Massacre de Shaperville em 1960
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Wilson H. Silva

Em 1969, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou o 21 de março como Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial. A data foi escolhida em função do Massacre de Shaperville,  em Johannesburgo, na África do Sul, onde, em 1960, 89 negros e negras foram mortos e centenas de outros gravemente feridos durante uma manifestação que reunia 20 mil pessoas contra a Lei do Passe, que obrigava a população não-branca (negros, mestiços ou indianos e asiáticos) a portar um tipo de “passaporte” que limitava a circulação e o acesso em locais públicos e privados.

O levante de Shaperville foi um momento decisivo na história de lutas dos sul-africanos contra um das mais asquerosas expressões do racismo que já existiu. E o fato da ONU ter sido obrigada a reconhecer a data não pode ser interpretado como uma demonstração da preocupação dos organismos internacionais da burguesia com o combate ao racismo. Foi, sim, um reflexo do impacto que o combate ao apartheid estava ganhando num mundo convulsionado pelas mobilizações de negros e negras, mulheres, LGBT’s; o processo de luta pela independência dos países do continente africano e outras rebeliões que explodiram no mundo na década de 1960.

Como era de se esperar, as boas intenções da ONU nunca saíram do papel e, até hoje, o racismo corre solto mundo afora, intensificando-se, inclusive, em momentos de crise como o que vivemos, quando a opressão racial é usada como um forte instrumento para aumentar a exploração de milhões. Mas, também, e cada vez mais, crescem as rebeliões contra esta situação.

Os permanentes massacres do capital
Hoje, quando olhamos para a África, assistimos indignados ao drama dos refugiados, empurrados para fora de suas terras por guerras, pela fome, a miséria e as epidemias. Milhões que vagam entre os países do próprio continente ou tentam entrar na Europa, enfrentando a morte na travessia do Mar Mediterrâneo, em cenas que em tudo nos fazem lembrar dos “tumbeiros”, os malditos navios negreiros da época da escravidão.

Parcela significativa da maior onda de migrações e deslocamentos forçados desde a II Guerra Mundial, africanos e os outros povos majoritariamente “não-brancos” (árabes, particularmente sírios) que conseguem chegar a Europa se veem, então, cercados pelos muros de arame farpado, pela violência e as péssimas condições de vida que brotam da combinação de racismo e xenofobia.

Nas Américas, a população negra do Haiti – o país onde ocorreu a primeira revolução negra da história – vive a violência da ocupação militar pela Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), vergonhosamente liderada pelo governo petista. O mesmo governo que não garante o mínimo de condições dignas para as dezenas de milhares de refugiados haitianos, senegaleses, nigerianos, congoleses que chegam em cada vez maior número no país.

No Brasil, o mito da democracia racial não consegue mascarar o massacre, pelas mãos da polícia, do povo pobre e negro nas periferias ou dos quilombolas e indígenas no campo. Nem sobrevive às humilhações cotidianas e aos casos que se multiplicam no futebol, nas redes sociais, nos meios de comunicação etc. minando cada vez mais o mito de que somos um país que recebe a todos de braços abertos e onde somos todos iguais, sem distinção de cor, como insiste Regina Casé, requentando as tardes de domingo.

Já nos Estados Unidos, as vozes de Ferguson, Baltimore e tantas outras cidades mantém nas ruas o grito de que “Black Lives Matter” (vidas negras importam), questionando, inclusive, a ideia do “empoderamento individual” como forma de superar o racismo. Afinal, o fato de ter o primeiro negro na presidência (ou de que, no caso de Baltimore, a prefeita, o comissário de polícia e a maioria dos vereadores sejam negros) não impediu o assassinato de Freddie Michael Brown, Trayvon Martin e de tantos outros.

E também lá, como aqui e na Europa, ideologias e grupos nazifascistas, políticos fundamentalistas e conservadores reacionários de todos os tons colocaram suas garras para fora, impulsionados pelo aumento da crise econômica.

O apartheid do capital
Há 56 anos, sul-africanos se levantaram contra um dos frutos mais deprimentes e repugnantes do capitalismo em sua fase imperialista, quando, no final do século 19 (depois de séculos de destruição impostos pelos crimes do tráfico negreiro), o continente africano foi retalhado entre as potências econômicas da Europa.

O levante de Shaperville foi um grito contra absurdos racistas que previam a divisão da população em quatro ‘setores raciais’; criminalizavam casamentos e até mesmo relações sexuais interraciais e separavam todos os aspectos da vida social (do transporte à educação, dos locais públicos ao acesso ao emprego) em base ao critério racial, utilizando a forte repressão a todos que se levantassem contra o regime.

