte. Só teria direito a andar quem pagasse mais. O Brasil passou recentemente por gargalo na infraestrutura da internet no país e saída encontrada foi justamente acabar com a banda ilimitada. Ou seja, restringir a navegação do usuário ao invés de se aumentar os investimentos.

Por fim, o argumento de “interferência indevida no livre-comércio” é igualmente perigoso. O que acontece na maior parte das vezes é que, sendo a internet considerada um serviço público, o Estado exige que as empresas que exploram esse setor cumpram medidas de contrapartida social. Ou seja, a empresa ganha a concessão ou contrato, e em troca se compromete a levar sinal de internet a zonas rurais, regiões pobres, distantes etc. Caso a internet deixe de ser considerada serviço público essa contrapartida social se acaba, prejudicando os mais pobres.

Os impactos no Brasil
Em um primeiro momento, uma possível aplicação dessa decisão não afetará diretamente a internet no Brasil. No entanto, vale lembrar, foram sete anos para que o Marco Civil fosse aprovado. Com a FCC reabrindo o debate e votando contra o princípio da neutralidade, alguns temem que isso possa levar a que a discussão seja reaberta no Brasil.

O debate sobre a neutralidade na rede não é, porém, apenas um debate político sobre questões democráticas. Ou um mero debate sobre consumo. O princípio da neutralidade da rede diz respeito diretamente sobre o lucro das grandes empresas de telecomunicações. E sendo assim, acompanha a lógica da própria economia capitalista.

E a economia mundial ainda não se recuperou dos efeitos da crise aberta em 2008. Isso afeta não só o comércio e a indústria da transformação, mas também os setores de tecnologia e da informação. A saída proposta, no entanto, é a mesma: buscar aumentar os lucros barateando a produção e a força de trabalho, com aumento da exploração e a retirada de direitos.

Talvez não seja exagero colocar aí, no caso do setor da informação, a retirada de direitos de acesso para aumentar os lucros do setor. O que os empresários chamam de “otimização” é, na verdade, a flexibilização dos direitos de acesso e navegação com a possibilidade de novos acordos econômicos, privilegiando as grandes empresas e excluindo os meios alternativos e as parcelas mais pobres da população que não podem pagar pelo acesso.