Felipe Demier

Muito tempo se passou desde que Marx e Engels, no velho Manifesto do Partido Comunista, afirmaram ser o Estado moderno um “comitê de negócios da classe dominante”. Pouco mais de vinte anos depois, o mesmo Marx, em sua brochura sobre a Comuna de Paris, assinalaria, sem rodeios, que os processos eleitorais sob o capitalismo não passavam de momentos nos quais os oprimidos eram autorizados “a decidir qual, entre os membros da classe dominante, será o que, no parlamento, os representará e esmagará”. Em outra oportunidade, o velho Engels, em um ousado trabalho de sistematização sociológica, definiu o aparelho de Estado como uma “organização da classe exploradora” voltada para a manutenção, pela força, “da classe explorada nas condições de opressão exigidas pelo modo de produção existente”. Muito tempo também se passou, embora um pouco menos, desde que Lênin, numa linguagem direcionada para a agitação política, caracterizou o regime democrático-liberal como uma “democracia mutilada, miserável, falsificada, uma democracia só para os ricos, para uma minoria”. Seguindo essa trilha interpretativa, autores como Trotsky e Gramsci procuraram analisar as diferentes formas assumidas por essa dominação de classe exercida pelo Estado, as quais se expressariam em diferentes regimes políticos que, em dosagens diferentes, fariam sempre uso de elementos de consenso e coerção. Em todos os casos, o Estado moderno seria, essencialmente, um Estado de classe. Mas tudo isso já faz muito tempo.

De lá pra cá, não foram poucos os que, dentro e fora do campo marxista (e muitos migraram do primeiro para o segundo), envidaram esforços para refutar estas assertivas “dinossaurescas”; rios de tinta, nascidos de muita ginástica retórica, foram desperdiçados para apontar a perspectiva “ideológica” (no sentido vulgar do termo) e extremamente “reducionista” que as vertebravam. “Cidadania”, “republicanismo”, “esfera pública”, “ética” e até mesmo “hegemonia” foram categorias mobilizadas, mais ou menos honestamente, mais ou menos cinicamente, para demonstrar o quão aqueles vetustos pensadores nada acadêmicos estavam equivocados; alguns, mais conciliadores, mas não menos ardilosos, alegaram que talvez tais idéias tivessem tido lá algum lastro nas condições sociais em que foram formuladas, mas que, posteriormente, a realidade havia se tornado “muito mais complexa” – alguns têm uma verdadeira obsessão em dizer isso – do que naqueles tempos de antanho. Nas últimas décadas, as vertentes pós-modernas recusaram-se a sequer debater cientificamente com a tradição marxista, limitando-se a, com sua peculiar arrogância cool, tratar tanto a ciência quanto o marxismo como “discursos” utópicos, pueris e até mesmo românticos. Já os finórios jornalistas políticos, por sua vez, fizeram o que foram ensinados e melhor sabem fazer: ignoraram simplesmente a existência de qualquer pensamento crítico. Advindos dos departamentos acadêmicos e das salas da Presidência, das ONG’s e dos Institutos Milleniuns, das redações de TV e das Casas do saber, todos esses apologistas do “Estado democrático de direito” parecem ter conformado, no Brasil, uma espécie de grande partido da ordem. Defensor do atual estado de coisas, esse partido, flexível e democrático, tem lugar garantido também para os que defenderam ditaduras no passado (recente) e até para os que negam que qualquer coisa exista objetivamente. Todas as suas alas são, como dizem os populares, farinha do mesmo saco. Nos últimos anos, é inegável que esse partido tem se mostrado forte.

Entretanto, paradoxalmente, também nesses últimos anos, os acontecimentos, no Brasil e no mundo, parecem cada vez mais evidenciar a contradição existente entre a verdadeira natureza desse atual estado de coisas e o que dizem seus partidários incondicionais. Assim, um tanto quanto ironicamente, a dinâmica política do presente parece resgatar as teses de Marx, Engels, Lênin e outros revolucionários de outrora acerca da essência do Estado e da democracia na sociedade burguesa. Talvez não seja arriscado dizer que alguns eventos dos últimos dias conferem a elas ainda mais justeza do que possuíam quando foram escritas. Brincando livremente com a antiga dialética alemã, pode-se dizer que os fatos parecem estar correndo ao encontro das idéias, procurando confirmá-las mais uma vez.

Provincianamente, comecemos por um episódio que teve lugar aqui pelas bandas turísticas do litoral nordestino, onde o acaso, puxando o véu ideológico, foi quem permitiu ao “Estado democrático de direito” mostrar-se tal como efetivamente é. Um desastre aéreo lançou luz sobre as íntimas relações cultivadas entre o governador do Rio de Janeiro (eleito e reeleito, aliás, por fortes alas do grande partido da ordem), mega-empresários, empreiteiros, donos de resorts, de aviões, de helicópteros, doleiros e outros estratos da lúmpem-burguesia fluminense. A imprensa, impingida pelas circunstâncias e pela pressão de um corajoso deputado estadual, divulgou o fato. Aparentemente, tratar-se-ia de um escândalo, como gostam os jornais.

