Secretaria Nacional LGBT

Roberta Maiani, Dani Bornia e Albano Teixeira,  da Secretaria LGBT do PSTU-RJ; e Marina Cintra, do Rebeldia – Juventude da Revolução Socialista

Uma cartilha com tom de deboche, que reforça preconceitos 

Como afirmamos no artigo anterior, o setor LGBT mais vulnerável à pandemia é, também, o mais marginalizado socialmente: as mulheres trans, dentre as quais, lamentavelmente, 90% vivem em situação de prostituição. E também é em relação a elas que fica mais evidente a hipocrisia criminosa do governo Bolsonaro.

E é impossível falar em hipocrisia neste governo, sem mencionar Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, aquela que assumiu dizendo que, apesar do Estado ser laico, fazia questão de se apresentar como “terrivelmente cristã” e é conhecida por defender com unhas e dentes, a ideia de que “menino veste azul e menina veste rosa”.

E, desta vez, ela foi longe na cara-de-pau, lançando, no dia 1º de abril, uma cartilha (com três páginas…) de combate ao coronavírus feita especialmente para a população LGBT, reconhecendo que “uma parcela significativa dessa população vive em condições de maior vulnerabilidade social e, por isso, pode estar mais suscetível à contaminação”. A história toda ao redor da cartilha chega a ser um deboche e o resumo é que Damares, na verdade, com ela, reforça preconceitos e não oferece políticas de proteção às LGBTs

A primeira versão que veio a público, editada com fundo lilás e detalhes nas cores do arco-íris, contrariava seu chefe em uns tantos aspectos, principalmente na defesa do isolamento social e na menção explícita aos profissionais do sexo, e por isso mesmo, não demorou pra ser deletada do site.

A que está valendo (todinha em azul…), se limita ao conselho “evite sair de casa” e retirou a referência à prostituição, mantendo, contudo, a mesma recomendação estapafúrdia que aparecia na que foi censurada, agora limitada trabalhadores autônomos e pessoas sem renda fixa: “Mas não é na crise que nascem as boas ideias? Se tiver que trabalhar, converse com seus clientes, tente a opção do serviço virtual (…). Se fizer parte do seu trabalho, que tal começar um trabalho home office?” 

Espalhando preconceitos, ferindo o Estado laico

Se não bastasse dar “o serviço virtual” como única opção para milhares de trans que se prostituem, a cartilha ainda está recheada de estereótipos e preconceitos em relação à comunidade LGBT e ao nosso modo de vida. Como se não fizéssemos outra coisa senão procurar sexo e diversão (que, sim, fazemos sem culpa…, mas também trabalhamos, estudamos etc.), a cartilha enfatiza que se “você frequenta bares, academias, saunas, boates, clubes e festas adie para evitar a transmissão!” e, de forma ainda mais bizarra, aconselha que não compartilhemos “‘bitucas’ de cigarro, copos ou outros materiais!”

E, se ainda não fosse o suficiente, a cartilha chega ao fim com a seguinte sugestão: busque a ajuda de ONGs para obter algum apoio material, procure cultos religiosos e se apoie na fé para manter a mente e o corpo sãos e, assim, “ajudar no controle da epidemia”.

O fato é que, ao não propor nada de concreto para garantir nossa sobrevivência física, nem oferecer medidas efetivas para combater a marginalização e a vulnerabilidade social, a cartilha mal esconde a indisfarçável preferência deste governo pelo “reaquecimento da economia” em detrimento da proteção das vidas humanas.

O que precisamos, pra além de conselhos vagos, preconceituosos e que, ainda ferem o Estado laico, são políticas concretas, como pagamento de um salário por mês para sobreviver nesse período, bem como condições dignas de moradia e emprego para que as trans (e demais mulheres) consigam sair da situação de prostituição.

Como também seriam necessárias políticas específicas para amenizar o possível impacto do coronavírus na saúde de LGBTs que já tenham condições pré-existentes que, ao debilitarem o organismo, facilitam a atuação e letalidade do vírus. Neste sentido a cartilha, por exemplo, só menciona o HIV/Aids e, mesmo de forma rasteira.

E, apesar de que, felizmente a AIDS já não é vista como uma “peste gay” (inclusive, contra a vontade de gente como Damares), mundo afora a comunidade LGBT e até a Organização Mundial de Saúde, tem, sim, se preocupado com aqueles e aquelas que, entre nós, estão vivendo com HIV. Afinal, a possibilidade de uma catástrofe é proporcional aos números: aqui, no Brasil, estamos falando de quase 900 mil pessoas e, no mundo inteiro, cerca de 40 milhões. A maioria, mesmo quando saudável e mantendo uma vida regular, carrega algum nível de debilitamento físico, agravado por precárias condições de vida.