O massacre foi uma tentativa de silenciar a revolta do povo negro; mas os ecos dos que deram suas vidas pela liberdade se espalharam pelo mundo, tornando-se um símbolo da luta pela igualdade racial. Por isso, lembrar o 21 de março é também celebrar esta história de resistência.

Uma luta que continua necessária inclusive no país que varreu a legislação do apartheid.  Em 16 de agosto de 2012, a cruel repressão policial a uma greve em uma das maiores mineradoras do mundo, a Lonmin, resultou no assassinato de 42 mineiros, além de 72 feridos e 200 presos (para saber mais, leia os artigos abaixo, sobre a África do Sul).

Desta vez, lamentavelmente, o massacre aconteceu sob o governo da Aliança Tripartite – formada pelo Congresso Nacional Africano (CNA), o Partido Comunista e a Congresso Nacional dos Sindicatos Africanos (Cosatu) – e com a atuação decisiva, e criminosa, de Cyril Ramaphosa, ex-dirigente do Sindicato dos Mineiros (NUMSA) e da Cosatu, braço direito de Nelson Mandela durante as negociações que levaram à transição negociada que marcou a queda do regime e, hoje, um dos representantes mais asquerosos da “nova burguesia negra”, sendo acionista da Lonmin, dono de uma empresa com 100 mil empregados (a maioria terceirizados) e de uma das maiores fortunas da África.

Não por acaso, o que aconteceu em Marikana entrou para a história como “A Sharpeville do CNA”, É um dos trágicos reflexos da aliança, no governo, de setores dos movimentos sociais, organizações de “esquerda” e a burguesia, que faz com que negros e negras ainda tenha que lutar, cotidianamente, por liberdade e melhores condições de vida e de trabalho.

Agora, contudo, não se enfrentando com leis as racistas, mas, sim, lutando contra o sistema que sempre este por trás delas e, lamentavelmente, foi preservado pela transição negociada pelo CNA: o capitalismo. O sistema que manteve aberto e tem ampliado o abismo socioeconômico entre negros e brancos, fazendo, por exemplo, que, ainda hoje, a expectativa de vida de negros(as) seja 23 anos menor do que a de brancos(as) e que seus salários sejam, em média, 8 vezes menor da minoria branca que continua encastelada no poder econômico.

É inegável que a luta pelo fim do apartheid nutriu e inspirou o movimento negro ao redor do mundo e a figura de Nelson Mandela se transformou em um símbolo da luta pela igualdade racial. No entanto, não há como negar, também, que muito pouco mudou no país exatamente porque a Aliança Tripartite mergulhou o país no neoliberalismo, preservando o grosso da economia nas mãos da elite branca e incentivando, através de um plano chamado “Empoderamento Econômico dos Negros”, a formação de uma elite e de uma burguesia negra.

“Amandla Awethu!”: um grito ainda necessário
Quando tomaram as ruas de Shaperville em 1960, os(as) sul-africanos(as) entoavam a mais conhecida palavra de ordem da luta contra o apartheid: “Amandla Awethu” (o poder é nosso). O mesmo grito que têm ecoado não só em Marikana, mas também diversos outros movimentos que têm surgido na África do Sul questionando o que hoje é conhecido como “apartheid econômico”.

No final de 2015, assistimos a um poderoso levante da juventude sul-africana, que paralisou as universidades contra o aumento das taxas cobradas pelas instituições, exigindo, também, o fim da terceirização e o aumento dos salários dos trabalhadores não-docentes. Uma luta cujo sentido foi sintetizado por Palesa Mcophela, ativista da revolta estudantil, em uma entrevista publicada na revista Amandla!, em dezembro de 2015: “Queremos socialismo. Queremos educação gratuita para todo mundo. Queremos o desenvolvimento da África do Sul e da África inteira.”

Há tempos, também, o NUMSA, que têm 300 mil na base, rompeu com o governo e está convocando a formação de um novo movimento sindical e de uma organização política socialista; já tendo organizado vários seminários e congressos para discutir o tema, como o que aconteceu em 2014, quando representantes do Quilombo Raça e Classe e da CSP-Conlutas foram convidados para falar sobre a luta contra o racismo e o processo de reorganização política e sindical no Brasil.

O convite teve a ver com o fato de que os próprios sul-africanos identificam inquestionáveis (e lamentáveis) semelhanças na trajetória dos partidos de Lula e Mandela. Aqui, também, os governos de aliança de classes do PT, ao mesmo tempo em que pregam a superação do racismo através da “cidadania” (traduzida em ascensão social individual), não tem oferecido nada mais que migalhas em forma de políticas afirmativas e programas sociais mínimos para a classe trabalhadora, pobre e moradora das periferias, majoritariamente negra.