Ocorreu, entretanto, que a imprensa não poderia alardear como escândalo aquilo que é a natureza mesma do poder político sob o regime do Capital, aquilo que todo mundo sabe, mas que não se diz, e que, se dito, não implica, necessariamente, em nenhuma acusação, pois não pode haver nada de anormal em se portar normalmente, não poder haver crime no fato de um governador e um empresário agirem como devem agir um governador e um empresário. A declaração de um dos milionários envolvido indiretamente no caso (tratado como pop star tanto pelas revistas de salão feminino, quanto pelos famosos colunistas de notícias de três linhas) foi bastante esclarecedora quanto a isso; corretamente (do ponto de vista do sistema, claro), o “acusado” alegou que, como qualquer cidadão, é livre para “escolher suas amizades” e para “escolher a quem empresta seus aviões”. O governador, por sua vez (também corretamente do ponto de vista do sistema), não se viu na obrigação de dar explicações sobre onde e com quem passa seus feriados prolongados. Como bons “professores marxistas”, o empresário e o governador davam uma verdadeira aula sobre os fundamentos do Estado na sociedade atual. A imprensa, talvez percebendo que, movida por vis interesses mercadológicos, também estava contribuindo para o didatismo classista, flexionou sua abordagem, e passou a destacar o fato de que não havia licitação em muitos dos contratos firmados entre o governo estadual e a empreiteira de propriedade de um dos convivas do governador. O detalhe da questão tentou ser transformado em seu cerne. Mas já era tarde. A falta de licitação não era senão um mero adereço jurídico de uma roupagem ideológica que escondia o eterno romance do poder com o Capital. Com ou sem ele, o rei, ou melhor, o governador, estava nu. A aula tinha sido dada, e quem assistiu não teve dificuldade em apreender seu conteúdo. Tudo foi facilitado porque o próprio “professor-governador” – que, aliás, parece pretender matar de fome todos os professores do “seu” Estado – fazia uso de recursos didáticos e seguia um bem preparado cronograma de aulas: poucos dias antes de ir para suas libações nas areias privatizadas de Trancoso, se encarregou de ordenar que o cruento BOPE – retratado, de forma laudatória, por um conhecido cineasta que, paradoxalmente (ou melhor, esquizofrenicamente), apoiou a campanha à reeleição do corajoso deputado que denunciou o governador (?!) – esmagasse uma mobilização dos bombeiros que reivindicava um salário mensal de 2000 reais (provavelmente um valor próximo ao das diárias no referido resort). Cerca de três meses antes, a polícia estadual havia levado à prisão, e a justiça lá mantido por três dias, 13 ativistas (sendo 10 militantes do PSTU, um nacionalista, um menor do PSOL e uma sexagenária tricolor) que protestavam contra a visita de Obama no país. A um só tempo, o Estado, em sua forma democrático-liberal, se mostrava como um “comitê de negócios da classe dominante” e como uma “organização de repressão” dirigida contra os descontentes – como sugeriram, há muito tempo, os “ultrapassados” teóricos do pré-diluviano materialismo histórico.

Num salto geográfico – mas não analítico – chegamos a Atenas. Em meio à crise econômica, o governo do país requisitou mais empréstimos à banca internacional para conseguir pagar as dívidas que com ela arcara. Como condição pra receber o montante, o governo tinha que aprovar um pacote eufemisticamente chamado pela imprensa – sempre ela – de “austeridade fiscal”: demitir milhares e milhares de trabalhadores do serviço público, cortar direitos sociais e aumentar impostos, entre outras medidas que até mesmo o mais despótico dos generais da Birmânia sabe que não são lá muito “humanitárias”. Só elas, porém, poderiam salvaguardar os interesses materiais do partido da ordem de lá, composto por uma associação entre a banca internacional e a timorata burguesia grega. O antagonismo existente entre a vontade popular, isto é, entre a vontade da enorme maioria da nação, e os da ínfima minoria capitalista do país (associada à banca internacional) ficou “nítido como um girassol” de Fernando Pessoa, e se expressou fisicamente na oposição entre a Praça e o Parlamento, entre os trabalhadores que ocupavam a primeira e a polícia que violentamente defendia o segundo. O governo neoliberal “de esquerda”, talvez constrangido, talvez não, levou o pacote à votação. O Parlamento, fazendo jus à sua natureza (e não a subvertendo, como querem alguns), o aprovou. Do lado de fora, nas ruas, os trabalhadores fizeram greve geral, protestaram, queimaram pneus e tudo mais o que podiam fazer naquelas condições. O ódio era justo. A polícia fez o que era a sua função: reprimiu, prendeu, bateu e tudo mais o que podia fazer naquelas condições.

