Aprovação das cotas no Senado foi vitória parcial

O Senado aprovou, no dia 8 de agosto, o projeto de lei (PLC) 180/2008, que determina políticas de ações afirmativas em todas as universidades e escolas técnicas federais do país . A lei, que já havia sido aprovada pelos deputados e agora só depende da sanção da presidente Dilma, é uma mescla de cotas sociais e raciais.

Uma vez sancionada, já no próximo vestibular, 50% das vagas destas instituições deverão ser reservadas para alunos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. Dessa porcentagem, metade será destinada a estudantes que tenham renda familiar de até um salário mínimo e meio (R$ 933,00) por pessoa.

Ainda dentro do universo de vagas destinadas a alunos que vieram das escolas públicas, também serão aplicados critérios raciais: estudantes autodeclarados negros, “pardos” e indígenas terão cotas proporcionais à porcentagem da população de cada grupo nos estados em que vivem, de acordo com os dados do IBGE, não importando a renda per capita do aluno, contanto que ele ou ela tenha cursado escola pública.

A título de exemplo, em São Paulo, onde a população que se declara negra ou indígena é de 34,7%, para cada 100 vagas, 17 seriam ocupadas por estudantes destas etnias; na Bahia, onde 76,4% se declararam “não-brancos”, haveria 38 vagas para os cotistas. Já em Santa Catarina, seriam oferecidas apenas oito vagas (já que a população negra, parda ou indígena soma 15,4%). Caso estes porcentuais não sejam alcançados por não-brancos, as vagas remanescentes passariam a ser ocupadas por qualquer estudante que se encaixe no critério geral em relação ao ensino médio.

Apesar das limitações e contradições que cercam a aprovação da lei, é evidente que ela implicará numa significativa e bem vinda mudança na composição social e racial dos institutos de ensino federais, principalmente nas universidades. Um levantamento feito pelo jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, revelou que nas 59 instituições federais há 52.190 vagas reservadas a cotistas, de um total de 244.263. Com a lei aprovada, este número poderá aumentar em até 134%, elevando as vagas destinadas a cotas sociais e raciais para cerca de 120 mil estudantes.

Não temos dúvidas de que esta mudança ainda está muito distante do modelo – tanto social quanto racial – de universidade que precisamos. Mas é, inegavelmente, uma importante conquista, mesmo que parcial, do movimento negro e seus aliados (e não uma “dádiva” do governo, como a história tem sido vendida) que há décadas, literalmente, luta por uma política de cotas.

Uma conquista, acima de tudo, porque, independente da sub-representação racial (como também da ausência de qualquer menção a políticas de permanência), o projeto é o reconhecimento institucional de que o racismo é um obstáculo concreto também na educação.

Uma conquista que, inclusive, pode e deve ser ampliada, agora, com os milhares de novos cotistas que, uma vez no interior das universidades, poderão se engajar nos movimentos negro e estudantil, na luta não só pela ampliação das ações afirmativas e de políticas de permanência (como bolsas transporte, alimentação e moradia estudantil), mas também em defesa da democratização da universidade e da construção de uma sociedade da qual o racismo seja definitivamente banido.

Contra as cotas, só os racistas!
Esta foi a principal palavra de ordem utilizada por entidades do movimento negro, estudantil e popular de São Paulo, no dia 13 de maio, durante uma ocupação “simbólica” da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que carrega, ao mesmo tempo, o título de umas das melhores instituições de ensino superior do país e de uma das mais racistas e elitistas que se tem notícia, como comprovam as ridículas porcentagens de estudantes (cerca de 5%) e professores (escandalosos 0,9%) negros no seu interior.

A situação da USP é exemplar de um país dirigido por uma elite cujo racismo nunca teve nada de “cordial” e muito menos se aproximou sequer de um arremedo do mito da “democracia racial”, como esta mesma elite insiste em defender. Na educação, particularmente, a discriminação racial pode ser constatada em todos os níveis: do total desprezo aos milhões de mulheres negras e pobres que não têm creches para seus filhos à ridícula parcela de negros e negras que chega às salas de aula das universidades.

Os dados do próprio governo, mesmo que afetados por distorções, não deixam dúvidas. Em 2009, por exemplo, a taxa de analfabetismo entre negros e negras era mais do que o dobro (13,42%) daquela registrada entre brancos (5,94%). No ensino superior, enquanto, em nível nacional, os jovens brancos compõem 21,3% dos matriculados; os negros não ultrapassam 8,3% das vagas.

