Não é raro que alguém se pergunte como, em um perío­do tão “obscuro” como o da ditadura, surgiram nomes tão geniais, como os ainda atuantes Chico Buarque e o diretor teatral José Celso Martinez Correâ; ou já falecidos, como Glauber Rocha. Os 40 anos do assassinato de Edson Luís, em 28 de março, e os 44 do golpe, em 1º de abril, formam um bom momento para entendermos como a cultura e as artes moveram-se em um período marcado por uma situação tão contraditória: a pressão libertária vinda da rebelião juvenil mundial, em 1968, confrontando-se com o crescente cerco da ditadura.

1968: “queremos o impossível”
Os anos 60 foram marcados por uma juventude que sacudia a poeira dos conservadores anos 1950. Jovens mulheres encurtaram suas saias na proporção inversa em que os homens deixaram crescer seus cabelos. As pílulas anticoncepcionais rivalizavam com as de LSD. Beatles, Stones, Jimi Hendrix e Janis Joplin estremeciam corpos e mentes juntamente com Jim Morrison e Bob Dylan. Nas telas, Godard, Pasolini e Antonioni buscavam novas linguagens e discursos.

O ano de 1968 começou com os fluídos lançados, em janeiro, pela “Primavera de Praga”, que prometia uma “revolução política” na stalinista Tchecoslováquia e que teve suas flores pisadas pelas tropas do Pacto de Varsóvia.

Nos Estados Unidos, os efeitos da fracassada campanha no Vietnã levavam milhões às ruas: dos sindicalistas aos pacifistas; do movimento negro (cujo líder Martin Luther King havia sido assassinado em 4 de abril) ao feminismo; da comunidade gay e lésbica à juventude em geral. A juventude era a principal protagonista desses processos, o que se expressou tanto na sua forma única, como nas suas limitações.
Da França, fortes ventos ajudaram a chacoalhar ainda mais o cenário político-cultural. A invasão da Sorbonne foi o estopim para greves gerais envolvendo até 10 milhões de trabalhadores e sucessivas manifestações, com nada menos que 1 milhão de pessoas. Em frases como “É proibido proibir”, “A imaginação no poder”, o recado inspirador: “Somos realistas companheiro, queremos o impossível…”.
No Brasil, quatro anos de ditadura não haviam retirado os jovens das ruas. Era o início de uma nova onda de mobilizações que sacudiria o país durante todo o ano, até o famigerado AI-5.

Apesar de você
Começavam os anos 70, uma longa década marcada por prisões, torturas, assassinatos, “desaparecidos”, censura e uma fascistóide investida contra a arte e a cultura. A mutilação ou a completa censura atingiu mais de 500 filmes, 450 peças teatrais, outras cinco centenas de letras de músicas e um sem-número de programas de rádio e TV.

Uma repressão às vezes brutal, como quando atores de “Roda-Viva” (de Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez Corrêa) foram despidos e espancados por membros do “Comando de Caça aos Comunistas” (CCC).

A própria existência da peça parece contraditória com o contexto ditatorial. Como também soa contraditório que 1968 tenha sido o ano de lançamento do movimento tropicalista, com Caetano Veloso e o “falecido” cantor e atual ministro Gilberto Gil; de produção de “O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade”, de Glauber Rocha; dos parangolés (arte para vestir) e instalações de Hélio Oiticica; da explosão de raiva de Caetano na apresentação de “É proibido proibir” no mesmo Festival da Canção que deu o segundo lugar a “Pra não dizer que não falei de flores”, um hino da esquerda, de Geraldo Vandré.

Essa efervescência não foi casual. Foi fruto do conflito, produto de um contexto em que se mesclavam e se enfrentavam a herança nacional-desenvolvimentista dos anos 1950, o reformismo populista do início dos 60, os ventos revolucionários, a entrada de novos atores nos movimentos sociais e a crescente repressão política e social.
Expressão extremada foi o Tropicalismo. Resgatando os ensinamentos de Oswald de Andrade, no seu Manifesto Antropófago, jovens músicos e artistas avançaram com voracidade sobre o mundo ao redor, deglutindo influências, mordiscando aspectos da realidade, canibalizando, inclusive, as contradições da ditadura, para produzir uma nova forma de expressão.

Uma explosão criativa que marcou mais que a música. Repercutiu no “Cinema Marginal”; explodiu da “geléia geral” de Torquato Neto e dos poetas concretistas, como Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos; continuou a vibrar nos palcos alternativos. Apesar de (e inclusive devido a) todos esforços nefastos da ditadura.

A resistência das margens
Nos setores mais vanguardistas, a prática antropofágica impregnou a própria forma das obras. Numa versão tupiniquim do famoso lema de Maiakovski – “sem forma revolucionária não há arte revolucionária” –, pintores, músicos e artistas buscaram novos formatos para as manifestações artísticas, com algo em comum: a idéia de intervir na realidade, transformar o estado das coisas, questionar e romper com as bases de tudo que tinha a ver com a lógica da “ordem e do progresso”, tão cara aos ditadores.

Na prática, isso contribuiu para desenvolver novas formas de expressão. No teatro, os ensinamentos de Brecht extrapolavam o palco, ganhando a forma de perfomances e happenings; nas artes plásticas, o inconformismo voltava-se contra os estilos tradicionais e investia na experimentação e nas novas linguagens, como nos quadros de Cildo Meireles, Antonio Henrique do Amaral e Roberto Gershman.

Numa outra sintonia, mas também engajados, outros artistas seguiam o caminho indicado por um poema de Carlos Drummond de Andrade, escrito décadas antes, sob a ditadura de Vargas, o sensacional “Nosso tempo”: “É tempo de meio silêncio / de boca gelada e murmúrio / palavra indireta / aviso na esquina / Tempo de cinco sentidos num só / o espião janta conosco”. Forçada a ser metafórica, a arte se fez mais poética, exigindo mais sensibilidade para burlar a mediocridade dos ditadores.
Essa foi a trilha de Chico e de muitos que vieram depois. Uma trajetória que cruzou com a de gente tão diversa como Raul Seixas, que embriagado pelos ares de 68, entrou nos 70 pregando uma utópica “sociedade alternativa”.
Nem mesmo a perseguição dos ditadores, particularmente do general Emílio Garrastazu Médici – que levou Chico, Raul, Caetano e Gil ao exílio – fez com que a chama se apagasse.

O que se viu nos anos seguintes foi o mesmo embate, que nas artes, pelos menos entre os setores mais sintonizados da sociedade, continuou inspirando muitos outros que souberam subverter a ordem nada natural das coisas e traçar seu caminho pelas margens e na contracorrente do regime.

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