A situação na Bolívia segue quente: a negociação com as empresas estrangeiras pelo petróleo e o gás; o sangrento enfrentamento produzido pelo controle de uma mina em Huanuni; a paralisia da Assembléia Constituinte; mobilizações operárias e camponesas; marchas impulsionadas pela oligarquia da província de Santa Cruz.

Pressionado, ao mesmo tempo, pela burguesia e a direita e pelos conflitos no movimento de massas, que busca desesperadamente emprego e melhores condições de vida, o presidente Evo Morales acusou seus opositores de “tentar debilitá-lo com rumores de um golpe de Estado” e assegurou que “nada nem ninguém deterá a revolução cultural” que ele representa. O que está acontecendo realmente na Bolívia e qual é o rumo do governo de Morales?

Um governo de frente popular…
Para responder a essas perguntas, é preciso definir que o governo de Evo Morales é uma frente popular. Quer dizer, diferente dos governos burgueses tradicionais, o encabeça um dirigente do movimento de massas (no caso de um setor do campesinato boliviano) e o sustentam organizações de massas do campo e das cidades.

Esse caráter especial de quem as encabeçam e as organizações que as sustentam faz com que setores muito importantes do movimento de massas enganem-se e vejam às frentes populares como “seus” governos e não como o que verdadeiramente são: instrumentos aos quais a burguesia e o imperialismo apelam para enfrentar os momentos mais difíceis da luta de classes.

A burguesia boliviana e o imperialismo apostaram em Tuto Quiroga, mas se viram obrigados a aceitar o governo de Morales por uma razão simples: desde a queda de Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, existe um processo revolucionário no país que se expressou na queda de seu sucessor, Carlos Mesa, e, de modo distorcido, no amplo trunfo eleitoral de Evo. Nestas condições, para eles, o governo Morales passou a ser a melhor alternativa de controlar e tentar derrotar esse processo.

Cavalgando um potro bravo
O governo de Morales surgiu como reflexo distorcido do processo revolucionário. Por isso, de certa forma, fica preso no meio das principais forças sociais da luta de classes. Nas palavras de Leon Trotsky, é como “uma cortiça que separa duas facas”.

Por um lado, recebe a pressão e as exigências da burguesia e do imperialismo para que defenda seus interesses e avance contra a revolução. Por outro, recebe a pressão da mobilização de massas, exigindo que cumpra as expectativas que o levaram ao poder e se vê obrigado a fazer concessões, que a burguesia trata de desarmar enquanto pode. Por isso, sua política oscila, cheia de idas e vindas, segundo a pressão dominante em cada momento.

Mas essas oscilações sempre se dão na perspectiva mais estratégica de proteger os interesses da burguesia e do imperialismo. Podemos dizer que a frente popular de Morales é como um cavaleiro a serviço da burguesia que deve domar o “potro bravo” das massas revolucionárias. Para fazê-lo, apela a seu prestígio entre as massas. Seu plano é tomar as consignas mais caras às massas, levá-las adiante de modo parcial, tirando seu conteúdo revolucionário, para poder dizer “estamos aplicando o programa de revolução”.

Por exemplo, com base em um discurso antiimperialista, o governo decretou uma nacionalização parcial dos hidrocarbonetos e conseguiu maiores ingressos de divisas para o país, mas manteve a maior parte desses negócios nas mãos das companhias estrangeiras. Avança com uma reforma agrária parcial que atinge terras hoje improdutivas para evitar que chegue aos grandes latifúndios, dos criadores de gado e das madeireiras. Tenta que a Assembléia Constituinte seja “originária” mas tira de seus debates os temas mais importantes. Ao mesmo tempo, como para frear a revolução tem que dar “um pouco mais”, muitas vezes o governo tem atritos com setores burgueses que se vêm afetados por essas concessões às massas.

O “capitalismo andino” do MAS
Para levar adiante esse plano, o governo do MAS afirma que sua política é conciliar os interesses de classe, ou seja, os “interesses nacionais” do povo e das maiorias oprimidas com aqueles do grande capital. Esse é o sentido que dão ao conceito de “capitalismo andino”.

O vice-presidente Álvaro García Linera o explicava como “um modelo de desenvolvimento capitalista que combina as três plataformas econômicas vigentes na Bolívia, a moderna ou estreitamente industrial, a andina comunitária e a amazônica, que encontram mecanismos de articulação ‘não brutal’, regulando a expansão da economia industrial, extraindo seus excedentes e transferindo-os para o âmbito comunitário, para potencializar formas de auto-organização e desenvolvimento mercantil propriamente andino-amazônico”. (1) Ou seja, apoiar a economia familiar de pequena e média escala, mas sem romper com o domínio das empresas imperialistas e estrangeiras no país.

Nesse marco, o Estado nacional tem “uma importância decisiva como responsável pelo bem-estar coletivo e pela regulação dos mercados, com a condição de compatibilizar o intervencionismo com a iniciativa privada. É uma tentativa de combinar valores do capitalismo e do socialismo com o propósito de superar a ambos, mas sem questionar a gênese da produção capitalista”. (2) Essa idéia se resumiria nas palavras de Morales sobre as empresas estrangeiras: “a Bolívia quer sócios, não patrões”.

Uma proposta que não pode dar certo
Essa tentativa de conciliar os “valores do capitalismo e do socialismo, sem questionar a gênese da produção capitalista” é uma nova versão da proposta de “humanizar o capitalismo”. Toda a história contemporânea mostra que isso é impossível: não se pode defender os interesses dos trabalhadores e do povo sem atacar, ao mesmo tempo, os da burguesia e do imperialismo. Apoiando-se na força do processo revolucionário, Morales obtém algumas concessões menores do imperialismo e, ao mesmo tempo, outorga concessões às massas. Nesse sentido, os maiores ingressos do Estado boliviano pelos novos contratos de petróleo e gás, e a alta internacional dos preços dos mineiras podem dar a Morales um certo alívio e alguma margem de tempo para manter o apoio do povo (que se mantém majoritário). O presidente decretou o aumento do salário mínimo, uma bolsa educativa anual e está promovendo um programa de alfabetização com fundos e professores venezuelanos e serviços de saúde com médicos cubanos.

Isso poderá dar a impressão superficial de que o “capitalismo andino” e a conciliação de classes são possíveis. Mas será só uma ilusão temporária. A situação revolucionária boliviana segue aberta e, muito possivelmente, “os facões” voltem a se chocar em novas e mais duros enfrentamentos.

A burguesia e o imperialismo farão de tudo para que a ilusão criada pela frente popular consiga “adormecer” as massas e lhes permita acabar com a situação revolucionária e cobrar a revanche do que as massas fizeram durante esse anos. De nossa parte, confiamos que no curso do processo os trabalhadores e as massas compreenderão cada vez mais que as mornas medidas de Morales não bastam para resolver o problema do desemprego, dos baixos salários, da pobreza e da miséria ou para arrancar a terra dos latifundiários.

Em outras palavras, as massas concluirão que, para conseguir essas reivindicações, precisam reiniciar sua mobilização revolucionária, superar o governo de Evo Morales e assim impor soluções de verdade para suas necessidades mais urgentes. Nesse processo, será essencial a construção de organizações de massas para levar adiante essa luta e a experiência histórica da construção da COB ajudará muito. Outra tarefa central é a construção de um partido revolucionário que intervenha nas lutas e prepare essa perspectiva estratégica.

1] Ver Entrevista a Alvaro García Linera, “el capitalismo andino-amazónico es la propuesta del MAS“ por Miguel Lora, Bolpress, 07/10/05, en www.bolpress.com
[2] Ídem