No decorrer das últimas décadas, quando o movimento negro levantou a bandeira das cotas, diversos setores da sociedade, de intelectuais conservadores ao grosso da burguesia nacional se levantaram para defender seus privilégios e manter esta situação.

No geral, essa defesa se escondeu em por trás da “simples” negação do racismo, como no caso do diretor de da Central de Jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, que em 2006 publicou um livrinho asqueroso intitulado “Não somos racistas”. Contudo, no interior das universidades, o que tem prevalecido é a oposição às cotas em nome de uma pretensa defesa da “qualidade de ensino” e do critério do “mérito” para se ter acesso ao ensino superior.

Educação não é mérito, é direito
Em primeiro lugar, vale dizer que qualquer um que oponha cotas à defesa da qualidade da Educação no Brasil é um tremendo hipócrita. A poderosa greve das federais e a realidade cotidiana no interior das salas de aula são provas mais do que concretas de que o que realmente ameaça a qualidade na educação do Brasil são exatamente as políticas e projetos defendidos pela elite para garantir seus privilégios econômicos e sociais. Uma elite que, também, mal disfarça seu racismo e preconceito de classe ao afirmar que a presença de negros e negras ou estudantes de baixa renda na universidade irá significar uma queda da qualidade.

Durante a votação, esta postura ficou evidente na postura do senador tucano Aloysio Nunes (SP), o único que, depois do acordo costurado pelo governo, se posicionou abertamente contra a medida: “Querem dar o mesmo peso para alunos que estudam em escolas de melhor ou pior qualidade, é um absurdo completo” .

Fora do congresso, a maior resistência tem sido por parte daqueles que têm em suas mãos a tarefa de implementar a medida, como os reitores das universidades, reunidos na Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, a Andifes, que, em nota oficial, se posicionou contra a medida, utilizando como argumento uma pretensa defesa da “autonomia universitária” (a mesma que estes senhores sempre atropelam, sem dó nem piedade, cada vez que “convidam” a polícia para reprimir os movimentos sociais).

Desculpas à parte, o que se encontra por trás da rejeição só pode ser chamado de racismo, como também a motivação não tem outra origem senão no desejo de manter as “cotas” que sempre existiram neste país: a reserva de vaga para os filhos da burguesia e da parcela mais endinheirada da classe-média, a maioria deles brancos.

Disfarçados em alguns, o racismo e elitismo aflora de forma mais explícita principalmente na relação que estes setores estabelecem entre cotas e “qualidade”. Reitores como Walter Albertoni, da Federal de São Paulo (Unifesp), declararam à imprensa seu “temor” em como a medida irá afetar, negativamente, cursos “mais exigentes”, como Medicina.

Outros opositores das cotas foram ainda mais claros, como Cláudio de Moura Castro (assessor de um dos maiores grupos de ensino privado do país, o Positivo) que em entrevista ao portal da revista “Exame” foi categórico em afirmar que a situação das universidades irá “piorar”, principalmente em termos da qualidade, principalmente em áreas como “medicina, engenharia, direito”, onde, pela lógica rasteira e obtusa do “doutor em Educação”, os professores, com a entrada dos cotistas, terão que “reprovar maciçamente ou baixar o nível”.

Na verdade, grande parte da rejeição às ações afirmativas tem origem exatamente no título que Claúdio de Moura ostenta. A burguesia e reacionários em geral perdem a compostura com a simples possibilidade de que negros e negras carreguem “doutores”, cujo monopólio tem sido mantido pela elite branca deste país.

Posição que, talvez, tenha ganho sua versão mais “honesta” em um editorial publicado por um principais porta-vozes da burguesia nacional , a “Folha de S. Paulo”, no dia 31 de julho. Aproveitando para, também, atacar a greve nas federais, o jornal disparou: “Universidades federais perdem o foco com greves e cotas, quando deveriam dedicar-se a forjar uma elite de docentes para o país” , o que estaria colocando as instituições sob “sérias ameaças”, na medida em que “obriga” as universidades a “destinar número tão grande de vagas com base em algo diverso da capacidade acadêmica do candidato.”.

Diante de argumentos como estes, a primeira coisa que precisa ser lembrada é que esta linha de raciocínio não resiste sequer a mais óbvia das constatações: há décadas, a qualidade do ensino superior tem despencado e não pela presença de negros ou estudantes de escolas públicas no seu interior, mas sim pelas políticas educacionais dos mesmos senhores que têm barrado o acesso destes setores à universidade.

