João Paulo, de Natal (RN)

João Paulo da Silva, de Natal (RN)

Ahahahahahaha! O Coringa está entre nós e rindo bastante. Isso não é uma piada. Coringa (Joker), filme dirigido por Todd Phillips e protagonizado por Joaquin Phoenix, traz o famoso vilão do Batman sozinho para o cinema, acompanhado apenas por uma profunda e incômoda reflexão sobre a loucura e a sociedade. O longa de baixo orçamento, que venceu o prêmio Leão de Ouro no Festival de Veneza e já arrecadou mais de US$ 849 milhões em todo o mundo, apresenta um estudo de personagem e sugere uma origem para um dos antagonistas mais icônicos dos quadrinhos. Mas Coringa não é um filme do gênero de herói nem mesmo de anti-herói. É um drama sombrio, perturbador, que põe o dedo nas nossas feridas mais invisíveis.

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um homem doente, atormentado e com graves problemas mentais. Sofre de uma rara condição psicológica que o faz rir de forma descontrolada em momentos inadequados. A doença existe de verdade e se chama afeto pseudobulbar. Isso o torna ainda mais estranho. Seja trabalhando durante o dia como palhaço, seja à noite buscando uma carreira de comediante stand-up, Arthur Fleck é humilhado e visto como um sujeito esquisito, um deslocado que não encontra espaço na sociedade. “É impressão minha ou o mundo está ficando cada vez mais maluco?”, pergunta ele à sua terapeuta. Mas que mundo é este afinal do qual nos fala o Coringa?

Gotham City é um retrato atual das nossas grandes cidades, vivendo sob um capitalismo decadente, ainda que o filme seja ambientado no início dos anos 1980. É feia, suja, escura e está afundada numa crise econômica, política e social. O desemprego é alto, e a prefeitura corta verbas nos serviços públicos de saúde e assistência social. É o reflexo das políticas da burguesia na tentativa de salvar seus lucros, mesmo que isso custe a vida ou os cuidados de muitos. Uma sociedade profundamente individualista, na qual ninguém se importa com ninguém, muito menos com as pessoas invisíveis, como doentes mentais e pobres. Gotham é uma cidade que vive convulsões sociais em razão da crise capitalista e das ações de sua elite, materializadas na figura e no discurso de Thomas Wayne, para quem os manifestantes nas ruas são “palhaços”.

É dentro desse mundo maluco que acompanhamos a trajetória de insanidade de Arthur Fleck até ele se transformar no Coringa. Aquele homem atormentado está bem ali, diante dos nossos olhos, transformando-se num monstro que passa a ter satisfação em realizar atos cruéis de violência. Mas o que explica isso?

O longa tem causado polêmica e incômodo em alguns setores, chegando a ser acusado de fazer apologia à violência ou de romantizar o vilão. Entretanto, a verdade incômoda é que o filme aponta a parcela de responsabilidade da sociedade no surgimento de seus monstros. Coringa é uma aberração, e o filme não esconde isso. Mas faz questão de mostrar que mesmo as aberrações têm uma história e são também expressões da desumanização de nossa sociedade. Coringa é como uma febre alta no corpo, demonstrando que não é só ele que está doente. A história incomoda porque, ao contrário do que dizem, os monstros não são meros problemas individuais, simplesmente de pessoas insanas. Coringa escancara o aspecto social da loucura, a quota de responsabilidade do mundo na explosão violenta da insanidade.

Não há uma romantização do vilão, não há uma busca pela empatia com o monstro. Há, sim, a história de sua vida. Seus traumas, doenças e condições sociais que são sumariamente ignorados pelo poder instituído. Não há a justificação dos atos brutais do Coringa. Há uma explicação das razões que fizeram aquele sujeito doente, que dançou a vida inteira à beira do abismo, saltar em direção à escuridão. Quem se incomodou com o filme dizendo coisas como “a história faz do Coringa um herói”, “justifica seus erros” ou “mostra-o como vítima da sociedade” é porque não consegue reconhecer nossa imensa parcela de culpa, enquanto sociedade, na formação desse tipo de gente, que responde com violência individual e terror insano às contradições sociais do mundo.

Coringa incomoda porque impõe uma reflexão dolorosa e perturbadora a respeito do que estamos nos transformando. Incomoda porque põe a sociedade capitalista para olhar-se no espelho, e esta não quer admitir sua responsabilidade na loucura dos outros, no abandono dos invisíveis, ainda que essa responsabilidade não justifique as ações. Mas não se trata de justificar, e sim de explicar por que coisas assim podem acontecer. O filme é sobre por que os copos cheios transbordam, é sobre os gatilhos sociais que disparam os nossos monstros.

É claro que o Coringa precisa ser detido, não necessariamente pelo Batman, mas não pode mais ficar solto. Tornou-se um perigo não só para si, mas para os outros. E a despeito das polêmicas, esse perigo não é vermelho. Coringa não é líder de movimento nenhum, muito menos comunista. Basta assistir ao filme com um pouquinho mais de atenção. Coringa é o reflexo doentio de um mundo que há muito tempo não vai bem.

Um dos muitos méritos do filme é esfregar na cara de quem dirige a sociedade que a insanidade não é apenas uma questão individual, de alguém que é mau e pronto, espírito ruim ou outras bobagens. Curiosamente, o Coringa de Joaquin Phoenix faz lembrar uma frase do Coringa de Heath Ledger, em O Cavaleiro das Trevas, quando este diz ao Batman: “A loucura é como a gravidade. Só precisa de um empurrãozinho”.

Interpretação e referências
Merece muito destaque a impecável interpretação de Joaquin Phoenix, tanto por seu estado físico quanto por sua composição mental do personagem. A entrega e o talento do ator permitiram a criação de uma figura psicologicamente instável, cuja loucura alterna momentos entre o humor macabro e a violência extrema. Tudo marcado por um conjunto de risadas específicas, criadas para cada expressão determinada de sentimentos.

O filme não é uma adaptação direta de nenhuma história em quadrinhos do universo da DC Comics. Mas o roteiro escrito por Scott Silver e Todd Phillips, que também dirige o longa, faz referências e homenagens às HQs A Piada Mortal, de Alan Moore, e O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, bem como aos clássicos do cinema O Rei da Comédia e Taxi Driver. Ambos de Martin Scorsese, os filmes são claras influências em Coringa, seja pelo comediante fracassado Rupert Pupkin, no primeiro, quanto pelo psicopata Travis Bickle, no segundo. Coincidentemente, os dois são interpretados por Robert De Niro, que vive Murray Franklin, o apresentador de um talk-show em Coringa.