E, para aplicar seu projeto, também cooptou parte significativa dos movimentos negros, engessando-os na lógica neoliberal e transformando-os em porta-vozes da ideia de que é possível “reformar” o sistema; de que é possível conquistar a igualdade racial e social sem romper com o sistema capitalista.

Mas, como sabemos, além do abismo socioeconômico entre brancos(as) e negros(as) se aprofundar no mesmo ritmo da crise, os casos de racismo são cada vez mais alarmantes e o genocídio da população negra e pobre das periferias equivale, a cada ano, a dezenas de Sharpeville e Marikana.

Contudo, assim como na África do Sul, no Haiti, em Baltimore ou na Europa, negros, negras, indígenas e povos não-brancos continuam a lutar. No Brasil, os exemplos são muitos: as marchas e protestos contra o genocídio – que ganharam força particularmente de 2013, quando o grito “Cadê o Amarildo?” ecoou nas Jornadas de Junho –, rebeliões populares como a do Pavâo-Pavãozinho e, inclusive, o aumento da consciência racial (que, entre as mulheres tem assumido a forma do rompimento com a “ditadura da chapinha”);

Tudo isto tem colocado em cheque as farsas da democracia racial e da teoria do embranquecimento. E destruir essas ideologias e avançar para uma sociedade sem distinções de raça e classe é fundamental para cada homem e mulher, negro e negra, que nada tem mais nada a perder, exceto as correntes que lhes aprisionam. Uma tarefa que também precisa ser abraçada por brancos e brancas pobres e pelos demais setores historicamente marginalizados, como mulheres e LGBT’s. Uma luta que só pode ser travada de forma independente dos patrões e dos governos. Com raça e classe.

Uma luta de raça, classe e sem fronteiras
Algo particularmente importante no atual cenário político e econômico, falsamente polarizado entre PT, PCdoB, PMDB e seus aliados, de um lado, e PSDB e a direita reacionária, de outro. O movimento negro não deve depositar confiança alguma em qualquer um destes dois lados de uma mesma moeda. Ambos são projetos burgueses e neoliberais que nada têm a oferecer aos negros e negras, exceto a constante precarização das condições de vida.

Não podemos nos alinhar nem à direita instalada na Casa Grande, nem aos agentes e capatazes do capital em que o PT transformou a si próprio. Por isso, fazemos o chamado para que o movimento negro rompa com o governo e venha construir nas lutas e nas ruas das periferias, um programa de raça e classe.

Uma luta que não pode se limitar ao Brasil, já que o racismo desconhece fronteiras e responde à lógica internacional do imperialismo, não sendo um acaso que tanto o acirramento do racismo quanto das rebeliões contra ele tenham se intensificado a partir de 2008, quando o mundo naufragou na atual crise.

Hoje, ao lembramos de Shaperville, não podemos ter em mente somente os muitos massacres que ocorreram e ocorrem no mundo, mas, acima de tudo, os incessantes levantes e protestos protagonizados pelo povo negra, apesar de todas tentativas de nos silenciar e invisibilizar nossa história e nossas lutas.

E por isso é também uma data para lembramos dos ensinamentos de Malcolm X, Karl Marx e Leon Trotsky em relação ao tema. O líder negro norte americano, depois de uma visita a África, se convenceu de que a luta contra o racismo não é contra os brancos em geral, mas sim, contra o sistema que faz com que um punhado deles concentre praticamente toda a riqueza do mundo, o que o fez concluir que “não há capitalismo sem racismo”.

Já Marx, ainda no século 19, escreveu, em “O Capital” que o “trabalhador de pele branca não será libertado onde o de pele negra continuar estigmatizado”, o que faz da luta contra um racismo uma tarefa de todos os trabalhadores, do povo pobre e da juventude.

Uma unidade fundamental para o destino da humanidade, como nos ensinou Leon Trotsky ao escrever, na década de 1930, que é papel fundamental dos revolucionários “encontrar o caminho que nos conduza à consciência dos trabalhadores negros, chineses, hindus e a todos os oprimidos desse oceano humano constituído pelas raças ‘não brancas’, que são as que terão a última palavra no desenvolvimento da humanidade”.

Ou seja, “que a revolução mundial ou será negra, ou não será!” Não só porque os não-brancos são a maioria absoluta da população mundial e a da classe trabalhadora, em particular. Mas, acima de tudo porque só poderemos dizer que a revolução pela qual lutamos tenha atingido seus objetivos quando os mais explorados e oprimidos realmente conquistem liberdade e igualdade plenas.

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