E a discriminação e racismo ficam ainda mais evidente, quando sabemos que estes mesmos senhores sabem muitíssimo bem que estão mentindo ao afirmarem que cotas são uma ameaça à qualidade, pois todos eles têm dados das universidade em que a medida já foi aplicada e que provam exatamente o contrário.

Por exemplo, os resultados sobre o desempenho de cotistas na Unicamp, Universidade Federal da Bahia (UFBa), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), não deixam dúvidas sobre isso. No biênio 2005-2006, cotistas obtiveram maior média de rendimento em 31 dos 55 cursos (Unicamp) e coeficiente de rendimento (CR) igual ou superior aos de não-cotistas em 11 dos 16 cursos (UFBa).

Exatamente por não ter apoio nenhum na realidade, é que podemos afirmar com certeza que a defesa do “mérito”, além de cheirar a preconceito de raça e classe, também esconde uma outra coisa: o temor de qualquer mudança, por menor que seja, na composição social e racial da universidade possa significar uma aumento, no interior da universidade, da resistência ao projeto de sucateamento da universidade.

Como sempre defendemos, a entrada de negros e estudantes de baixa renda na universidade, é parte fundamental da luta pela democratização da universidade (inclusive no que se refere à sua produção acadêmica, já que, via de regra, a academia simplesmente ignora as demandas destes setores) e temos certeza que a presença de um maior número de estudantes provenientes destes setores, a exemplo do que vimos na recente mobilização da Federal do Rio Grande do Sul (com a ocupação da reitoria, numa aliança entre cotista e os movimentos negro e estudantil), irá contribuir em muito para o fortalecimento desta luta.

Uma nova “lei áurea”?
Exatamente por isso, a aprovação pelo Senado causou um enorme impacto particularmente entre os ativistas do movimento negro que sabem muito bem há quanto tempo e o quanto se têm lutado por cotas neste país. Iniciada antes mesmo do golpe militar, a luta por ações afirmativas ganhou destaque já no período da democratização, quando o movimento negro se reorganizou.

De lá pra cá, e particularmente a partir do final dos anos 1980, o debate cumpriu um papel fundamental ao provocar a discussão sobre o racismo no Brasil, questão sempre negada (ou amenizada, chegando a ser chamado de “cordial”), em função dos lamentáveis danos provocados pelo mito-farsa da “democracia racial”.

A polêmica foi alimentada de diversas formas. Além da já mencionada reação irada de intelectuais de direita, dos setores mais conservadores e racistas da sociedade, também dentro da esquerda e no interior dos movimentos sindical, popular e estudantil e, inclusive, do movimento negro, não faltaram setores que, por não enxergarem o racismo como um elemento estrutural de nossa sociedade, rejeitaram a proposta, com argumentos de que isto “dividiria a classe”, na medida que não considerava os brancos pobres.

Contudo, os setores mais combativos do movimento negro e aqueles que defendem, como nós do PSTU, uma política combine, permanentemente, raça e classe, não pararam de lutar (com diferentes políticas e perspectivas, vale destacar) por políticas de ações afirmativas, conseguindo levar o debate para todos os cantos.

Foi isto que garantiu, por exemplo, que, muito antes da votação do Senado, algum tipo de cota tenha sido conquistado em várias instituições de ensino. Por isso mesmo, não causa surpresa o entusiasmo dos ativistas com a aprovação do projeto.

Contudo, mesmo que reconheçamos esta importante vitória, é preciso apontar seus limites e contradições. Principalmente para que não se caia no discurso dos setores governistas que, com a certeza da sanção da presidente, estão prestes a entronar Dilma como uma nova princesa Isabel.

Em primeiro lugar, seria uma ingenuidade não perceber que Dilma “decidiu” ceder à pressão dos movimentos justo agora, às vésperas das eleições (num delicado momento, no qual a Frente Popular está cercada pela lama da corrupção por todos os lados) e em meio à poderosa greve no interior das Federais.

Em segundo, porque, assim como no caso da liberdade assinada pela “bondosa princesa”, também não se pode desconsiderar que as cotas foram aprovados no interior de um sistema que conspira contra a própria idéia de uma universidade democrática e que atenda aos interesses da maioria da população.