Retomando as idéias de Marx sobre a existência de uma separação relativa entre as esferas “econômica” e “política” na sociedade capitalista – decorrência do fato de que nela a apropriação de excedentes não se baseia, fundamentalmente, em expedientes “extra-econômicos” –, a arguta historiadora Ellen Wood, estudiosa da Grécia antiga, chamou a atenção para o que seria a essência e, ao mesmo tempo, a particularidade da democracia dos tempos modernos. Resultante política de um uma forma social baseada no trabalho livre assalariado, na qual os proprietários dos meios de produção não se diferenciam juridicamente dos não-proprietários, ou seja, dos que trabalham – o que não existia nem no mundo antigo nem no medieval –, a democracia moderna (diferentemente de sua antecessora ateniense) é formalmente acessível a todos os estratos sociais; somente nela, a “cidadania política” foi finalmente estendida (não sem muita luta dos movimentos operário, negro e feminista) a todos os segmentos da população (trabalhadores braçais, mulheres, negros, pobres e despossuídos em geral). Sob o capitalismo, assinalou Wood, a democracia política se manifestaria, então, na sua forma historicamente mais inclusiva, embora, ela, em função da separação relativa entre a “economia” e a “política”, já não decidisse efetivamente sobre os reais fundamentos da vida social dos cidadãos que dela “participam” (diferentemente da antiga democracia ateniense). Justamente por isso, ela podia ser uma democracia formalmente bastante ampliada, como jamais se vira antes. Corroborando a tese de Wood, e arriscando-nos a rapidamente lapidá-la, podemos dizer que, se é verdade que a “esfera política” já não delibera sobre as bases da exploração de classe – isto é, os parlamentos não votam a favor ou contra a “mais-valia”, ela simplesmente (economicamente) existe –, é também fato que a intensidade dessa exploração pôde, em alguns regimes democrático-liberais, ser debatida e até mesmo ocasionalmente freada graças à presença de algumas poucas representações políticas dos trabalhadores nas instâncias políticas formais. Ainda que de forma moderada, às vezes distorcida, os trabalhadores gozavam de alguma representatividade em certas democracias liberais, as quais não deixavam de ser, evidentemente, “democracias de uma minoria”.

A novidade apresentada pelas últimas décadas, sobretudo nos últimos anos, é que, em quase a totalidade das chamadas “democracias representativas”, já não há representação política alguma de amplas camadas da população e, por conseguinte, já não há sequer a chance de, pelos caminhos institucionais, impor limites aos desejos nada secretos do Capital. O caso da Grécia é exemplar. Ao aprovar o pacote exigido por uma minoria, mesmo sabendo que a ingente maioria do país era peremptoriamente contrária a ele, o Parlamento grego mostrou que se constitui, na verdade, em uma instituição totalmente indiferente à vontade popular. Parafraseando Marx, pode-se dizer que se essa instituição fora alguma vez um “corpo de parlamentares livremente eleitos pelo povo”, ela se transformou, indubitavelmente, em um “parlamento usurpador de uma classe” (os capitalistas), e “reconheceu, mais uma vez, que cortara, ela mesma, os músculos que ligavam a cabeça parlamentar ao corpo da nação”.

O caráter burguês da democracia moderna possivelmente atingiu seu paroxismo nos dias atuais. Ela já não é só uma democracia para a burguesia, mas é também uma democracia apenas para a burguesia. Dela só podem participar as alas do partido da ordem. Se na democracia antiga, aqueles que trabalhavam, os escravos, estavam dela excluídos (além das mulheres, dos metecos e dos xenos – estrangeiros residentes e não residentes, respectivamente), na democracia moderna, são também os que trabalham, o proletariado contemporâneo (seja ele formal, informal, precarizado, imigrante etc.), que se encontram alijados das instâncias políticas decisórias. Na Grécia, como em Portugal, Espanha e tantas outras partes do mundo, já não há nenhuma ligação entre a vontade da maioria de população e o poder político constituído, e isso talvez na terra de Clístenes adquira um simbolismo maior do que em qualquer outro lugar. Nas próximas eleições gregas, onde se manifestará a vontade dos milhões de insatisfeitos com o governo neoliberal “de esquerda”, mas que, tampouco, querem a volta dos neoliberais de direita? As últimas eleições portuguesas, aliás, foram elucidativas quanto a isso. A democracia burguesa atual, face à inexistência de uma alternativa organizada anti-sistêmica (revolucionária), faz com que, cada vez mais, enormes contingentes populacionais posicionem-se nos pleitos tal como torcedores de um time eliminado o fazem diante de uma disputa de pênaltis entre duas outras equipes que foram à final, e com as quais não simpatizam nem um pouco: só lhe resta torcer – torcer ou votar, tanto faz – contra aquela que mais desprezam, ou contra aquela que mais recentemente lhe impôs derrotas. As representações políticas da burguesia mundial, capitaneadas pelos representantes da burguesia grega, vêm cumprindo, assim, um inestimável papel didático-marxista. Despindo suas democracias de todos os disfarces, livrando-as de quaisquer rebuços, ensinam que a democracia burguesa atual é cada vez mais uma democracia “mutilada, miserável, falsificada, uma democracia só para os ricos, para uma minoria”, como bem disse, certa feita, o velho líder bolchevique. Mas isso já faz muito tempo.