Limites e contradições
A primeira contradição está no simples fato de que a lei só tenha sido aprovada 13 anos desde começou a tramitar, dez dos quais o PT esteve no governo. Tempo suficiente, inclusive, para que as mobilizações tenham arrancado cotas raciais (ou sociais) em diversas universidades e, inclusive, forçado uma votação no Supremo Tribunal Federal, que foi obrigado a reconhecer que o princípio da reserva de vagas era constitucional, reconhecendo sua necessidade diante das conseqüências do racismo.

A votação, particularmente, deixou o governo Dilma numa situação bastante delicada, na medida em que desmascarou sua covardia em não implementar a medida nas Federais. Covardia que ficou particularmente evidente na votação do Estatuto da Igualdade Racial.

Aprovado em 2010, o Estatuto teve as reivindicações históricas do movimento negro (que constavam de sua versão original) retalhadas por um vergonhoso acordo entre Paulo Paim (PT-RS), a SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e senador Demóstenes Torres (DEM-GO) – ele mesmo, o lacaio de Cachoeira – que resultou na retirada de qualquer referência às cotas, à regularização das terras quilombolas e até mesmo aos termos raça, escravidão e identidade negra.

Da mesma forma que o Estatuto ficou muito aquém do que o movimento defendia, a proposta aprovada esta semana também está longe do que os setores mais conseqüentes do movimento sempre defenderam.

Em termos raciais, assim como a Secretaria de Negros e Negras do PSTU e o Quilombo Raça e Classe (movimento negro que atua no interior da CSP-Conlutas), várias organizações sempre defenderam a aplicação de cotas diretamente proporcionais à população racial e totalmente desvinculadas das cotas sociais.

O PLC, no entanto, reduz a um quarto a representação a que negros e negras têm direito, na medida em que, na prática, a porcentagem será considerada em relação à metade da metade das vagas. Vale lembrar, também, que a lei, ao mesmo tempo que prevê que a medida será aplicada apenas por dez anos (prazo duvidoso para eliminar o enorme abismo que existe entre negros e brancos no interior das universidades), também dá um prazo de quatro anos para que as universidades se adaptem ao sistema.

Outro exemplo de que o governo tem uma política a conta-gotas no que se refere ao combate ao racismo, particularmente na Educação, é sua completa falta de iniciativa (reafirmada pelo projeto aprovado) de impor políticas de ações afirmativas exatamente onde se encontram a enorme maioria (cerca de 80%) das instituições de ensino: as privadas, onde estudantes negros e carentes.

No caso das estaduais (que estavam previstas no projeto original) o caso é particularmente grave. Basta o exemplos de São Paulo, onde a USP, por exemplo, resiste ferozmente a qualquer tipo de ação afirmativa e a Unicamp e tanta outras, que mantém políticas que resultam em ínfimas porcentagens de negros e estudantes oriundos de escolas públicas em seus projetos de “inclusão”.

Além disso, o projeto não prevê mecanismos de permanência (como bolsa de alimentação, moradia e transporte) nem políticas de nivelamento acadêmico (que possam amenizar as deficiências da escola pública, enormemente sucateada exatamente em função das políticas neoliberais do governo). E, também, como parte do acordo prévio entre Dilma e o Senado, o PLC estabelece que o ingresso nas universidades federais por meio de cotas deve ocorrer pela média das notas de cada aluno no ensino médio, sem o filtro do vestibular, item que Dilma irá vetar.

Para os negros e negras e todos aqueles que atuam com uma perspectiva de “raça e classe”, o projeto é ainda mais limitado. Primeiro, porque não está inserido num projeto global de “reparações” para a população negra. Da mesma forma que sempre defendemos as cotas como uma medida paliativa no combate aos absurdos efeitos do racismo na educação, também sempre lutamos na perspectiva de inserir a luta por ações afirmativas numa perspectiva mais global de luta contra o racismo em todos os setores da sociedade e pela destruição do sistema que dele se beneficia.

Afinal, ter uma legislação que prevê uma maior entrada de negros e pobres nas universidades pode se transformar em letra morta, já que são estes mesmos setores que estão sujeitos a situações a condições sociais tão precárias que fazem com que os portões das universidades pareçam uma miragem cercada por obstáculos dos mais diversos. Obstáculos instransponíveis como o desemprego crônico, os salários miseráveis, a falta de acesso à saúde e moradia e tantos outros, inclusive a eliminação física (tanto em função das péssimas condições de vida quanto pela crescente política de genocídio, capitaneada por agentes do Estado, como a polícia militar).

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